Os pormenores da realidade dentro desse ambiente digital: a falta de regulamentação, uberização do trabalho, sua precarização e o ambiente competitivo e tóxico
Por Livia Queiroz
Dentro da realidade de uma sociedade capitalista, as plataformas de conteúdo digital, mais especificamente de conteúdo adulto, se tornaram uma maneira de ganhar dinheiro em excesso. Mas não se engane, pois apenas uma pequena parcela de pessoas consegue conquistar valores altos a ponto de alcançar a desejada independência financeira.
O esquema de monetização da maioria dos sites funciona por meio das assinaturas feitas pelos consumidores desses conteúdos. Em seu último relatório, divulgado em 2023, o site OnlyFans contabilizou um faturamento de 1,3 bilhão de dólares (aproximadamente 7.5 bilhões de reais) com um número recorde de 305 milhões clientes e 4.1 milhões criadores de conteúdo. Além do valor de assinaturas mensais, existe a possibilidade de fazer acordos com os autores por mais produtos, o que gerou um lucro de 6.6 bilhões de dólares (aproximadamente 38 bilhões de reais) para os creators.
Na divulgação desses números, que só crescem desde a pandemia, os interessados em ganhar o que se chama de “dinheiro fácil” entram na plataforma com expectativas de viver confortavelmente e com direito a luxos, graças a uma enorme pilha de dinheiro recebida e anunciada por vários criadores e influencers na internet. Entretanto, a realidade por trás desse trabalho se revela em diversas perspectivas diferentes das abordadas publicamente pelas celebridades desse universo.
Uberização do mercado sexual
A internet e as redes sociais, enquanto plataformas, estão em constante atualização, e a adesão do público a essas ferramentas cresce com o passar do tempo. Tal fenômeno pode ser observado pela quantidade de pessoas que acessam diariamente essas mídias e que estabelecem conexões a partir desses espaços com fim no entretenimento e no compartilhamento de experiências. Além disso, a tecnologia serve para renovar e criar trabalhos, um exemplo disso é a Uber.
Nesse aplicativo, pessoas pedem caronas pagas a outras, associadas a um sistema. Com a conta vinculada ao aplicativo, o motorista recebe seu dinheiro na hora. Nesse sentido, é um trabalho independente no qual o associado escolhe quando trabalhar e gerencia sua própria carga horária, definindo um salário com base na demanda das viagens. Esse estilo de comunicação e de emprego informal mediado pela tecnologia se consolidou no mercado e foi chamado de “uberização”. Porém, existem controvérsias dentro desse novo modelo: falta de segurança ao trabalhador e ausência de direitos trabalhistas. Tais consequências também podem ser identificadas no já estigmatizado mercado do sexo online, afetado por um sistema operacional uberizado.
Ausência de regulamentação e a precarização do trabalho
No Brasil, não existe nenhuma lei ou regulamentação de sites de conteúdo adulto para garantir direitos e segurança aos trabalhadores desse setor. Muita dessa influência, segundo a jornalista Geovanna Sena Vale, uma das autoras da pesquisa “Quem lucra com o tabu?”, mesmo em um estado laico, vem da religiosidade que se manifesta no país. “As pessoas que se prostituem e as que criam conteúdo adulto não têm nenhuma segurança. Isso causa a precarização desse tipo de trabalho, a falta de formas de proteção e de fiscalização para que recebam o dinheiro de seu produto, justamente por não terem nenhuma garantia de que a plataforma vai pagar e proteger seu conteúdo. O próprio governo também não oferece esse amparo legal”, analisa.
A única lei relacionada a este mercado foi um projeto sugerido em 2012 pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), com a ementa de regulamentação da atividade dos profissionais do sexo – que foi arquivada – e manifestava a proibição de lucro com o trabalho sexual alheio, ou seja, encaixe em exploração sexual. Isso mostra que, mesmo com o grande destaque dessas plataformas, o tabu em torno do tema impede um debate mais amplo e a criação, por exemplo, de leis trabalhistas. “A sociedade prefere fingir que elas não têm força suficiente para ter a criação de leis trabalhistas”, completa.
Nestes sites, ao se tornar um criador, a retribuição financeira pelos conteúdos postados está sujeita a um tempo de sete dias. Depois desse prazo, o valor fica armazenado e disponível para saque após, no mínimo, três dias. Caso ocorra algum erro de sistema ou uma queda do site, por exemplo, toda a monetização é perdida. “Não existe nenhuma lei que os impede (sites e sua gestão) de fazerem isso, também não existe nenhum auxílio trabalhista ou segurança de identidade. Na internet, você tem um contato superficial com várias pessoas, mas somente você está exposta e vulnerável. Essa é uma proteção recebida por outras profissões”, pondera Sena.
