Uma madrugada gelada de veludo, de volúpia, de vermelho. Os clientes saem noite adentro e as histórias permanecem, cimentadas atrás das paredes do cabaré e presas nos punhos firmes das mulheres. Existem grandes bastidores do outro lado do palco que é ser garota de programa, e Karen e Bruna narram as suas e outras realidades.
Por Isabela Marquesi

Foto: Isabela Marquesi
Cabaré Brasil, entrada pelos fundos
São os dizeres em um muro vermelho na beira da rodovia, quase no fim ou quase no começo de Bauru; depende do sentido de onde se vem. Faz-se uma grande volta por estradas de terra até a entrada surgir quase no soslaio dos olhos. A recepção é comemorada por um mar de luzes de todas as cores, vibrantes, dançando no chão de cimento da garagem um samba que acorda a noite.
Na entrada da casa noturna, carpete vermelho e paredes decoradas com fotos de mulheres posando. No batente de cada portal, cortinas de luzes coloridas. No interior, mesa de sinuca, barra para pole dance, o bar e um mar de bancos de veludo vermelho. Nos bancos, homens jovens, homens mais velhos, homens debruçados sobre alguma mulher. Uma cruz pendurada ao lado do palco.
Duas garotas conversam em um banco mais aos fundos, em frente a um corredor com quartos de portas fechadas e próximo ao balcão do bar – ao lado passa uma mulher levando um homem pela mão até um dos quartos. Elas se divertem com a ideia de uma entrevista.

