Por Carolina Bordin e Léa Secchi

A alavanca política dos massacres no contexto brasileiro

Nos últimos anos, no Brasil, a execução de ataques armados a escolas – muitos com motivação política e violenta – tem sido um fenômeno crescente. No ano de 2022, o caso ocorrido em Aracruz (ES) esteve em destaque, quando um jovem de 16 anos matou quatro pessoas com uma arma de fogo. No presente, em 2023, um adolescente de 13 anos causou pânico ao ferir seis vítimas na escola estadual Thomazia Montoro, zona oeste da cidade de São Paulo (SP). Criam-se, então, alardes relacionados aos perfis dos atacantes e suas reais motivações. Poderiam essas estar atreladas a algum viés político já proeminente em nosso país?

Crianças abaixadas em corredor durante tiroteio na Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro

Foto: Reprodução/Redes sociais

A ideologia de extrema direita aparece com frequência na mídia ao noticiar episódios como esses, em que seus símbolos são identificados em roupas e acessórios dos criminosos, como no caso aracruzense. Entretanto, tais influências não são só reivindicadas na imediação do ato, mas também em toda sua preparação, através de livros e objetos de estudos, ou ainda em postagens prévias dos autores na internet.

A influência das redes sociais na propagação de ideias extremistas e na incitação de ataques

São muitos os casos de atiradores que possuíam redes sociais e publicaram conteúdos perturbadores sobre armas, além de outras mensagens ameaçadoras. A grande influência dessas mídias na propagação de ideias extremistas e na incitação de ataques está relacionada a avanços tecnológicos que trazem consigo uma veiculação e troca de informações constantes, o que torna a internet um ambiente instável e perigoso. É plausível que, com a mudança na forma de socialização dos jovens, fóruns de discussão online tenham ganhado destaque ao encorajarem a formação de grupos antidemocráticos, ao mesmo passo que estabelecem um ambiente de acolhimento e pertencimento no âmbito virtual, em oposição ao que muitos adolescentes experienciam na escola. Isso faz com que haja um aumento de contato com ideais opressoras e radicais. 

A professora Verônica Sales Pereira, do Departamento de Ciências Humanas da Unesp/Bauru e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), menciona que pesquisas sobre o tema mostram como a evolução digital possibilitou o contato e reorganização entre grupos de extrema direita que, devido à proibição de sua organização, acabaram por ficar isolados e marginalizados da cena pública. 

“Esses fóruns encontram assim um espaço para a vocalização, a disseminação e a potencialização de discursos de ódio, reforçados pelo anonimato e o processo ainda inacabado de sua regulação”, acrescenta.

Figuras históricas de movimentos extremistas, como Adolf Hitler, possuem papel evidente nessa narrativa. Sendo incorporados em um processo de identificação, os autores dos crimes procuram repetir seu modo de agir como uma forma de demonstrar grandiosidade, utilizando como justificativa a defesa de um “bem maior”.

Verônica comenta que “lideranças populistas de extrema direita vocalizam esses discursos e os estimulam, como forma de reassegura-los”. O ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, surge como exemplo, ao ter representado uma crescente manifestação de ideias antidemocráticas no país, influenciando ataques e tentativas frustradas de atentados registradas nos últimos anos.

Imagem de atirador em escola na cidade de Aracruz (ES). Vestido com estampas militares e símbolo nazista. Nas mãos, porta uma arma

Foto: Reprodução / Câmera de Monitoramento

“No bolsonarismo há um discurso de caráter fascista que busca impor a integração, e quando não for possível, a eliminação do outro, da diferença; o estímulo à violência, ao pregar a solução dos conflitos não pelo diálogo ou pela mediação institucional, mas pelo uso de armas nas mãos de civis; e o desmonte de instituições que atuam na defesa dos direitos humanos. Certamente essas questões já existiam antes do bolsonarismo, mas o seu reforço contribui para um ambiente beligerante que estimula esses ataques”, opina a professora.

Tendo em mente as diferenças do contexto brasileiro, mas ainda projetando a metodologia e as similaridades do estudo “Elementos políticos nos tiroteios em escolas pós-Columbine na Europa e na América do Norte“, proposto por Leena Malkki, ao nosso país, devemos levar em conta que, como o frisado no artigo, ataques em escolas são sempre interpretados como atos não-políticos. 

Como distinguir atos com motivação política predominante de atos meramente violentos?

Mesmo assim, nem todos são diferentes de violência política e podem ser divididos em três categorias: tiroteios com comunicação abertamente política, onde o criminoso deixa para trás uma mensagem explicando seu ato, traçando um viés político claro e fazendo referências a pensadores, movimentos, personalidades, ou alguma terminologia política; tiroteios com referências a incidentes prévios, que não incluem uma explicação elaborada e politicamente alinhada, mas incluem referências claras a tiroteios antecedentes; e incidentes isolados, onde não são deixadas para trás quaisquer explicações aparelhadas politicamente e não há provas de referências explícitas a ataques anteriores.

