Festival bauruense movimenta a cidade e evidencia o papel social do hip-hop nas periferias
Por Analice Cruz,
Bauru, dia 8 de novembro de 2025, 10h da manhã. Ao fundo, o Dj Defbreaks dita o tom do ambiente, deixando o clima animado e contagiante. Crianças e jovens ocupam o Sesc da cidade praticando passos de Breaking. A cada beat, os dançarinos improvisam e criam novas sequências. Os amigos e professores em volta vibram e aplaudem, tornando aquela roda viva, em movimento.
Aos poucos, a plateia se forma e ninguém consegue ficar parado. Ombros, pés e cabeças balançam discretamente acompanhando o compasso do som. Ao fundo, os veteranos fazem seus ensaios com a tranquilidade e a presença de quem dança há décadas. A diferença entre gerações era visível, mas foi essa coexistência que marcou a primeira batalha de breaking do festival e antecipou o que estava por vir nos próximos dias.

Entre os dias 7 e 16 de novembro aconteceu, em Bauru, a 13ª edição da Semana Municipal do Hip-hop. O evento, que é considerado o maior festival de hip-hop gratuito da América Latina, é organizado por coletivos independentes da cidade, como o 014bpm, o instituto FMC, MentBlindada e a Casa Amora, em união com membros da sociedade civil e a Secretaria Municipal da Cultura.
A edição deste ano contou com a presença de nomes nacionais como Gog, Coruja BC1 e Febem, além de diversos artistas locais, entre eles, a DJ Mozzão, a rapper Laryz MC, a grafiteira Azulla e o grupo de dança Wise Breakers.
A programação contemplou os cinco elementos do movimento hip-hop (DJ, Rap, Grafite, Breaking e Conhecimento) em diversos pontos da cidade como o Sesc, o Parque Vitória Régia e a Praça Rui Barbosa. Foram realizados shows, oficinas, batalhas de rima e breaking, desfile de moda periférica e projetos como o “Cada CEP uma TAG”, que levou o grafite às ruas do bairro Nobuji Nagasawa.
A primeira edição do festival aconteceu em 2011 através de ações do coletivo Acesso Popular. O produtor musical e integrante do coletivo Renato Magu conta como se deu a criação do evento na cidade.
“Tinha bastante gente praticando hip-hop na cidade, mas cada um fazendo o seu de forma isolada, e aí a gente resolveu criar uma organização que pudesse colar todo mundo e fazer um planejamento das ações do hip-hop”, afirma.
Dois anos depois, em 2013, através do projeto de lei capitaneado pelo mesmo coletivo que realizou as edições anteriores, a Câmara Municipal de Bauru instituiu a Semana do hip-hop como evento integrante do calendário oficial da cidade, tornando-a patrimônio cultural do município.
A existência de eventos como esse evidencia uma Bauru menos conservadora, que foge do imaginário tradicionalmente associado à cidade.
A Semana do Hip-hop afirma-se também como espaço de descoberta e valorização de talentos locais, onde as ruas se tornam palco e muitos artistas encontram as primeiras oportunidades de mostrarem seus trabalhos e de construírem identidade dentro do movimento. É o caso de Coruja BC1, um dos convidados desta edição, que reconhece o papel da cidade em sua carreira.
“O hip-hop é uma cultura em que você traz a base do território, ele molda a sua construção e a sua forma de se expressar. Bauru foi muito importante para mim. O Gustavo nasceu em Osasco e o Coruja BC1 nasceu em Bauru, eu sempre falo isso”, disse o rapper

A origem desse movimento ocorreu na década de 1970, no Bronx. Na época, o cenário era marcado pela atuação de gangues que travavam disputas territoriais em meio ao descaso urbano. Além disso, 45,8% da população era representada por comunidades negras e porto-riquenhas, que ainda lidavam com a segregação racial.
É nesse mesmo período que surgiram as chamadas house parties ou festas em casa, que eram organizadas por jovens e funcionavam como espaços de socialização e criatividade, o que ajudou a diminuir os conflitos e deram forma à cultura. É assim que Hip Hop nasce como um movimento, oferecendo àquela geração de jovens americanos novas formas de se comunicarem, de articularem suas identidades e reivindicarem suas políticas.
No Brasil, o berço da cultura hip-hop é a cidade de São Paulo, que na década de 80 passou a sediar os primeiros passos do que viria a ser um dos maiores e mais influentes movimentos de denúncia da história do país. Segundo dados do IBGE, a população da periferia paulistana mais do que dobrou entre 1970 e 1990, impulsionada pela migração e pela falta de políticas habitacionais.
Além disso, a violência policial atrelada ao racismo fazia parte do cotidiano da periferia. Foi nesse cenário que adolescentes passaram a ocupar espaços públicos do centro da cidade, transformando o local em ponto de encontro de B-boys, MCs, DJs e grafiteiros

Não por acaso, a história do Hip-hop revela um movimento que floresce em momentos de instabilidade e vulnerabilidade social, deixando claro que não se trata apenas de um elemento cultural, mas de um instrumento político.
“A gente tem essa coisa de reclamar e fazer militância, não é porque a gente quer as coisas do nosso jeito. É porque são fatos, são questões ignoradas há milênios na sociedade e que afetam a gente diretamente. Se a gente não falar, quem vai? A gente vai ser engolido”, afirma Glaucia Figueiredo, mais conhecida como DJ Mozzão.
Em Bauru, o festival afirma essa característica ao abrir espaços de denúncia dentro de suas programações artísticas. Neste ano, esteve presente nos eventos o coletivo bauruense “Vozes da Periferia”, formado por mães, pais e familiares de vítimas da violência policial na cidade. O grupo levou ao público relatos de luto e revolta, além de ressaltar a importância de lutar e resistir contra o silenciamento das periferias em Bauru.
Além de ocupar as ruas, a Semana do HipHop também promove atividades que se estendem aos espaços educacionais da cidade. É o caso do “Combo dos 5 elementos”, uma oficina realizada em escolas municipais de Bauru que apresenta às crianças os elementos do movimento. Em 2025, as escolas dos bairros José Regino, Santa Edwirges, Pousada da Esperança e Jardim TV foram contempladas com a oficina.
“Não tem nada mais gostoso do que botar a molecada para rimar, para dançar, pôr para fora as emoções, pôr para fora a raiva. Eles precisam de expressão, de vivência”, conta DJ Mozzão.
A trajetória do Hip-hop, do Bronx às ruas de Bauru, mostra que a ideia do movimento sempre ultrapassou a perspectiva artística e cultural, se tornando um mecanismo político de denúncia, representatividade e resistência.
Desde 2011, a Semana Municipal do Hip-hop de Bauru ocupa espaços públicos, aproxima gerações e reafirma o potencial crítico do movimento, como pontua o rapper Coruja BC1:
“A maioria que vem pro nosso movimento vem de um cenário de extrema violência, de extrema pobreza, e o hip-hop consegue reverter esse quadro. Eu costumo dizer que o hip-hop é a universidade que funcionou, que realmente democratizou o conhecimento”.