Foto: Kelly Naphtali
As atrizes
Karen conta que esse não é seu nome real, e sim seu nome de trabalho. Ela veio de Belém do Pará, onde é cabeleireira e trabalha com venda de roupas e para onde retorna, geralmente, em intervalos de dois a três meses. Aqui em Bauru, ela preserva sua identidade como garota de programa: “eu uso duas vidas separadas. Aqui [em Belém] eu trabalho, aqui eu sou mãe, aqui eu sou filha, aqui eu sou família, então, para cá, para onde eu não moro, só venho a trabalho, fica mais fácil”.
Ela se senta de pernas cruzadas em um sofá na parte de fora do cabaré, vestindo por cima de um vestido preto um casaco que a protege do vento gelado das duas horas da manhã. No frio da garagem banhada de luzes dançantes, ela conta como começou a trabalhar com programas, há três anos.
Quando tinha 27 anos, uma amiga a levou para o trabalho de uma noite: “ah, foi bem difícil, porque nada que a gente faça, quando tá conhecendo alguém, ficando, é igual quando você vai pra ganhar dinheiro, né? Porque ali você tá fazendo uma coisa forçada, obrigatoriamente necessária pelo dinheiro”.
E o dinheiro é sempre quem segura as rédeas. Karen encontrou uma oportunidade de arcar com os custos de sua casa e de sua vida como mãe solteira, algo insustentável em seu antigo emprego como segurança.
Com o passar do tempo, o trabalho que ela fazia esporadicamente em sua cidade natal quando precisava de dinheiro tornou-se integral quando chegou em Bauru através de outra amiga, que também trabalhava com programa.
Um pop vindo da parte de dentro da boate engole a entrevistada, os cabelos alourados, as extensões de cílios nos olhos castanhos, o salto preto e suas palavras sucintas e diretas. Ela desvia o olhar quando pensa no primeiro programa que fez.
“Nossa, foi terrível. Foi com um velho fazendeiro rico que tinha lá na boate”. Karen relembra um homem ignorante e estúpido, cuja agressividade a fez arrumar suas coisas e voltar chorando para casa após o programa. “Eu estava me sentindo tão mal comigo mesma, me senti muito suja. Cheguei em casa, tomei horas e horas de banho, me lavava, chorava”.
Karen se perguntava porque fizera aquilo. Afastou-se por alguns dias, e o dono da boate lhe questionava quando voltaria à casa noturna, enquanto ela trabalhava novamente como segurança. Isso, porém, não era suficiente para sustentá-la.
Ela voltou. Recebeu apoio de meninas mais experientes, que aconselhavam formas de deixar os pensamentos mais tranquilos, beber algo para soltar-se mais, e com o tempo ela passou a levar o serviço com mais fluidez.
“A gente parece que se sente sujo, assim, sabe? Fica com nojo da gente mesmo”
Ainda depois de anos de experiência, Karen comenta que às vezes sente a consciência pesar: “dá muita vontade da gente sair disso. Só que, na verdade, eu não tive forças e dinheiro o suficiente”. Ela está esperando juntar dinheiro para abrir seu próprio salão e abandonar o trabalho com programas: “aí eu já vou poder me sentir bem comigo mesma, vou poder estar postando sobre o meu trabalho, sobre as minhas coisas. Tudo que eu sempre gostei de fazer”.
Uma pessoa ou outra passa pela porta ao lado do sofá exposto ao sereno. Uma saia curta, uma bota alta, um cabelo comprido, um vestido vermelho. Homens, cigarros, garrafas de cerveja; é madrugada de uma terça gelada, e o cabaré está quase fechando, mas a música não para de tocar.
Os bêbados entram em seus carros e saem dirigindo noite adentro, algumas garotas ousam espiar o lado de fora, mas logo se recolhem com frio. “Não tá com frio, não?”, uma delas passa e pergunta à Bruna, antes de entrar.
Bruna – e esse também não é seu nome real – abraça a si mesma, apoiada sobre o encosto aveludado. Ao contrário de Karen, ela não usa uma blusa de frio para proteger os braços e o colo da brisa, deixando exposta uma pele desenhada de tatuagens.
Ela veio de Manaus e também foi uma amiga que apresentou-lhe o serviço com programa. Compartilha que julgava pessoas que se sujeitam a esse tipo de trabalho, mas a necessidade de sustentar a si mesma e a seu filho exigiu o rompimento de suas convicções: “eu falava assim: ‘ah, nunca vou me vender por dinheiro, nunca vou fazer nada por dinheiro’, e eu acabei tendo que entrar”. Ela foi mãe jovem, aos 15, e trabalha para ajudar sua família. “Eu sempre botei meu filho acima de tudo”.
E agora, sem contar as pausas que ela fez nesse serviço, ela carrega uma experiência de oito anos. Adequou-se à rotina de perder o sono da noite, acordar tarde, almoçar tarde, arrumar-se para o trabalho noturno e voltar para casa de madrugada.
Bruna mora com outras garotas que trabalham no Cabaré Brasil; elas são conduzidas até o local e de volta para a residência juntas no mesmo carro, que, nesse momento, às duas e alguma coisa da manhã, espera no meio da garagem as mulheres que vão entrando apressadas.
Ela ri dizendo que, quando chega em casa, só dorme. Tudo o que Bruna diz sai de uma boca sorridente, inclusive quando relembra seu primeiro programa, quando ela tinha dezoito anos:
“Eu lembro até hoje, foi com um velho. Nossa, eu chorei tanto, chorei tanto. Ele em cima de mim, e eu chorando. Só que ele não vê, sabe? Ele não tá nem aí, tipo, ‘eu só tô te pagando’” – ela dá de ombros e bate uma mão na outra.

Bruna Foto: Isabela Marquesi
Usar o próprio corpo como ferramenta de trabalho significa também esculpir uma nova identidade para si mesma. No palco de um cabaré vem à vida uma nova personagem a cada homem que surge cambaleando em sua direção.
Karen fala que “você tem que fingir ser um personagem, você tem que ser simpática e agradar o cliente. Às vezes você não quer aquilo, mas você necessariamente tá precisando do dinheiro”.
“E às vezes até mentir que tá gostando”, completa Bruna. Ela conta que às vezes precisa “fazer uma cena” quando o cliente se recusa a pagar devidamente.
E o bem-estar das garotas está, muitas vezes, acorrentado ao bom caráter dos clientes. Karen explica que a experiência leva a um novo olhar sobre o sentimento de culpa:
“A gente começa sempre por uma necessidade de dinheiro, então é muito difícil porque aquilo ali a gente tá fazendo como se tivesse sido obrigada, né? Então a gente acaba se sentindo suja, se sente mal. Ou quando pega um cliente que trata a gente mal, com ignorância, é grosso. Nem todos os clientes que a gente atende são bons”, lamenta.
“A sociedade em si julga, achando que tá [trabalhando com isso] porque gosta, porque é fácil. Não é um dinheiro fácil, é um dinheiro rápido. Mas não é fácil. Nada que a gente faz é fácil”

