Lançada em novembro pela Secretaria Municipal da Educação, obra é escrita por estudantes do Centro de Educação de Jovens e Adultos

Por Bianca Luísa Santos

“Tecendo Fios da Memória” é o nome de uma coletânea que traz relatos de vida de estudantes do Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA). Lançada no último dia 13 de novembro, no Centro de Professorado Paulista (CPP) de  Bauru, a obra é um trabalho conjunto de professores e alunos. O livro traz à tona diferentes realidades e a pluralidade de vozes dos estudantes do projeto.

O CEJA atende alunos com mais de 15 anos que não completaram o Ensino Fundamental I. Em Bauru, existem oito polos de atendimento educacional para jovens e adultos, dentre eles cinco participaram do projeto. Foi no polo Édson Francisco que a ideia da escrita de um livro que relatasse essas histórias surgiu. Durante uma visita ao local, as coordenadoras de área que trabalhavam com o EJA ouviram as narrações dos alunos e se inspiraram. “Eu nunca esqueço a sensação que eu tive na sala, porque eu lembro que eu entrei e olhei a lousa. Eu olhava para lousa e  falava: Poxa vida! Eles estão aprendendo um conteúdo da língua, mas eu vejo que a língua tá mais viva do lado do aluno do que a língua prevista na lousa.”, relata a coordenadora de Língua Portuguesa da Secretaria de Educação, Luciana Apolonio.

O Censo Escolar de 2022, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC), aponta que naquele ano o EJA teve 2.774.428 matrículas. Esses dados mostram a necessidade de se ter uma visão voltada para as demandas e formação desse público . “É diferente do fundamental regular, então a gente precisa de um olhar mais atento no sentido de formação para os professores”, apontou Luciana.

Durante o desenvolvimento do projeto, promovido pela Secretaria Municipal da Educação, os professores tinham encontros quinzenais para receber capacitações e a partir daí os relatos foram colhidos e organizados entre os meses de março a junho de 2023. O livro é dividido em cinco partes, de acordo com os polos de educação em que as narrativas eram colhidas, ao todo são 90 depoimentos. As histórias  vão de relatos de infância, condições de vida, a situações de precariedade e momentos difíceis das trajetórias dos estudantes.  “Antes de serem relatos, eram uma denúncia”, disse Luciana, ao apontar  para as situações presentes no livro. “Eu tive a impressão que para alguns alunos isso também foi um um momento de cura, de  falar da violência que sofreu”, completa ela.

Aluna do EJA Bauru, Waldomira Faustini Rodrigues, aos 89 anos, comemorando o lançamento do livro  “Tecendo Fios da Memória”, Foto: Bianca Luísa

Estudantes como sujeitos

Durante a produção do livro, as coordenadoras de área do Departamento de Planejamento Projetos e Pesquisas Educacionais (DPPPE) perceberam que havia um apagamento social desses alunos e viram, no projeto,  um meio de levar essas vozes para além da sala de aula. Elas relataram que  muitos estudantes não se viam como produtor de conteúdo, havia uma dissociação entre o aluno e o valor da história a ser contada . “Alguns alunos não se sentiam capazes e não se viam como um sujeito que tem uma história para contar, que é o mais grave. Ele produz história, ele participa e ele não se via como esse sujeito”, conta Luciana. 

A formação de professores no Brasil ainda não abarca as demandas do sistema de educação para jovens e adultos. Isso fica ainda mais evidente quando a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não tem direcionamento para contextualizar ou até mesmo adequar a forma de ensino da EJA. Este fato influencia diretamente a forma em que o conteúdo chega aos discentes, com impactos sobre  a aprendizagem. 

 Segundo as coordenadoras de área envolvidas no projeto, este foi um dos fatores desafiadores na produção do livro. Elas dizem que tiveram que fazer um trabalho conjunto com as professoras para começarem essa discussão e trazerem um resultado que englobasse as habilidades presentes dentro da sala de aula. “Existe um ensino da gramática fora do contexto. Você sabe as regras, mas não sabe utilizá-las para falar e para escrever. Então a gente precisa rever. A forma como eu entendo o que é a língua é a forma como eu vou materializar a minha aula. Se eu sei que meu aluno é um falante da língua, eu preciso possibilitar que ele desenvolva as capacidades de linguagem para ter um falar para qualquer situação. Tenho que oferecer essas ferramentas, não estou descartando a gramática, ela faz parte, mas o problema é a forma como se ensina.”, apontou Luciana.  “Dependendo da forma como trazemos o conteúdo, acentuamos a desigualdade e não promovemos desenvolvimento.”, completou Eliane Morais, coordenadora de educação especial da Secretaria da Educação de Bauru.