Em casos onde há explícito caráter ideológico ou ainda forte influência de ataques anteriores, é possível notar que os transgressores usam atentados prévios como fonte de inspiração para seus atos. Tais incidentes podem ser nomeados como copycat crimes e sua principal motivação seria para o estabelecimento de um senso de tradição, continuidade e comunidade imaginária entre os atiradores e seus admiradores. Incidentes anteriores são usados como fonte guia porque deixaram de estar na consciência coletiva para serem reivindicados como atos políticos.

Leena complementa que, para que seja feita a diferenciação é necessária apuração acerca das referências já feitas pelo criminoso em sua comunicação: menções a pensadores políticos, ativistas, ideologias ou terminologia política. Também é fundamental analisar o histórico completo do autor, incluindo os antecedentes familiares, registros de saúde mental, as relações com os colegas, a situação escolar e indicativos de qualquer comportamento violento.

É necessário que existam evidências sugerindo interesse ou participação política. Ainda assim, é possível que haja mais casos onde o perpetrador possuía interesses políticos, mas isso não foi considerado relevante o suficiente para ser propagado pela perícia ou mídia. A natureza e a profundidade do interesse variam de caso para caso, como quando o autor do crime manifesta admiração por Hitler, mas não há provas conclusivas que indiquem uma familiaridade e um interesse mais profundos pelo pela ideologia.

Tentativa de traçar um perfil para os atiradores

De acordo com outro artigo, desta vez proposto por Caitlin M. Bonanno e Richard L. Levenson, que discute a “História, resultados teóricos e empíricos atuais e estratégias de prevenção relacionados à atiradores em escolas”, ainda que os atacantes estivessem envolvidos em algum comportamento alarmante antes do incidente e que tenham se sentido intimidados, ameaçados ou feridos por outros antes de cometerem o ataque, existe uma linha tênue que delimita e diferencia potenciais atiradores e atiradores eminentes.

Sabe-se que há tempos tenta-se traçar uma marcação definitiva para que essa distinção seja feita e então um perfil preciso seja criado. No entanto, de imediato tem-se em mente um estereótipo do autor transgressor, que o insinua como vítima de bullying e instável mentelmente. Mas ainda que o bullying não seja um pilar fundamental para o ato como constituído no imaginário coletivo, a rejeição e seus espelhamentos podem estar mais atrelados à identificação à uma comunidade extremista em meios digitais, pois gera uma segregação física não experienciada dentro da mentalidade digital. 

Caitlin e Richard mostram também que embora características como rejeição, marginalização, instabilidade mental, abusos físicos ou sexuais, isolamento social, ideação suicida ou depressiva, perda catastrófica, interesse em violência e acesso a armas desempenhem um papel na identificação do atirador num incidente de tiroteio em escola, e sejam agravantes a ser pontuados dessa forma, elas precisam de atenção não por demonstrarem indício de uma potencialidade violenta de forma direta, mas por serem fatores preocupantes à um indivíduo e sua rede de apoio. 

Imagem de criança isolada enquanto outras brincam

Foto: Huffpost

A percepção subjetiva de vitimização é também um fator crucial no caminho para a identificação de potenciais atiradores. As dinâmicas sociais instituídas no ambiente escolar podem, muitas vezes, segregar diversos tipos de alunos que já têm um conflito estabelecido com professores, o sistema escolar e social como um todo. Contudo, para que possíveis atacantes se tornarem atiradores, eles devem ter alguma proficiência e acesso a armas de fogo. 

Isso exprime o atentado como a solução para os problemas de identidade pessoal e autoestima do infrator ignorado e emasculado, que acredita que um tiroteio em massa lhe permitirá recuperar os sentimentos de poder, orgulho e masculinidade perdidos, podendo também conseguir atenção midiática. Não seriam essas demonstrações da inerência de indícios políticos-sociais já intrínsecos na mentalidade e ações do indivíduo transgressor, assim como também na sociedade em que esse vive? De certo, o conglomerado social afeta tanto o autor e seus comportamentos como o modo inverso.

Evidências ilustradas no estudo também sugerem que ataques desse tipo são essencialmente violência simbólica e possuem em comum com ataques terroristas o fato de serem cometidos com a intenção de mandar uma mensagem para um público maior do que suas vítimas imediatas. Os transgressores normalmente veem a mídia, a escola e a política democrática como sistemas que mantêm suas “repressões” internas e externas vivas. 

Atrelado a isso, a professora Verônica cita que frente às demandas e avanços políticos no reconhecimento dos direitos de grupos como as mulheres, negros, LGBTQIAP+,  há uma reação de outros grupos, em geral de homens, brancos, heteros, que veem seu lugar – e supostamente sua posição de poder – ameaçados. Para ela, “há um discurso que associa a masculinidade à imposição da força e ao uso da violência. Há também um discurso negacionista que valoriza experiências históricas autoritárias e totalitárias”.

