Nas redes sociais, o debate sobre o movimento alternativo é fragilizado por conceitos distorcidos e apropriações inadequadas

Por Giovanna da Silva Araújo

Desde a consolidação da web 2.0 nos anos 2000, a internet passou a ser uma rede de relacionamento e de troca entre usuários. Atualmente, essas relações em ambientes digitais são marcadas pelas redes sociais (como TikTok, Instagram e X/Twitter), onde a interação entre perfis se estabelece de formas que ultrapassam as fronteiras que delimitam o mundo físico. Dessa forma, o fenômeno da globalização digital configura um cenário em que diversos usuários bombardeiam suas redes sociais com diferentes tópicos e discussões constantemente. Esse fluxo traz à superfície novos debates que, muito provavelmente, não teriam espaço de sequer emergirem fora da tela e que se desdobram e ganham novos olhares a cada abordagem.

Nesse contexto, um tema que vem sendo incansavelmente discutido nas redes sociais (especialmente TikTok e X) é: ‘o que torna alguém alternativo?’, numa necessidade constante e até desnecessária de redefinir esse conceito. A internet proporcionou um espaço de aproximação e comunicação entre comunidades alternativas/contraculturas, que antes permaneciam isoladas e restritas a nichos específicos, muitas vezes desconhecidas por aqueles fora dessas bolhas. Entretanto, com a pandemia em 2020/2021, estéticas alternativas ganharam visibilidade entre os jovens; estilos como o ‘e-girl/e-boy’ e ‘coquette’ se estabeleceram  como tendências marcantes, refletindo uma transformação sutil, porém poderosa, na forma como se expressa e se reconhece os movimentos alternativos no meio digital. 

Segundo o dicionário Michaelis, alternativo é um “indivíduo que adota um estilo de vida e pensamento que se opõe aos valores e costumes impostos e valorizados pela sociedade de consumo”. Já de acordo com Luiz Alberto de Lima, historiador formado pela USP, “a sociedade alternativa é um enorme leque de lutas libertárias de toda uma geração jovem que ousou discordar das verdades prontas e acabadas que nos são oferecidas pelo mundo capitalista”. Ou seja, alternativo é tudo aquilo que diverge do comportamento e pensamento padrão que a sociedade está condicionada a ter, quase que programada pela lógica capitalista e moderna. 

Mas, se ser alternativo é só isso, por que tantas regras?

O debate sobre o alternativo nas redes sociais se debruça, basicamente, sobre uma única pauta: quais os requisitos para ser considerado alternativo. Como já definido, a experiência alternativa acontece quando se possui uma visão de mundo e influências culturais, políticas e sociais opostas à sociedade dominante, mas não necessariamente equivalente às subculturas. Logo, toda subcultura é alternativa, mas nem todo alternativo pertence, necessariamente, a uma subcultura.  Como aponta Sarah Thornton (1996), as práticas culturais alternativas circulam de forma fragmentada, permitindo apropriações fluidas e múltiplas, que nem sempre dependem de comunidades estáveis.

Quando se trata de normas e códigos culturais, refere-se especificamente às subculturas e grupos que contemplam a sociedade alternativa, já que estes para serem reconhecidos no mundo recorrem a uma identidade e comunicação próprias.  De acordo com Kipper em “A happy house in a black planet (2008)”, a visão de mundo diferenciada de cada grupo alternativo é expressa ou vivenciada através de seu sistema de símbolos. Esses símbolos podem ser entendidos, principalmente, como manifestações culturais como moda, artes visuais, música e patrimônios. 

Ao mesmo tempo em que algumas pessoas na internet parecem empenhadas em transformar o alternativo num manual de regras cada vez mais sufocantes, outras o banalizam para conseguirem se encaixar no movimento, ainda que não compartilhem genuinamente de sua essência e ideologias (e estejam conscientes disso). Aqueles que pertencem à uma comunidade alternativa possuem interesses pessoais e individuais que acabam sendo contemplados pela subcultura, ocorrendo uma identificação dessa visão de mundo. Já os modistas, que nesse contexto podem ser entendidos como os pseudoalternativos da internet, estão em busca de pertencimento, de fazerem parte de qualquer nicho social, por mais que não se identifiquem de fato com o conjunto de símbolos, de acordo com Denise Silva no artigo “Movimento gótico contemporâneo” (2018). 

