Entenda de onde vem o orgulho e a resistência da torcida do Liverpool F.C, um dos poucos clubes no mundo que faz questão de representar a identidade de sua cidade

Por Kauê Nunes

O Liverpool derrotou o Brentford por 1×0, em Anfield, no sábado (6), pela Premier League. Com gol de Mohamed Salah no início do jogo, os Reds ainda sonham com uma vaga na próxima edição da Liga dos Campeões. No entanto, a repercussão maior ficou por conta das manifestações da torcida nas arquibancadas do estádio.

Após a coroação do Rei Charles III, a Premier League “sugeriu fortemente” que os clubes prestassem homenagens ao novo rei. O problema é que a torcida do Liverpool possui histórico de negação aos símbolos britânicos, e o que se viu foram vaias enquanto “God Save the King” era tocado nos alto falantes.

Estudar a história da cidade de Liverpool ajuda a compreender esse comportamento. De acordo com o professor e doutor em Ciências da Comunicação José Carlos Marques, “o fato do clube levar o nome da cidade faz com que as comunidades identifiquem na instituição uma questão simbólica que é a própria identidade da região”.

Historicamente preterida, Liverpool possui uma cultura particular dentro de seu país. Com culinária, sotaque e hábitos distintos da maioria, além de composta por muitos imigrantes e localizada longe da capital Londres, a região sofria discriminação do restante da nação e seus cidadãos não se identificavam com o Reino Unido.


Scouse faz referência aos ensopados aguados que alimentavam os moradores de Liverpool a um século atrás. O termo era utilizado de maneira pejorativa por outros cidadãos britânicos e, posteriormente, reapropriado pelos Liverpoodlianos como sinal de orgulho de suas origens. Reprodução: Twitter.

Esse sentimento de rejeição aos costumes ingleses se acentuou ainda mais a partir de 1979, com a eleição de Margaret Thatcher como primeira-ministra do Reino Unido. Liverpool era uma cidade com ideais sindicalistas, trabalhistas e com uma forte veia popular, tudo o que Thatcher rejeitava. Através de suas políticas de privatizações, ela fechou diversas fábricas no país, acarretando em uma onda de desempregos, em especial na região de Liverpool.

Para o professor José Carlos, uma tragédia ocorrida nos anos 1980, na Bélgica, contribuiu para o aumento do desgaste entre Liverpool e a Dama de Ferro. “A tragédia de Heysel na final na Liga dos Campeões de 1985 entre Liverpool e Juventus foi um episódio marcante para a rixa entre Liverpool e Thatcher. Com a invasão dos hooligans ingleses ao espaço destinado aos torcedores italianos, diversas pessoas acabaram feridas e mortas. Essa foi a deixa para que Thatcher tomasse medidas que enfraquecessem os hooligans, promovendo uma gentrificação e afastando as camadas mais populares dos estádios”, diz.

O desastre de Hillsborough, em 1989, foi praticamente a pá de cal na reputação da ex-primeira-ministra. Na semifinal da FA Cup daquele ano, Liverpool e Nottingham Forest se enfrentavam em busca de uma vaga na final. Porém, o palco para o confronto era questionável, visto que o estádio de Hillsborough parecia não possuir a infraestrutura ideal para garantir a segurança das pessoas. Torcedores do Liverpool, que eram maioria, foram alocados para o setor visitante que, sabidamente, não conseguiria comportar a demanda. A tragédia estava anunciada. A polícia, sem saber como lidar com a situação, liberou a entrada para todos os torcedores. O que se viu a seguir foram cenas de pânico. Mais de 700 pessoas ficaram feridas e 96 foram mortas, vítimas de pisoteamento e da negligência policial.

Já não bastasse o luto vivido por Liverpool, as autoridades policiais entraram em um acordo com o governo para que o caso fosse abafado. Depoimentos foram adulterados e imagens das câmeras de seguranças desapareceram. O governo de Thatcher arquivou o caso. Além disso, o jornal “The Sun” fez uma abordagem imperdoável do assunto ao atribuir a culpa do incidente aos torcedores, alegando que eles teriam urinado nos policiais e saqueado os corpos no chão.

José Carlos acredita que “talvez, se esse desastre tivesse ocorrido em Londres, a atuação da mídia poderia ter sido diferente, sendo que o problema foi nitidamente de [falta de] organização das autoridades”.


Charge ilustrando a negligência policial e do governo Thatcher em relação ao desastre de Hillsborough. Reprodução: Bleacher Report.

Após longos 23 anos de muita luta por justiça, o governo britânico finalmente assumiu a culpa pelo ocorrido. O The Sun, em uma nova capa, agora pedia perdão por ter associado o crime à selvageria dos torcedores, mas a torcida não engoliu e até hoje leva faixas ao estádio em sinal de protesto contra o tablóide que, durante anos, ajudou a reforçar o preconceito que a cidade sofria.


Capa do “The Sun” após os ocorridos na tragédia de Hillsborough/Capa do “The Sun” tentando se redimir do vexame 23 anos após o incidente. Reprodução: Press Gazetta

Torcedores dos Reds levaram faixas ao estádio em 2013 para comemorar a morte da Dama de Ferro. Reprodução: Récord.

Finalmente, é interessante notar a relação da torcida dos Reds com a cidade e com questões sociais, e como isso demonstra mais uma vez que, sim, futebol e política coexistem. “Partimos de uma ideia equivocada de que uma atividade social não é uma atividade política. Muito se diz que o jogador, enquanto atleta profissional, deve se ater a jogar futebol e não discutir sobre política, pois há outros atores sociais responsáveis por isso, o que é uma bobagem”, comenta o professor Zeca.

Um comentário em “Liverpool, um time que se recusa a esquecer o passado

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