Desenvolve-se então uma diferença entre um ataque orientado politicamente sob a ação de um único indivíduo, motivado principalmente por agravantes pessoais, e um ataque perpetrado por uma organização que se sabe ter objetivos políticos claros. A natureza divergente do caso de operadores solitários se opõe a de agentes conjuntos já direcionados por uma doutrina política unificada e mais legível. 

Na primeira ocorrência, ainda que os criminosos expliquem seu ato em termos ideológicos, suas reais motivações não são em fundamentalidade políticas, mas sim derivadas de problemas pessoais do próprio autor. Seus discursos são um mero encobrimento e uma tentativa de legitimar os seus atos violentos. Nem sempre é claro se o fascínio dos atiradores pela política se baseia mais no conteúdo das ideologias ou em suas manifestações agressivas e espectaculares. Vários deles possuem um fascínio por assassinos em massa, crimes brutais e tiroteios anteriores e o seu deslumbramento por ataques terroristas e regimes totalitários também pode ser visto sob este prisma. 

Imagem de professora fazendo saudação nazista dentro de sala de aula na cidade de Ponta Grossa (PR). Uma bandeira do Brasil pode ser vista

Foto: Reprodução/Redes Sociais

Posicionamentos éticos do professor em sala e medidas interventivas 

Questionada sobre a postura que um professor deve manter em sala de aula para que seus alunos não sejam coagidos a reproduzir discursos atrelados a ideias extremistas, sendo essa uma forma de aproximar ainda mais ambas as partes ao tratar do assunto, Dra Sales propõe: “É necessário permitir o debate democrático em sala de aula, mas sempre fundamentado pelo conhecimento, pelas ciências humanas. É importante trabalhar a memória e a história, especialmente, e o significado das experiências históricas autoritárias e totalitárias na vida de pessoas comuns. Ao mesmo tempo, ouvir as demandas desses jovens no seu próprio tempo, no hoje, no sentido de fazê-los não reagir, mas refletir sobre suas experiências pessoais e coletivas de forma autônoma”.

Vê-se que de forma corriqueira, a insegurança física dentro de ambientes de estudo é perpetuada com a imposição de medidas restritivas a plena vivência do aluno. E embora algumas ações como o uso de cartão de identificação e o monitoramento por câmeras de segurança sejam implementações palpáveis, outras podem ter o potencial de criar um ambiente escolar negativo, ressentindo alunos e os associando a um espaço semelhante a uma prisão. 

A docente pauta a efetividade de medidas resolutivas para o problema. “Acho que reforçar estratégias de comunicação acerca da importância do respeito às diferenças; ampliar os lugares de escuta desses jovens que veem a violência como forma de solução para os seus problemas, mas por vezes, às condições socioeconômicas familiares, à violência doméstica, à própria precariedade do ambiente escolar, entre outros. Isso implica a presença de psicólogos nas escolas e um trabalho conjunto com professores e familiares para criar um ambiente de escuta, diálogo, reconhecimento e pertencimento desses jovens”. Ela finaliza reforçando ainda que “é importante a responsabilização civil e criminal dos indivíduos formadores desses fóruns”.

O que se constata são múltiplos fatores de risco de diferentes domínios e origens, que interagem uns com os outros e tem a potencialidade de levar a ataques em escolas, que podem ser ou não embasados em um viés político, ainda que esses não sejam maioria no cenário brasileiro.  A verdadeira compreensão dos fatores que conduzem esses atos violentos só se dá a partir de uma análise cuidadosa dessas relações, para que se possa projetar as motivações ideológicas que embasam atos tão extremos como esses. 

FONTES:

Lunetas | Massacres em escolas e a cultura de violência entre as crianças

https://www.otempo.com.br/cidades/neonazismo-avanca-nas-escolas-do-brasil-veja-casos-recentes-que-sinalizam-isso-1.2774067

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/12/05/como-deter-os-ataques-neonazistas-nas-escolas-e-nas-universidades.htm

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0610zm35vo

https://www.estadao.com.br/educacao/por-que-o-neonazismo-tem-aparecido-em-escolas-e-universidades-e-o-que-fazer/

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-04/crescem-casos-de-ataques-em-escolas-especialistas-dizem-o-que-fazer

Leena Malkki (2014) Political Elements in Post-Columbine School Shootings in Europe and North America, Terrorism and Political Violence, 26:1, 185-210, DOI: 10.1080/09546553.2014.849933  / http://dx.doi.org/10.1080/09546553.2014.849933 

Bonanno, C. M., & Levenson, R. L. (2014). School Shooters: History, Current Theoretical and Empirical Findings, and Strategies for Prevention. SAGE Open, 4(1). https://doi.org/10.1177/2158244014525425 

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