A subcultura gótica, por exemplo, tem sua história construída em torno do desencanto com a modernidade e de um forte posicionamento contra o mundo capitalista industrial, homogêneo e materialista. Os góticos utilizam de artifícios como música, literatura, cinema e estética para se manifestarem diante da cultura dominante; a contracultura vê nessas formas de expressão vias que transportam e transmitem sua mensagem política e social. Dessa forma, por mais que um movimento alternativo não se resuma à sua estética, a estética é intrínseca aos seus ideais e princípios. A moda é uma manifestação tão artística quanto música e literatura, exercendo um papel social e cultural de discurso e linguagem, fortalecendo sua comunicação visual.

Nosferatu (1922)

Hebdige (1979) explica que estilos subculturais usam a estética como forma de subversão simbólica, transformando signos cotidianos em declarações de oposição à norma social. O preto característico do estilo gótico representa o luto por uma sociedade que perdeu a empatia, pela falta de amor, de oportunidades e que rejeita o diferente (SILVA, 2018, p. 21). Além do uso  das cores, símbolos como a cruz e a maquiagem são ressignificados no movimento representando resistência e a figura do vampiro funciona como um símbolo de tensões sociais, desejo e transgressão. Ou seja, sua estética e influências são construídas como uma forma de crítica social e de construção identitária alternativa contra-hegemônica.

Então o alternativo é tão limitante quanto a cultura de massa?

Grupos alternativos nasceram, majoritariamente, em uma Europa sob crise econômica, alto desemprego, avanço mundial do neoliberalismo e de tensões sociais e, rapidamente, se espalhou pelo mundo. Inseridos em centros urbanos industriais, esses movimentos surgem como uma reação à homogeneização cultural, dialogando com referências artísticas como o romantismo, expressionismo e decadentismo. Adorno e Horkheimer (1947), ao discutirem a indústria cultural, explicam que a lógica capitalista transforma a cultura em mercadoria, resultando em sua padronização para o consumo fast-foodizado (BORGES, 2020) e em massa e enfraquecendo seu potencial crítico. Assim, a homogeneização cultural pode ser entendida como uma consequência da indústria cultural, reprimindo a autenticidade das expressões culturais.

Apesar de ter suas particularidades e elementos que marcam sua essência e identidade, as subculturas alternativas ainda valorizam a individualidade e originalidade de cada indivíduo. Estas surgem também com o objetivo de trazer àqueles inconformados com a modernidade e que consideram os padrões de vida capitalistas indigeríveis uma identificação, reconhecimento e aceitação que a sociedade de massa não permite. Para Simmel (1976), as manifestações contraculturais são tidas como um apelo ao extremo no que se refere à exclusividade e a particularização, uma tentativa de preservar sua essência e subjetividade. Ainda nesse sentido, Thornton (1996) argumenta que o valor subcultural está justamente na capacidade de seus membros produzirem distinções e autenticidade através da música, moda e comportamentos, o que permite que a originalidade seja constantemente afirmada, mesmo quando se compartilha de códigos estéticos e sociais da contracultura.

Um grande desafio nos debates contemporâneos sobre o alternativo é identificar o ponto em que a autenticidade e as manifestações identitárias do movimento tangenciam. Dentro das subculturas, o indivíduo busca se identificar com o grupo, porém se ele enquanto adepto foge de suas características, acaba sendo estigmatizado pelos outros e não aceito (SILVA, 2018, p. 22). Em Psicologia do Vestir (1989), Giorgio Lomazzi ressalta que na base da moda existe um impulso ambivalente: o desejo de diferenciar-se e a procura de uma adequação às normas do grupo social que se quer pertencer. Essa ambivalência e a visibilidade do corpo traz um poder constante de vigilância de um indivíduo sobre outro e sobre si mesmo (CAIAFA, 1989). 