Ademais, os profissionais são submetidos a uma grande exposição. As plataformas ficam disponíveis para postagens ilimitadas, mas o dono do trabalho só ganha se tiver assinaturas em seu perfil. Com isso, além da produção, o criador deve desempenhar o papel de um influenciador digital, se promovendo nas mídias para agregar valor e viralizar seus projetos. “A plataforma precariza muito o trabalho do creator. Existem muitas condições para a monetização e, quando permitido, devem fazer seu próprio marketing. Isso é um outro aspecto complexo, pois, no X, por exemplo, é permitido publicações explícitas, mas, no Instagram, rede com maior alcance, não. Dificilmente você vai conseguir se manter anônimo ou low profile e receber um bom dinheiro porque você deve promover sua persona”, contou Geovanna ao desenvolver sobre seu tema de TCC.
Ambiente competitivo e machista
O perfil de trabalhador mais visto nesse mercado é composto por mulheres e homens homossexuais, e seus clientes e público-alvo são, quase sempre, homens; em uma pesquisa do sites Briefly e SignHouse, dos dez maiores lucradores com esses produtos, nove são mulheres. Portanto, a problemática envolve uma questão social que engloba fetiches e a ideia de submissão, além de estar relacionada ao tema histórico da prostituição, marcado pelo machismo e pelo patriarcado. Dentro disso, a forma como os criadores são tratados por seus espectadores é rude, graças à visão do homem de ser superior e ter o direito de dar ordens aos grupos minorizados. “É comum que as garotas recebam mensagens agressivas, xingamentos e sejam até ameaçadas”, alerta a especialista Mônica Gurjão, psicóloga pela PUC-SP, em entrevista para a revista Veja.
Outro exemplo foi dado pela creator Lídia Raquel, em entrevista para o Metrópoles, citando que, por considerar esse tipo de assédio inevitável nesse segmento, levando em conta o contexto social, costuma se preparar para saber contornar da melhor forma possível. “Sempre que fico desconfortável, eu primeiro tento explicar de forma tranquila para a pessoa que aquele é meu trabalho e é preciso haver respeito. Já recebi uma proposta bem alta de dinheiro para tirar 15 fotos em posições específicas. Quando a pessoa me mandou a referência, eram fotos que eu não teria coragem de tirar. Respeito quem tira, mas eram poses muito explícitas”, relata.
Outro depoimento foi da ex-criadora de conteúdo adulto e influencer Malu, que postou em seu perfil no X, em agosto de 2023, avisando para as mulheres interessadas nesse trabalho: “Seus assinantes nunca estarão satisfeitos com o que você produz e, para mantê-los ali, você começa a fazer coisas que não se sente confortável. Você vira apenas um objeto sexual para 90% das pessoas e ninguém te enxerga mais como um ser humano”.
Com isso, é perceptível que o mercado do sexo digital é um ambiente de extrema comparação física. Tal situação cria um recorrente problema de autoestima nestes indivíduos. “Os produtores mais conhecidos representam padrões sociais, são pessoas dentro do que a sociedade considera um padrão físico essencial. E, quando o criador de conteúdo está no começo e tem que fazer parcerias para patrocínios, percebendo que não tem um ‘corpo desejado’, por vezes as empresas negam as campanhas. Isso pode afetar a forma como você se vê”, pondera Geovanna. Por essa razão, muitos criadores de menor alcance acabam aceitando qualquer tipo de oferta, mesmo não se sentindo confortáveis com aquilo, por medo do pouco de atenção dos clientes e por receio do cancelamento de assinaturas que, consequentemente, ocasionaria a perda da sua fonte de renda. Na mesma matéria da Veja, Amanda Alcunha, modelo deste ramo, declarou que recebeu uma proposta de um homem que insistia para que não usasse nada, mesmo ela só se mostrando em lingerie. “Acabei fazendo o que ele queria, para agradar, uma violência para mim”, reconhece.
Tabu
Há um preconceito em relação ao trabalho sexual e aos próprios trabalhadores motivado, muitas vezes, pela dificuldade em lidar com mulheres em um contexto sexual, especialmente quando se trata de uma ocupação profissional. Além disso, motivações religiosas interferem tanto na legislação quanto na concepção da visão social, causando efeitos no mercado do sexo.
“Eu vejo como algo extremamente ruim e prejudicial à sociedade. Vejo que é um conteúdo que não oferece nada de valor aos que consomem e àqueles que dedicam o seu tempo a esse trabalho e, depois, acabam em um ciclo de exploração trabalhista, abuso e tráfico sexual. Além disso, eu vejo essas mudanças sociais como um aumento da perda do valor do significado da família, amor próprio, valorização de uma vida saudável e bem vivida”, afirma Raffaela Coghi Paitch, uma jovem cristã de 19 anos.
Em contraste, Geovanna pensa que o trabalho feito nessas plataformas não é muito diferente de nenhum outro trabalho, só não é bem visto por uma parcela da sociedade. “Se você se sente bem, não tem nada moralmente errado em trabalhar com isso. O tabu se dissolve quando se entende que os criadores são pessoas normais e que não tem nada de errado com eles porque escolheram fazer aquele trabalho. São trabalhadores e trabalhadoras como qualquer outro, mesmo que exista um preconceito de que são pervertidos”, opina a jornalista.
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