Histórias sobre identidade, autonomia e autoestima ligadas pelo fio da sustentabilidade

Por Raquel Sampaio

Foi com essa motivação que Tábata Santos deu o passo inicial para o que hoje é a sua principal fonte de renda: o Brechó Afromix, ativo na cidade de Bauru há pelo menos 10 anos. Tábata é produtora de moda e desde sempre teve a rotina atravessada pela experiência do comércio varejista de da cidade, trabalhando em lojas e exercitando técnicas de venda. Mas sentia falta de algo que conversasse com a sua identidade. “Eu sempre fui muito boa vendedora, me comunicava muito bem, vendia muito bem, mas para pessoas brancas e que não eram parecidas comigo”, diz.

Foto quadrada com fundo branco. No centro da imagem há brincos dispostos sobre um pires e um xícara de cerâmica. As jóias são douradas e prateadas
Tábata trabalhou exclusivamente com a produção de acessórios por 5 anos. (Foto: Reprodução/ Facebook)

E foi à procura de algo “falasse a sua língua”, que a produtora começou sua marca. Antes de se configurar como brechó, o Afromix começou como um ateliê de acessórios artesanais de inspiração afro. Alguns desapegos e peças do próprio armário foram colocadas à venda com uma customização aqui e ali e, aos poucos, a venda de roupas de segunda mão foi incorporada à marca. Com uma curadoria afinada e voltada para a moda vintage, o brechó Afromix nasce no ano de 2018. “A ideia do brechó começou dessa forma, vendendo meus desapegos, na minha casa mesmo”, recorda.  Enquanto mulher negra, Tábata queria dar vida a algo que sintetizasse a sua ancestralidade:

“Eu queria ser referência em Bauru, na minha região, de brechó negro”

(Tábata Santos do brechó Afromix)

Independente da motivação, a venda de objetos usados e peças de segunda mão é uma prática antiga. Segundo Lígia Ricardo, autora do artigo “O Passado e Presente: Um estudo sobre o consumo e uso de roupas de brechó”, a primeira loja desse tipo surgiu ainda no século XIX, no Rio de Janeiro, fundada por um comerciante chamado Belchior. No início, o comércio levava esse nome, até o termo “brechó” se popularizar. 

Foto da parte interna de um brechó. Na imagem há araras com roupas penduradas.
 Brechó Ponto Fixo, um dos mais tradicionais de Bauru, na ativa desde os anos 1980. (Foto: Raquel Sampaio).

Assim como Tábata, a história de outras empreendedoras do ramo coincide. Bruna Novelli criou o Garimpo da Frida em 2019, um brechó que leva a figura da artista e ativista mexicana Frida Kahlo no nome  e na essência. Segundo Bruna, a identidade é baseada na artista e a curadoria bebe da mesma fonte: “Pensei em um acervo de roupas inspirado na Frida por conta de tudo que ela representa para as mulheres em si”. Se definindo como uma “garimpeira de mão cheia”, a dona do Garimpo da Frida começou vendendo suas próprias roupas pelas redes sociais e viu no brechó, uma oportunidade tanto de renda, quanto de reciclar e ressignificar peças. 

Tábata Santos, dona do Afromix, conviveu de perto com a presença dos brechós e bazares desde a infância. “Sempre consumi de brechó por necessidade, que é uma característica da galera periférica”, relata. Antes mesmo da moda sustentável ser uma “moda”, o consumo de roupas de segunda mão é a realidade para muitas famílias, dentro e fora de casa. Tábata relata que sua mãe, com 5 filhos, sempre aderiu a esse tipo de consumo. “A gente fazia trocas entre irmãos e primos, foi uma coisa que sempre esteve presente na minha vida, até a fase adulta”, relembra. 

Economia Circular 

Independente da motivação que há por trás da criação de um brechó, um elemento é inegável: o comércio de roupas de segunda mão é  peça coringa no guarda-roupa da sustentabilidade. Esse modelo faz oposição direta ao fast-fashion – padrão industrial cuja produção é feita em larga escala e por um baixo custo, no qual as roupas são “programadas” para o descarte a curto prazo. Em detrimento a esse cenário permeado pelos padrões industriais, a economia circular associa o desenvolvimento econômico ao uso saudável de recursos naturais. Na prática, a aplicação desse conceito visa priorizar insumos de caráter reciclável e renovável. É o que explica Luana Crispim, designer de moda e professora do curso de moda do Centro Universitário Sagrado Coração (Unisagrado)  em Bauru: 

