Em meio a desafios financeiros e de locomoção, elas percorrem o Brasil para serem atendidas no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais

Por Júlia Santiago

“Quando a criança nasce, você tem que ter esse dom, essa sabedoria de que você vai ter que passar por isso. E a gente nunca pode desistir de uma outra pessoa”.

O relato acima é de Dona Vera Lúcia Pereira, uma mulher de 58 anos, tia e cuidadora de Emanuelle, uma adolescente diagnosticada com anomalia craniofacial. Ela é um exemplo de famílias dentre as muitas que cruzam o Brasil periodicamente até o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP), em Bauru, carinhosamente apelidado de Centrinho.

Anomalias Craniofaciais são deformidades em decorrência de traumas ou má formação congênita. A mais comum e conhecida é o lábio palatino, uma abertura que atinge a região do lábio e/ou do palato.

O HRAC foi fundado em 1967, após uma pesquisa identificar que 1 em cada 650 crianças na cidade de Bauru possuía uma fissura labiopalatina. Nesse mesmo ano, a Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) passou a integrar um centro de estudos interdepartamental, que além de fazer pesquisas, começou a oferecer atendimento a essas crianças.

Fachada da Unidade Centrinho do Hospital das Clínicas de Bauru.
Foto: Klaus Aires/Acervo USP (2021)

O impacto do diagnóstico

Dona Vera e sua família são de Primavera do Leste, uma cidade de 85 mil habitantes no interior de Mato Grosso, e frequentam o HRAC há 14 anos.

Gabrielle Lino Chacon, é mãe de Nick, de sete anos, que também nasceu com anomalias craniofaciais. Ambos, moradores de João Pessoa, na Paraíba, frequentam o Centrinho desde 2021.

O momento em que essas duas famílias receberam os diagnósticos das crianças foi marcado pelo mesmo sentimento: o susto. Sem qualquer anomalia detectada nos ultrassons, só descobriram a doença no nascimento das crianças, algo comum entre as síndromes craniofaciais.

“A gente, de fato, só descobriu quando ele nasceu. A minha gravidez foi de risco, teve aumento do líquido amniótico, e minha bolsa estourou em um exame e o Nick nasceu prematuro, com 32 semanas”, relata Gabrielle.

Quando nasceu, Nick tinha algumas malformações craniofaciais, como microtia bilateral – malformações nas orelhas -, fenda palatina e o queixo para trás. Contudo, o diagnóstico só foi admitido após dois meses: Sequência de Pierre Robin, uma malformação congênita rara que ocorre durante o desenvolvimento fetal, e que afeta a mandíbula e boca do bebê, dificultando sua respiração, amamentação e alimentação.

Diante disso, em seu 29° dia de vida, Nick teve que passar por uma traqueostomia, cirurgia que cria uma abertura na traqueia permitindo a passagem de ar até os pulmões. Posteriormente, devido ao diagnóstico, foi submetido a uma gastrostomia, para ajudar em sua alimentação.

Da mesma forma que a mãe de Nick, Vera e sua família viveram o mesmo cenário de incerteza e medo:

“Na época que a minha sobrinha nasceu, eu achava que aquilo era o fim do mundo, pensava ‘por que tinha acontecido isso’?”

Diferentemente de Nick, Emanuelle teve seu diagnóstico assim que nasceu: lábio leporino lateral, segmentando a parte superior de um dos lados de seu lábio. Aos 11 meses de vida de Emanuelle, a família já havia conseguido uma vaga no HRAC de Bauru, para iniciar o tratamento.

O caminho até Bauru

Atualmente, o Centrinho é 100% credenciado pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Os pacientes não residentes em Bauru podem contar com o Tratamento Fora de Domicílio (TFD). A opção por  essa modalidade garante uma ajuda de custo e de transporte para que os pacientes possam se deslocar entre  municípios ou estados, uma vez que o procedimento não esteja disponível em sua cidade natal. Além disso, é necessário um encaminhamento médico e que o caso exija tratamento de média ou alta complexidade.

Devido às exigências do programa, algumas famílias encontram dificuldades para conseguirem receber o auxílio do TFD, como foi o caso da paciente Emanuelle. Durante  14 anos, a família viajou até Bauru sem o auxílio do SUS, conquistado apenas em 2025.

“É o primeiro ano que eles estão dando uma ajuda de custo. Foi maravilhoso porque a gente não é rico, a gente trabalha pra sobreviver. E esse ano nós não estávamos preparados para vir”, conta Vera.

