Histórias sobre identidade, autonomia e autoestima ligadas pelo fio da sustentabilidade
Foi com essa motivação que Tábata Santos deu o passo inicial para o que hoje é a sua principal fonte de renda: o Brechó Afromix, ativo na cidade de Bauru há pelo menos 10 anos. Tábata é produtora de moda e desde sempre teve a rotina atravessada pela experiência do comércio varejista de da cidade, trabalhando em lojas e exercitando técnicas de venda. Mas sentia falta de algo que conversasse com a sua identidade. “Eu sempre fui muito boa vendedora, me comunicava muito bem, vendia muito bem, mas para pessoas brancas e que não eram parecidas comigo”, diz.

E foi à procura de algo “falasse a sua língua”, que a produtora começou sua marca. Antes de se configurar como brechó, o Afromix começou como um ateliê de acessórios artesanais de inspiração afro. Alguns desapegos e peças do próprio armário foram colocadas à venda com uma customização aqui e ali e, aos poucos, a venda de roupas de segunda mão foi incorporada à marca. Com uma curadoria afinada e voltada para a moda vintage, o brechó Afromix nasce no ano de 2018. “A ideia do brechó começou dessa forma, vendendo meus desapegos, na minha casa mesmo”, recorda. Enquanto mulher negra, Tábata queria dar vida a algo que sintetizasse a sua ancestralidade:
“Eu queria ser referência em Bauru, na minha região, de brechó negro”
(Tábata Santos do brechó Afromix)
Independente da motivação, a venda de objetos usados e peças de segunda mão é uma prática antiga. Segundo Lígia Ricardo, autora do artigo “O Passado e Presente: Um estudo sobre o consumo e uso de roupas de brechó”, a primeira loja desse tipo surgiu ainda no século XIX, no Rio de Janeiro, fundada por um comerciante chamado Belchior. No início, o comércio levava esse nome, até o termo “brechó” se popularizar.

Assim como Tábata, a história de outras empreendedoras do ramo coincide. Bruna Novelli criou o Garimpo da Frida em 2019, um brechó que leva a figura da artista e ativista mexicana Frida Kahlo no nome e na essência. Segundo Bruna, a identidade é baseada na artista e a curadoria bebe da mesma fonte: “Pensei em um acervo de roupas inspirado na Frida por conta de tudo que ela representa para as mulheres em si”. Se definindo como uma “garimpeira de mão cheia”, a dona do Garimpo da Frida começou vendendo suas próprias roupas pelas redes sociais e viu no brechó, uma oportunidade tanto de renda, quanto de reciclar e ressignificar peças.
Tábata Santos, dona do Afromix, conviveu de perto com a presença dos brechós e bazares desde a infância. “Sempre consumi de brechó por necessidade, que é uma característica da galera periférica”, relata. Antes mesmo da moda sustentável ser uma “moda”, o consumo de roupas de segunda mão é a realidade para muitas famílias, dentro e fora de casa. Tábata relata que sua mãe, com 5 filhos, sempre aderiu a esse tipo de consumo. “A gente fazia trocas entre irmãos e primos, foi uma coisa que sempre esteve presente na minha vida, até a fase adulta”, relembra.
Economia Circular
Independente da motivação que há por trás da criação de um brechó, um elemento é inegável: o comércio de roupas de segunda mão é peça coringa no guarda-roupa da sustentabilidade. Esse modelo faz oposição direta ao fast-fashion – padrão industrial cuja produção é feita em larga escala e por um baixo custo, no qual as roupas são “programadas” para o descarte a curto prazo. Em detrimento a esse cenário permeado pelos padrões industriais, a economia circular associa o desenvolvimento econômico ao uso saudável de recursos naturais. Na prática, a aplicação desse conceito visa priorizar insumos de caráter reciclável e renovável. É o que explica Luana Crispim, designer de moda e professora do curso de moda do Centro Universitário Sagrado Coração (Unisagrado) em Bauru:
Associado diretamente à economia circular, o trabalho dos brechós e bazares integra-se ao que é chamado de moda sustentável, uma abordagem de consumo que leva em consideração os impactos ambientais, sociais e econômicos dos produtos. Segundo Luana, a concepção de moda sustentável deve transcender o que entendemos por “eco”, e atingir integralmente o conceito de sustentabilidade. “O ecológico é um pedacinho do processo, a importância maior da moda sustentável é a social. Ela é social, econômica e ecológica. São os 3 pilares, e se não for, não é sustentável”, explica. Ou seja, é preciso jogar luz sobre os impactos ao meio ambiente, com a mesma intensidade em que se pensa em condições dignas de trabalho e geração de renda justa. “A moda é social porque é sobre pessoas e feita para pessoas“, acrescenta. Luana também é integrante do Crisálida, projeto de reaproveitamento têxtil que une o sustentável ao social.
Do casulo à crisálida
Ligado à Associação de Catadores de Recicláveis de Bauru e Região (ASCAM) , o Crisálida funciona como o “braço têxtil” do processo de reciclagem dos materiais que chegam aos ecopontos da Associação. Quando montantes de tecido e roupa começaram a chegar à Ascam misturados aos reciclados, surgiu uma questão: como reciclar produtos têxteis? E, assim, no ano de 2021, nasceu o Projeto Crisálida, com a missão de prolongar a vida daqueles tecidos, através de técnicas da reutilização e do artesanato.
A principal frente de atuação do Crisálida é a promoção de oficinas de artesanato nas mais diferentes técnicas: bordado, crochê, corte e costura, todas abertas à comunidade. Julia Goya, artesã e uma das integrantes fundadoras do Crisálida, destaca que as turmas que compõem as oficinas – em sua maioria mulheres — costumam ser “ecléticas”, o que contribui positivamente para o processo de aprendizagem. “Às vezes tem gente que já sabe a técnica, aí a gente só apresenta o material novo. Tem gente que não sabe a técnica, mas tem o interesse no consumo sustentável, então já sabe mais ou menos como funciona”, diz.