Aparentemente, mesmo com a internet possibilitando uma troca entre usuários e democratizando (ainda que parcialmente) o acesso à informação, ainda hoje os alternativos não sabem identificar o que caracteriza a subjetividade – ou ausência dela – de um indivíduo adepto àquela subcultura, e isso se reflete potencialmente quando esse debate emerge em termos digitais. É curioso observar que, em vez de utilizarem as redes sociais como um recurso de união, discussão e difusão de suas pautas, as comunidades frequentemente se veem envolvidas em disputas sobre pertencimento, interpretações distorcidas de linguagem estética e conflitos acerca das formas legítimas de expressão dentro do movimento. 

A partir da década de 1970, inspirado pela ética do faça você mesmo (DIY), o punk iniciou sua produção de fanzines por todo o mundo – inclusive no Brasil, posteriormente –, que eram publicações alternativas sem fins lucrativos semelhantes a folhetins, como uma forma de expressão livre e independente frente à mídia hegemônica. Os fanzines tinham como objetivo manifestar opiniões políticas e sociais, compartilhar diferentes tipos de produções artísticas independentes e difundir suas ideias, além de aproximar membros da cena punk, funcionando como espaço de resistência cultural e de construção identitária (CARLOS; GELAIN, 2016). Com o advento da migração digital, era esperado que manifestações subculturais como essa ganhassem força e espaço na mídia, porém o que se nota é o sentido contrário, de segregação e isolamento cada vez mais recorrentes.

Fanzines Rock do ABC (2013) e Pest Zine (2012)

Mercantilização e banalização

Como já mencionado anteriormente, da mesma forma que existem aqueles que são adeptos a uma subcultura, também existem os modistas, definidos por Silva (2018) como aqueles que “estão em busca de pertencimento, de mais uma alternativa, de fazerem parte de qualquer subcultura ou grupo, não se identificando de fato com o conjunto de símbolos”. Estes se apropriam de um determinado movimento como um mecanismo de autoafirmação e como uma necessidade de um espaço de pertencimento. Nesses casos, a contracultura funciona mais como um rótulo identitário do que como uma prática efetiva de engajamento cultural e político, o que alimenta a banalização e a redução desses movimentos como um mero conceito estético e vazio. 

Ronsini (2007), por exemplo, distingue os “punks simbólicos” dos “punks de consumo”: enquanto os primeiros se ligam aos aspectos políticos, filosóficos e à ética do punk, os segundos se apropriam da estética e de alguns signos do movimento. A partir de uma lógica mais próxima ao consumo cultural hegemônico, os “punks de consumo” se relacionam com a subcultura não por seus ideais de inconformismo e resistência, mas sim como se fosse mais um dos produtos disponíveis no mercado cultural. Essa apropriação superficial revela como a busca por pertencimento e reconhecimento social tem se sobreposto ao compromisso com os valores originais da comunidade.

De acordo com Giorgio Agamben em “Nudez” (2010), “o desejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser humano. Tal reconhecimento, de outro modo, é para ele tão essencial que, segundo Hegel, cada um, para obtê-lo, está disposto a colocar em jogo a própria vida. Não se trata, com efeito, apenas de satisfação ou de amor próprio: ao contrário, é somente por meio do reconhecimento dos outros que o homem pode constituir-se como pessoa”. Ao relacionar Agamben com os estudos de Ronsini, é possível depreender que muitas práticas modistas não apenas reproduzem lógicas de mercado, mas também expressam a necessidade humana de afirmar-se diante do olhar do outro.

Nas últimas semanas, desde a premiére da segunda temporada da série “Wandinha” em que Jenna Ortega apareceu com as sobrancelhas descoloridas e com um colar de cruz, muitos veículos de moda têm destacado o retorno da ‘moda gótica’ nos tapetes vermelhos. Contudo, esses veículos parecem não saber diferenciar estética de subcultura ao recorrer ao uso do termo “gótico” de maneira reducionista e como se fosse apenas mais um produto de consumo, contrariando e esvaziando os princípios que o fundamentam. Se apropriar de um movimento alternativo para denominar uma tendência estética é reforçar estereótipos acerca daquele grupo e reduzir todo o significado político, cultural e social que a comunidade carrega e perdura há cerca de 50 anos. 

@garotasestupidas, @voguebrasil e @marieclairebr no Instagram, respectivamente.