Ela comenta que, nos anos anteriores, quando ainda não contava com o auxílio, a família – que vive a mais de 1.160km de Bauru – teve grande dificuldade de arcar com os custos para o tratamento da sobrinha.

 “Foi um sacrifício terrível. A gente teve muito apoio da família e da cidade, fizemos uma pastelada e aí conseguimos vir, viemos tudo de particular. Mas não é fácil”.

Além das complicações com deslocamento e estadia, a questão financeira também determina quem vai acompanhar, ou não, o paciente até o hospital. Foi essa limitação que fez Dona Vera se tornar a principal acompanhante de Emanuelle nas viagens, e uma segunda mãe nos momentos de tratamento.

Já para a família nativa de João Pessoa, a ajuda do TFD é garantida desde a primeira vinda de Nick até Bauru. O recurso ofertado pela Secretaria da Saúde da Paraíba oferece três passagens para a família – diferentemente do caso de Emanuelle, em que o programa só disponibiliza duas passagens. Os gastos da família de Nick são com alimentação e hospedagem. Entretanto, Marcel Chacon, pai da criança, destaca que se deslocar por 2.802km  não é uma tarefa fácil. 

“A gente enfrenta um dia todo de viagem. Já pegamos três aviões, já pegamos uma van. Às vezes a companhia aérea cancela o voo, então temos que pegar uma van para Campinas, para aí pegar o voo para Bauru”, relata.

A demanda de Nick até Bauru é um pouco maior que a de Emanuelle. Enquanto ele precisa vir até o Centrinho duas vezes por ano, a sobrinha de Vera vem a cada três anos.  Por esse motivo, Gabrielle e Marcel precisam de maior flexibilidade em suas agendas. 

“Nós somos autônomos, então isso é bom e ruim ao mesmo tempo. É bom porque a gente não tem vínculo empregatício, então temos essa flexibilidade de poder ir quando tiver que ir. Mas o ruim é que, quando estamos aí, nossa renda para. Então, geralmente, quando a gente vai, organizamos rifas para arrecadarmos uma graninha para poder segurar os custos”.

Redes de Apoio

O Hospital localizado no bairro Vila Nova Cidade Universitária é cercado por pequenas pousadas que buscam atender essas famílias que cruzam o Brasil até Bauru.

Evelyn Merola, dona da Pousada do Tio Zé, com três unidades em Bauru, conta que essas estadias vão muito além de um local só para passar a noite, mas sim um ambiente de conexão e de compartilhamento de vivências.

“Muitas mães vêm achando que estão com um problema gigantesco, aí chegam aqui e vêem outras mães com suas crianças. Então, assim, a interação delas é bem legal, elas viram amigas. Uma mãe conta a história  para a outra, elas se apoiam”.

Dona Vera é uma das hóspedes de Evelyn desde o começo do tratamento de sua sobrinha. Ela também reforça  a importância da conexão estabelecida com outras famílias : “a gente faz amizade, troca experiências, fala bastante um do outro, as dificuldades, as diferenças. A gente pega conexão com as outras pessoas”.

A troca de experiências também vem por meio das plataformas digitais, através de fóruns no Facebook e grupo de mães. Foi assim que os  pais do Nick tiveram o primeiro contato com outras famílias de filhos atípicos.

“No início da vida de Nick, era tudo muito escuro, a gente não sabia o que esperar do futuro. Quando ele nasceu, por uns longos meses, eu não fazia parte de nenhum grupo, eu nem conhecia. Foi no Facebook que eu vi que tinha um fórum, aí dei uma olhada e entrei no link. Mas não ter com quem conversar, faz falta pra gente. A partir do momento que eu entrei nesse grupo, tudo mudou, conheci coisas novas”, diz Gabrielle.

Inspirados por essa ideia de informar e ajudar pessoas que passam pela mesma experiência, Gabrielle e Marcel criaram um canal no YouTube e um perfil no Instagram voltado à famílias com crianças com anomalias craniofaciais. 

“Nosso Mundo com o Nick” é uma página com 2.970 seguidores no Instagram e 116 no YouTube. Os pais de Nick buscam relatar as particularidades da vida de seu filho, sua trajetória e vivências, além de seus processos de tratamento em Bauru.

“Nessa jornada atípica, esse senso de comunidade das famílias atípicas, esse senso de ajudar, é o que mais dá força. Foi o que nos incentivou também a criar o Instagram, passar um pouco do que a gente vive”, comenta Marcel.

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