O livro é um projeto que valoriza os elementos da fala, ultrapassando uma gramática normativa. Segundo as coordenadoras, as regras, normas e conteúdos passados em sala precisam ser adaptados para que o entendimento seja realmente efetivo e dê ferramentas para o aluno desenvolver as capacidades na escola. “O aluno tinha uma  riqueza para  levar para as aulas de língua, explorar e  fazer um processo de melhoramento tanto de fala  quanto de escrita. […] Ele tinha uma gramática viva ali saindo da boca, que precisava do apoio da escola para aquele discurso se tornar melhor”, explica Luciana.

 Acessibilidade

Durante a produção da obra, e a partir da demanda de um aluno de baixa visão, as coordenadoras identificaram a necessidade de construir uma versão falada do livro. Esta etapa do projeto contou com a participação do Biblioteca Falada, um Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão em Mídia e Acessibilidade da Unesp Bauru, o qual produziu a versão sonora da obra. “Refletindo, nós chegamos a conclusão de que não é uma questão para o aluno com deficiência, ou para uma situação específica, é para todos. O livro falado  vai permitir que até mesmo aqueles que ainda não fazem a leitura convencional consigam ter acesso a essa obra. A gente amplia muitas possibilidades a partir de um recurso acessível.”, explica Eliane Morais. 

Eliane conta que a preocupação com acessibilidade esteve presente em toda a elaboração da obra.   O processo exigiu, em alguns casos, trabalho de transcrição e assistência na escrita, a exemplo de um relato de estudante que foi feito em libras.  Mas isso não levou à identificação, na obra, dos alunos que possuem algum tipo de deficiência. Segundo Eliane, essa estratégia foi incluída para romper com um olhar estigmatizante ou até mesmo discriminatório diante dessas pessoas. “Olhamos para eficiência e não para deficiência da pessoa, valorizamos seu potencial”.

A obra foi financiada pela prefeitura de Bauru e  lançada pela editora Vivace.  Está disponível, de forma gratuita, no formato digital e em audiolivro, no site do EJA e no Spotify. O lançamento, no último dia 13 de novembro, foi acompanhado por um evento fechado aos alunos e professores do CEJA, que receberam  um exemplar impresso do livro e participaram de uma sessão de autógrafos.

Alunos comemoram  lançamento do livro “Tecendo Fios da Memória”, Foto: Bianca Luísa

As professoras esperam que o trabalho desenvolvido possa inspirar  pessoas a trazerem suas narrativas e desenvolverem mais projetos como esse.  Elas acreditam que o projeto tenha potencial para impactar a vida dos alunos, tornar a língua mais acessível e trazer uma reflexão sobre o modo como os professores que trabalham com o EJA trazem o conteúdo para a classe. “Nossa maior expectativa é na hora que esse livro estiver pronto e eles poderem materializar essa situação, pegar o livro e falar: ‘eu sou parte dessa autoria’, eu penso que esse é o impacto”, aponta Janaina Fernanda Gasparoto, coordenadora de alfabetização da secretaria de educação de Bauru.

Os estudantes estiveram envolvidos em todos os processos do projeto. Eliane explica que isso foi essencial para a realização do livro, porque as histórias eram deles e precisam ser contadas pelos próprios alunos. “Nada sobre nós, sem nós” foi uma frase que se destacou nesta jornada.

Autores  em sessão de autógrafos no Centro do Professorado Paulista, Foto: Bianca Luísa

 Eliane destaca a importância do papel da escola e de projetos que dialoguem com a sociedade. “A materialização desse livro é nada mais que transpor os muros da escola. Temos que falar para o mundo, essa é a contribuição social da escola para o mundo. O livro, com a voz desses alunos, ultrapassa os muros da escola”, reflete. “É como Paulo Freire diz: Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”, finaliza.

Serviço

O livro “Tecendo Fios da Memória” está disponível gratuitamente no site do EJA (Educação de Jovens e Adultos (google.com)) e no Spotify (https://open.spotify.com/show/2EtQWbCNzUn3MsAv57ih7u?si=7ae951e7cda14783)

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