Quando o abandono está dentro de casa: o relato de uma ex-garota de programa que, abandonada pela própria família, foi buscar sustento nas ruas para criar seus três filhos

Por: Malu Oliveira.

Garotas de programa estão sempre na busca por segurança e dignidade, são mulheres que estão em um cenário social onde são humilhadas, passam por agressões e abusos todos os dias. Essa realidade vivida nas ruas pode se fomentar por diversos fatores, entre eles, a negligência familiar. As mulheres que ganham sua renda com a prostituição, tem seu histórico marcado por desavenças.

“A gente é perseguida. O pessoal fala que não, mas eles perseguem sim. Pode ver que ninguém quer uma puta dentro de casa”, diz Fernanda Dorneles (35), uma ex-garota de programa, que retrata a sua trajetória no ramo.

Fernanda Dorneles, que não quis mostrar o rosto. – Arquivo Pessoal.

Fernanda começou sua antiga carreira por um site famoso, onde virtualmente muitas garotas são anunciadas, e expõem suas fotos e vídeos. No website há a possibilidade de entrar em contato com as mulheres e, antes do encontro, as exigências do sexo são esclarecidas.

Entre as regras, podem estar: utilizar preservativos, não ter contato oral, orgasmo apenas uma vez, pagamento antecipado. E mesmo com o procedimento moderado, existem abusadores, que não respeitam as profissionais.

“Já tive muita experiência ruim de estar de quatro, e o cara arrancar a camisinha. Eu só vejo depois que gozou dentro”, explica ela, que não sabe quem é o “progenitor” da filha mais nova, e esse pode ter sido o motivo.

Contextualizando sua história, Fernanda Dorneles revela que sofreu abusos sexuais cometidos pelo irmão e pelo tio, desde os seus oito anos de idade e o estupro se estendeu até os seus 13 anos. A maioria dos abusos sexuais contra menores são cometidos por familiares, dentro de casa, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.

Assim como muitas mulheres, ela cresceu sem instrução sexual dentro de casa e isso contribuiu para que os abusos continuassem. “Não tinha ninguém pra conversar de sexo comigo, eu não sabia nada. A educação sexual é importantíssima”.

Quando criança, por falta de ensino, ela acreditava nas palavras de seu tio abusador. “Ele me dizia: ‘Eu acho que você tá até grávida. E o único jeito de você não ficar mais grávida é colocando um remédio na ponta do meu pinto.” A garota pediu ajuda, mas infelizmente, a família nunca acreditou nos seus relatos.

Na adolescência, os abusos cessaram, mas os traumas já estavam dentro de sua cabeça. As cicatrizes estavam em seu corpo. Aos 18 anos realizou o seu primeiro sexo consensual, que, pela falta de instrução, teve como consequência a gestação do seu primogênito e, depois de alguns anos, teve sua segunda filha. Com o passar do tempo, Fernanda encerrou o seu primeiro casamento, com o pai dos seus primeiros filhos, e, então solteira, resolveu criá-los sozinha.

Ela trabalhava em um posto de gasolina, mas o dinheiro não era o suficiente para pagar o aluguel, as contas, e colocar comida dentro de casa. Já estava cansada e fragilizada. A gota d’água foi quando o mesmo irmão que a estuprou, molestou a filha dela.

“Peguei meus meninos e fui na delegacia, fiz um boletim de ocorrência. Me vi sentada numa calçada, chorando. Eu falei: e agora?”. Ao confrontar seus familiares, eles novamente não ficaram do seu lado, e sua cabeça já estava um turbilhão com tanta responsabilidade e coisas acontecendo ao mesmo tempo. Foi quando ela tomou a decisão de se prostituir.

Começou a fazer programa com a intenção de prosseguir no anonimato, mas as pessoas que reconheceram Fernanda comentavam entre si e, aos poucos, ela foi exposta contra sua vontade. Com as pernas ansiosas, ela explica que depois de ter a sua fonte de renda revelada, nunca mais foi aceita: “Eu vi muita amiga se afastando de mim, família me olhando torto até hoje”, ela diz, sobre a mesma família que não a acolheu quando precisou.

Foto: Arquivo Pessoal.

Imersa na prostituição, sua vida já não era a mesma; ela chegou a ter relações sexuais com 35 caras em apenas um dia, usou muitas drogas, e teve que enfrentar situações que até hoje a tormentam.

A experiência que mais a marcou ocorreu quando ela defecou em um prato para o cliente comer. “Eu me senti fazendo parte de uma coisa muito horrível, de você tomar um banho e nada te limpar”. Apesar do dinheiro fácil, ainda não era a melhor alternativa para Fernanda. Não se sentia completa. Não se sentia feliz.

Hoje ela trabalha com vigilância pública e está afastada da prostituição há três anos, sem pretensão de voltar para o ramo. Ela quer sair de Mogi Das Cruzes, onde mora, e criar seus três filhos longe da cidade em que nasceu. Longe do julgamento.

Ao analisar a base de famílias desestruturadas, a ausência de afeto faz parte do histórico de diversas vidas turbulentas. A de Fernanda foi só um exemplo entre muitos outros. Pense o quão diferente seria se seus traumas fossem escutados e acolhidos desde o começo.

A pergunta que fica é: quanto vale a importância de ser ouvido para quem grita por socorro? Quantas dores poderiam ter sido evitadas se tivessem apoio familiar? O abandono destrói perspectivas de futuro e constrói mentes perturbadas. Mas Fernanda é a prova viva de que, mesmo vivendo tudo o que viveu, é possível encontrar uma saída.

4 comentários em “Eu, Fernanda, 35, estuprada, abandonada e perseguida

  1. Ótima matéria
    Esta é a realidade infelizmente..
    Crianças são abusadas na maioria das vezes dentro de casa.
    Falta políticas públicas onde coloquem os abusadores na cadeia com mais agilidade.

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