Associado diretamente à economia circular, o trabalho dos brechós e bazares integra-se ao que é chamado de moda sustentável, uma abordagem de consumo que leva em consideração os impactos ambientais, sociais e econômicos dos produtos. Segundo Luana, a concepção de moda sustentável deve transcender o que entendemos por “eco”, e atingir integralmente o conceito de sustentabilidade. “O ecológico é um pedacinho do processo, a importância maior da moda sustentável é a social. Ela é social, econômica e ecológica. São os 3 pilares, e se não for, não é sustentável”, explica. Ou seja, é preciso jogar luz sobre os impactos ao meio ambiente, com a mesma intensidade em que se pensa em condições dignas de trabalho e geração de renda justa. “A moda é social porque é sobre pessoas e feita para pessoas“, acrescenta. Luana também é integrante do Crisálida, projeto de reaproveitamento têxtil que une o sustentável ao social. 

Do casulo à crisálida

Ligado à Associação de Catadores de Recicláveis de Bauru e Região (ASCAM)  , o Crisálida funciona como o “braço têxtil” do processo de reciclagem dos materiais que chegam aos ecopontos da Associação. Quando montantes de tecido e roupa começaram a chegar à Ascam misturados aos reciclados, surgiu uma questão: como reciclar produtos têxteis? E, assim, no ano de 2021, nasceu o Projeto Crisálida, com a missão de prolongar a vida daqueles tecidos, através de técnicas da reutilização e do artesanato. 

A principal frente de atuação do Crisálida é a promoção de oficinas de artesanato nas mais diferentes técnicas: bordado, crochê, corte e costura, todas abertas à comunidade. Julia Goya, artesã e uma das integrantes fundadoras do Crisálida, destaca que as turmas que compõem as oficinas – em sua maioria mulheres — costumam ser “ecléticas”, o que contribui positivamente para o processo de aprendizagem. “Às vezes tem gente que já sabe a técnica, aí a gente só apresenta o material novo. Tem gente que não sabe a técnica, mas tem o interesse no consumo sustentável, então já sabe mais ou menos como funciona”, diz.

Por meio das oficinas, as alunas do Crisálida desenvolvem produtos em diversas segmentações (Foto: Reprodução/ Facebook)

É no momento em que o material têxtil chega aos ecopontos da Ascam que o trabalho do Crisálida começa. O primeiro passo é a coleta dos tecidos, que podem vir tanto de descarte, como de doações. Depois da coleta é feito um trabalho de higienização das roupas para que passem por uma curadoria. O processo de curadoria divide os tecidos em 3 categorias: a primeira delimita as roupas em bom estado que podem ser doadas, a segunda é para as peças que têm potencial para serem vendidas no Bazar do Crisálida – uma das fontes de renda do projeto. E, por fim, as roupas que não estão em condição de uso, mas podem se transformar em um novo produto. Esse último destino é onde se separam as matérias-primas para as oficinas de upcycling, técnica conhecida como “reutilização criativa”. Nesse processo, alguns retalhos soltos podem virar uma bolsa, uma camiseta “velha” pode derivar fios de malha, por exemplo – tudo em nome de uma liberdade criativa e sustentável. 

Autonomia, Autoestima e Sustentabilidade

A principal função das oficinas promovidas pelo Crisálida é capacitar mulheres dentro do espectro da economia criativa e circular. Nesse contexto, o ensino e aprendizagem das técnicas de artesanato fazem ligação direta com a geração de renda e a autonomia das alunas. Segundo Julia, é interessante perceber o processo de evolução das turmas. “No começo elas [as alunas] falavam assim: ‘eu não consigo, não vai ficar bom, não vai ficar legal’. Elas não tinham essa segurança inicial”, relata. Porém, conforme o tempo passa e as interações se consolidam, cria-se uma confiança no próprio trabalho, baseada nos laços sociais e no amadurecimento criativo. 

Outro aspecto importante é a geração de renda que o Crisálida proporciona às alunas. Após as oficinas, elas saem capacitadas para produzirem e comercializarem suas próprias criações. Segundo Julia, além do ensino das técnicas artesanais, o projeto também oferece apoio em questões como precificação e técnicas de venda. “A gente está aqui para apoiar, para dar esse empurrãozinho, sempre respeitando a decisão delas”, explica. O crisálida mantém uma loja física com os produtos feitos nas oficinas no Espaço Coletivo Vila, na Rua Antônio Alves, 16-15, Centro de Bauru. 

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