Por meio das oficinas, as alunas do Crisálida desenvolvem produtos em diversas segmentações (Foto: Reprodução/ Facebook)
É no momento em que o material têxtil chega aos ecopontos da Ascam que o trabalho do Crisálida começa. O primeiro passo é a coleta dos tecidos, que podem vir tanto de descarte, como de doações. Depois da coleta é feito um trabalho de higienização das roupas para que passem por uma curadoria. O processo de curadoria divide os tecidos em 3 categorias: a primeira delimita as roupas em bom estado que podem ser doadas, a segunda é para as peças que têm potencial para serem vendidas no Bazar do Crisálida – uma das fontes de renda do projeto. E, por fim, as roupas que não estão em condição de uso, mas podem se transformar em um novo produto. Esse último destino é onde se separam as matérias-primas para as oficinas de upcycling, técnica conhecida como “reutilização criativa”. Nesse processo, alguns retalhos soltos podem virar uma bolsa, uma camiseta “velha” pode derivar fios de malha, por exemplo – tudo em nome de uma liberdade criativa e sustentável.

Autonomia, Autoestima e Sustentabilidade
A principal função das oficinas promovidas pelo Crisálida é capacitar mulheres dentro do espectro da economia criativa e circular. Nesse contexto, o ensino e aprendizagem das técnicas de artesanato fazem ligação direta com a geração de renda e a autonomia das alunas. Segundo Julia, é interessante perceber o processo de evolução das turmas. “No começo elas [as alunas] falavam assim: ‘eu não consigo, não vai ficar bom, não vai ficar legal’. Elas não tinham essa segurança inicial”, relata. Porém, conforme o tempo passa e as interações se consolidam, cria-se uma confiança no próprio trabalho, baseada nos laços sociais e no amadurecimento criativo.
Outro aspecto importante é a geração de renda que o Crisálida proporciona às alunas. Após as oficinas, elas saem capacitadas para produzirem e comercializarem suas próprias criações. Segundo Julia, além do ensino das técnicas artesanais, o projeto também oferece apoio em questões como precificação e técnicas de venda. “A gente está aqui para apoiar, para dar esse empurrãozinho, sempre respeitando a decisão delas”, explica. O crisálida mantém uma loja física com os produtos feitos nas oficinas no Espaço Coletivo Vila, na Rua Antônio Alves, 16-15, Centro de Bauru.