Além de prejudicar o sentido político e social das manifestações alternativas ao resumi-las apenas como um fenômeno estético, abordar o estilo alternativo como uma tendência de moda contribui para sua mercantilização e corrói seus princípios anticapitalistas. Ao adotar essa ótica,  o conceito de ‘moda alternativa’ estabelecido por comunicadores (que na maioria das vezes pouco sabem de seu papel político-social), entra diretamente em choque com as ideologias anticonsumistas que muitas contraculturas que buscam viver de forma consciente e autônoma defendem. Essa apropriação inadequada das subculturas transforma símbolos revolucionários e de resistência em produtos consumíveis, distorcendo e criando um abismo entre os valores primordiais da comunidade e a forma como ela é percebida externamente.

Nas redes sociais, a necessidade de pertencimento leva os indivíduos a buscarem rótulos e grupos como forma de legitimar sua existência diante do olhar do outro. Ao invés de simplesmente expressarem a própria essência, acabam por adotar códigos e normas que, em alguns casos, sequer são coerentes à sua verdade. Surge, então, a contradição: se o sujeito não se identifica totalmente com um movimento, por que insiste em se encaixar nele? Até porque, como já pontuado neste artigo, o alternativo pode revelar-se independentemente da adoção a uma subcultura, tendo em vista que ser alternativo é, em linhas gerais, uma postura individual contra hegemônica. Talvez essa busca incessante revele uma necessidade fragilizada e até mesmo insegura de aprovação e autoafirmação. Às vezes, o desejo de pertencer fala mais alto do que a liberdade de ser, transformando até a própria ideia de ser alternativo em mais uma forma de padronização.

Referências

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1947.

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

BORGES, Clara Andrade. A fast-foodização da informação. São Paulo: Annablume, 2020.

CAIAFA, Janice. Movimento punk na cidade: invasão dos bandos sub. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

CARLOS, Giovana Santana; GELAIN, Gabriela. Fanzine e subcultura punk: produção, consumo e identidade na cena brasileira. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE COMUNICAÇÃO E CONSUMO – COMUNICON, 2016, São Paulo. Anais […]. São Paulo: ESPM, 2016.

HEBDIGE, Dick. Subculture: The Meaning of Style. London: Routledge, 1979.

KIPPER, Henrique Antonio. A happy house in a black planet: introdução à subcultura gótica. Porto Alegre: Sulina, 2008.

LIMA, Luiz Alberto de. Raul Seixas no panorama da contracultura jovem. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

LOMAZZI, Giorgio; ECO, Umberto; et al. Psicologia do vestir. São Paulo: Ática, 1989.

MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, [s.d.]. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br. Acesso em: 15 set. 2025.

RONSINI, Veneza M. Mercadores de sentido: consumo de mídia e identidades juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2007.

SILVA, Denise. Movimento gótico contemporâneo. São Paulo: Annablume, 2018.

SIMMEL, Georg. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

THORNTON, Sarah. Club Cultures: Music, Media and Subcultural Capital. Cambridge: Polity Press, 1996.

2 comentários em “A banalização do alternativo

  1. Muito interessante esse posicionamento. Eu só senti falta de um lado mais empático da história. Hoje em dia, muitas pessoas buscam se encaixar em um rótulo, como foi citado, mas é perceptível que dentro do que chamamos de “alternativo” existe uma crítica constante à individualidade do outro, especialmente quando alguém gosta de pertencer a algo popular. Nesse momento, a pessoa passa a ser enxergada apenas por aquela escolha, como se fosse a única característica dela, ignorando todos os outros pontos interessantes que possui.O que é curioso é que o maior valor de ser alternativo deveria estar justamente no respeito à autenticidade de cada um. No entanto, atualmente, se você gosta de algo popular, mesmo que a maioria dos seus interesses sejam diferentes, já é apontado como “da massa”. Ou seja, usam um gosto musical ou cinematográfico para rotular alguém. No fim das contas, os alternativos acabaram se tornando a própria “massa” que sempre tanto criticaram.

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    1. exato! eu tento trazer um pouco desse aspecto no texto porque, em essência, as comunidades alternativas estão abertas a aceitar e respeitar as individualidades, até porque quem seríamos nós sem nossas particularidades? mas, infelizmente, atualmente muitas comunidades não parecem ser tão abertas a isso, chega a ser um espaço mais de exclusão do que inclusão.

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