Grupo de trabalho elabora proposta de diretrizes, critérios e parâmetros para a adoção de sistema de reserva de vagas nos concursos públicos da universidade; resultados estão previstos para o final de 2026 

Por Denalyn Oliveira 

Em 7 de julho de 2025, a UNESP (Universidade Estadual Paulista) publicou a Portaria nº 93, que criou um Grupo de Trabalho (GT) para implementar sistema de reserva de vagas para pessoas negras em concursos docentes. A presença de professores autodeclarados negros na universidade ainda é mínima.  Atualmente, a contratação ocorre por meio de concurso público, definido por departamento e área de conhecimento, para preencher uma ou duas vagas, o que dificulta a implementação de uma política de cotas, como explica a professora doutora Maria Valéria Barbosa, integrante da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da instituição (Proade).  A professora é a coordenadora do grupo de trabalho instituído pela portaria, que deve  apresentar em até seis meses  uma proposta de diretrizes, critérios e parâmetros para a adoção de sistema de reserva de vagas para pessoas negras (pretas e pardas, conforme a classificação do IBGE) nos concursos públicos para cargos docentes da Unesp.

Segundo Maria Valéria,  depois de ser discutido e elaborado, o projeto  será transferido para o CEPE (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão Universitária da Universidade Estadual Paulista), órgão colegiado responsável por deliberar sobre questões acadêmicas e institucionais, e para o CO (Conselho Universitário). Um longo percurso que está previsto para ter resultados no final de 2026.

Em 2014, foi  institucionalizada a lei nº 12.990 no Brasil, que determinou a obrigatoriedade da reserva de vagas para pessoas negras em concursos para cargos efetivos em autarquias federais, válida para contratação igual ou acima de 3 professores. Como autarquia estadual, a Unesp não está diretamente submetida à lei federal de cotas destinada a concursos públicos, mas a criação do GT em 2025 evidencia a existência de lacunas para a valorização do ingresso  de pessoas negras em cargos no magistério superior.

“A gente também não tem um censo. Não sabemos quantos somos no interior da Unesp hoje. Então isso acaba fazendo toda a diferença para quem quer pensar em políticas de inclusão” afirma Valéria.

Em outras universidades do Brasil, foram implementados diferentes sistemas de contratação de professores que auxiliam no acesso da população negra e parda à carreira docente. Em novembro de 2024, o Conselho Universitário da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovou duas propostas que instituíram os programas piloto de reserva de vagas de cargos públicos de professores doutores, da carreira do magistério superior, para candidatos pretos e pardos (PP) e para pessoas com deficiência (PCD).

O programa estabeleceu a reserva de 24 cargos para candidatos pretos e pardos, um para cada Unidade de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade. O número é o equivalente a 20% do total de 120 vagas distribuídas entre as unidades para abertura de concursos públicos. Mesmo a Unicamp não sendo uma autarquia federal, a porcentagem seguiu a determinação da Lei 12.990/2014.  As vagas foram disponibilizadas em concursos abertos exclusivamente para candidatos PP e contemplaram disciplinas e áreas de conhecimento gerais.

Outra instituição de ensino superior  pública paulista citada pela professora Maria Valéria Barbosa foi a Universidade Federal do ABC (UFABC) que aprovou no início de junho a reserva de 40% das vagas para professores negros em seus processos seletivos.  A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia também ampliou para 40% a reserva de vagas para candidatos pretos e pardos em concursos de docentes em fevereiro deste ano.

Em junho de 2025, o presidente  Luiz Inácio Lula da Silva sancionou o novo projeto de lei que renovou a lei 12.990/2014 e ampliou as cotas para pessoas negras em concursos públicos de 20% para 30%. Embora essa lei esteja em vigência há mais de uma década, as universidades passaram a se mobilizar recentemente para uma mudança estrutural na presença de docentes negros.

A Unesp aplica a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) na graduação desde 2012, ainda que a exigência do texto tenha sido  direcionada às universidades federais.  A presença de mais alunos e alunas negros nos cursos superiores não foi acompanhada, na mesma medida, por maior enegrecimento do corpo docente.

Uma lógica perversa 

Após a tão desejada aprovação no vestibular, uma série de condições materiais e simbólicas continua determinando a experiência do jovem negro no ensino superior. O sistema de cotas se encarrega de auxiliar no acesso à universidade, mas ainda não garante a permanência desses alunos no meio acadêmico.

“Para construir uma carreira acadêmica você tem que ter um suporte familiar, um suporte social, um suporte político, que ele [jovem negro] não tem.  Não é porque ele é incapacitado, não tem porque a lógica do sistema é para realmente rejeitá-lo”,  destaca o professor Juarez Tadeu de Paula Xavier, diretor  da FAAC (Faculdade de Artes, Arquitetura, Urbanismo, Comunicação e Design) de Bauru. Essa é uma das causas que resulta na tímida  presença de pessoas negras no corpo docente.

“Primeiro você coloca o jovem de classe média branca em posições que ele possa entrar na universidade e manter-se na universidade, fazer o seu curso, seu mestrado, seu doutorado e depois concorrer a uma vaga. E você tem o jovem pobre e negro, que não tem política de ação afirmativa e não tem como se manter na universidade., Então a lógica do sistema é essa e é por isso que ele é perverso.”

As bolsas de assistência estudantil não são eficazes na promoção da equidade racial porque não consideram que a população negra segue em severa desvantagem, seja no acesso à educação básica, no acesso à educação superior ou no mercado de trabalho.  Isso influencia na vida acadêmica do estudante. No Brasil, o percentual de jovens pretos e pardos matriculados no ensino médio no ano de 2022 foi o mesmo de brancos dez anos antes, segundo uma pesquisa do IBGE de 2023. Enquanto 61% dos pretos concluíram o ensino médio, 75,3% dos brancos realizaram o feito. A pesquisa  também aponta que o número de estudantes negros que concluiram o ensino médio era de seis a cada 10 jovens, níveis semelhantes aos que alunos brancos já tinham 10 anos antes.

“Ele [o jovem negro] compõe a renda da família, ele trabalha, ele é a referência dentro de casa. Não fez internacionalização, não fez intercâmbio, não fala uma ou duas línguas estrangeiras”, afirma Juarez. Para o diretor, uma série de circunstâncias vividas por esses estudantes impede que eles usufruam plenamente do ambiente universitário. Isso inclui, por exemplo, a dificuldade de participar de projetos de extensão, atividades realizadas fora do período de aulas, mas que são obrigatórias para a graduação.

Segundo Juarez,  é um processo doloroso para alunos negros lidar com a defasagem de aprendizado adquirida nas escolas públicas em contradição com o rigor acadêmico exigido pela  pesquisa, ter de conciliar  trabalho e faculdade e enfrentar o racismo estrutural ao qual estão expostos. Isso pode resultar no desencorajamento aos estudos e até mesmo a evasão.

A experiência em um ambiente universitário  majoritariamente branco também configura um obstáculo para a permanência, como explica o professor.  “ É um espaço clássico da branquitude, da classe média branca. E usam todos os mecanismos para impedir que os negros cheguem nessa estrutura. Então, por exemplo, a gente adotou a política de ação afirmativa na graduação. Por que não adotamos na pós-graduação? A gente adotou na graduação, não adotou na pós-graduação e não adotou nos cargos eletivos. Então, tem poucos negros com posição de professores titulares. E tem poucos negros que são líderes de grupos de pesquisa com captação de recursos, porque a temática racial é a mais silenciada entre as questões de pesquisa”, explica.

A ausência de representação de professores negros na instituição pode afetar a identificação dos estudantes com o corpo docente e seu interesse na produção de conhecimento. A professora coordenadora do NUPE (Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão) realiza um trabalho em prol do desenvolvimento da leitura, pesquisa e extensão de jovens que integram o coletivo . Ela descreve suas dificuldades com essa demanda.

“Eu percebi que a leitura, até por não ser algo da prática corriqueira, não estava funcionando. Mas claro que a gente precisa fazer um letramento. A gente precisa discutir os autores. E aí eu fui tentando incentivar trazendo alguém. Quem é importante para esse grupo? Vamos trazer alguém para falar com o grupo sobre essas questões.”

A docente relata que, em 2024, acompanhou alguns orientandos no congresso de iniciação científica da Unesp, e esses eram os únicos alunos negros do evento. E mesmo aqueles que compareceram  no ano anterior não avançaram no campo de pesquisa em 2025. São situações que demonstram que a baixa autoestima reflete nos estudantes, na pesquisa e na sala de aula.

“Vários alunos relataram que não se sentem à vontade para falar em sala de aula, levantar a mão e falar em sala de aula, porque sabem da receptividade do professor”, diz. A professora afirma que o sentimento de não pertencimento é desenvolvido durante toda a vida do estudante e não só na universidade.

Apesar disso, Priscila possui uma perspectiva otimista acerca do tema. Descreve o aumento, ainda que lento, de professores negros nas universidades federais após a institucionalização da politica de cotas em 2012, Segundo o Inep, a parcela de docentes pretos ou pardos subiu de 11,7% em 2014 para 15,8% em 2019.

“Esses alunos entram na universidade, fazem mestrado, fazem doutorado, passam nos concursos e aí a coisa começa a mudar. Então você precisa de, no mínimo, 10 anos para a coisa mudar. Aí, sim, eu começo a criar meus grupos de pesquisa que vão falar do que me interessa”. Para a professora o aumento de docentes negros na Unesp deve ser gradual, oferecendo suporte para os alunos negros e pardos e para os professores brancos que desejam se juntar a pesquisas de tematica racial.

Segundo o dado mais recente do IBGE, a população autodeclarada preta ou parda corresponde a 55,5% dos brasileiros. Para Priscila, esse cenário evidencia a necessidade de ampliar o corpo docente negro para, no mínimo, 50%. A docente, no entanto, ressalta que o objetivo vai além da representatividade numérica: ela defende a construção de um ambiente de equilíbrio, baseado na decolonialidade.

O estímulo à produção acadêmica entre jovens negros é essencial para o enegrecimento do corpo docente. Para Juarez, entretanto, não basta apenas ampliar o acesso a esses estudantes: é urgente acolher suas temáticas, trajetórias e experiências como parte legítima da produção de conhecimento dentro da universidade. “Na iniciação científica, a gente vê temas sobre a questão racial, a questão da misoginia, a  questão LGBTQIA +, questões que nós não víamos antes, então isso é fruto dos alunos. Mas adianta pouco se eles chegam com essa temática e não tem quem orientar.”

O professor destaca que uma estrutura docente preparada para acompanhar os estudantes em suas pesquisas é essencial para a formação de pesquisadores negros aptos a disputar cargos, participar de congressos e contribuir de forma ativa para a produção de conhecimento.  “Um professor que não conhece a literatura negra, não conhece as principais referências negras, tende a fazer a orientação do aluno negro como se fosse um aluno branco. Então precisa ter um ciclo que vai se reproduzindo. Professores negros com a capacidade e competência para orientar. Alunos negros com disposição para fazer esse processo e com estabilidade na universidade. Para poder ter um grupo de pessoas que possam fazer isso no futuro.”

Responsabilidade com as gerações futuras

O professor Juarez Tadeu de Paula Xavier defende que a resistência negra dentro da universidade depende da prática do aquilombamento:,  reunir docentes, estudantes e servidores técnico-administrativos em torno de trocas afetivas, debates e ações políticas que fortaleçam a comunidade. Para ele, essa organização coletiva é essencial diante do racismo estrutural que atravessa o cotidiano acadêmico. “Porque se a gente não preservar nossa saúde mental, nós não conseguiremos lidar com isso. É um jogo muito duro”, afirma o diretor.

Juarez explica que manter espaços de apoio e ação, seja por meio de pesquisa,  extensão e participação em coletivos, não elimina a dor causada pela violência racial, mas ajuda a compreendê-la e compartilhá-la. Ele reconhece esse conflito em sua trajetória.  “Eu entendo perfeitamente a resistencia que muitas pessoas têm a um diretor negro. Não aceito, enfrento quando é possível de uma forma muito assertiva, mas compreendo. Não me iludo.”

Priscila  lembra que o Nupe começou a ser pensado ainda na década de 1980 e levou cerca de vinte anos para se tornar realidade. Hoje, o núcleo não está ativo em todas as unidades, devido a falta de docentes dispostos a assumir sua coordenação. Para ela, a existência do Nupe na Unesp Bauru simboliza o esforço de manter vivas as conquistas realizadas pela comunidade.

Ocupar a universidade, na visão dela, não significa concluir uma trajetória, mas assumir uma nova responsabilidade com as gerações futuras. “A gente que de alguma forma conseguiu chegar na universidade pública precisa continuar lutando pelos nossos”, reitera.

 

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