Foto: Isabela Marquesi
A plateia
O movimento durante o começo da semana é fraco em comparação aos outros dias, como Karen contou. Ainda assim, pode-se encontrar alguns homens espalhados pelos cantos vermelhos do interior da casa. Conforme os funcionários preparam-se para ir embora, eles fogem pela porta de entrada com o passo lento e as cabeças um pouco baixas, os rostos um pouco encabulados.
Uma mulher de saia rodada vermelha passa ao lado. Ela desfila pela garagem, arrastando os pés no salto até o portão, onde está sentado sob o frio o dono do Cabaré Brasil.
Ela estende o braço para o outro lado da garagem, para um homem que há pouco passou segurando uma garrafa de cerveja. “Vem conhecer meu patrão”, ela convida, a voz melosa, o corpo mole, um sorriso e os cabelos louros escorregando por um ombro. E o rapaz vai.
Aquele homem está no cabaré já faz algum tempo. Talvez homem seja uma palavra forte – ele é jovem em contraste aos outros.

Foto: Bruna / Arquivo pessoal
“Vem novo, vem velho…”
“Casado, solteiro…”
“É, é bem relativo”.
“Mas 80% são os casados”.
Karen concorda com Bruna e explica que o público da casa é muito diverso, mas que geralmente a maioria dos clientes da noite são homens casados e com mais de quarenta anos.
“Quem menos gosta da gente são as mulheres casadas, né? Porque o nosso público é quase 100% de homens casados”, Bruna compartilha. “Só que a gente não tem culpa. A gente não sai do nosso lugar pra ir atrás do cara casado lá na casa dele”.
Ela comenta sobre a natureza da infidelidade de muitos homens: “eles falam pra gente tudo. Eles falam quando o relacionamento não tá bem, eles falam quando a mulher não quer transar com eles, eles falam que ‘minha mulher tá grávida’ ou quando a mulher vai fazer cirurgia”. Ela enfatiza que muitos maridos não respeitam suas esposas de resguardo, incluindo as mulheres em puerpério: “o sonho do cara é que a mulher engravide. Quando a mulher engravida e ela não pode transar, ele vai na boate”.
Bruna acrescenta que as meninas atendem homens com ótimas situações financeiras – “advogado, médico, doutor, gente que viaja, lutador…” – e em relacionamentos com mulheres igualmente abastadas, mas que ainda não se comprometem à fidelidade do casamento: “e são sempre mulheres lindas, tá? Tipo, eles mostram foto pra gente. Eles fazem ‘ó, essa aqui é minha mulher’ […] A mulher pode fazer tudo, mas o homem, a hora que ele quiser, ele sabe onde ir […] Não interessa se ele tem mulher em casa que faz tudo pra ele, ele sempre vai procurar outra mulher na rua. É incrível”.
E o desrespeito não é apenas com as próprias esposas, mas também com as garotas de programa. Muitos homens acreditam que o dinheiro do programa também paga a dignidade das mulheres e se revoltam quando as garotas se recusam a fazer algo que fere sua integridade física ou mental. Bruna explica que existem muitas garotas que se sujeitam a qualquer coisa, e aquelas que não fazem o mesmo lidam com a incredulidade do cliente.
Karen exemplifica desrespeito, humilhação e agressividade como barreiras que ela não aceita cruzar em respeito a si mesma, evitando também sair com homens muito bêbados ou drogados.
Bruna comenta que comumente lida com homens insistentes em não usar preservativos: “‘ah, mas eu tenho só a minha mulher em casa, pode ficar comigo que eu não tenho doença nenhuma’. Aí, tipo, [como] vou saber que o cara não tem doença?”. Ela toca no ombro de Karen, relembrando: “um dia desse eu perdi mil reais […] O cara queria me dar mil reais pra eu sair com ele, só que daí ele falou: ‘a gente vai passar em uma drogaria, aí a gente vai fazer um teste desse rápido. Se tu não tiver nada, eu não tiver nada, a gente transa sem camisinha’. Eu falei assim: ‘não’”.
Ela firma a voz quando fala sobre isso. Com as sobrancelhas juntas, exprime: “ah, mas tem uns caras que insistem muito. Eu fico muito na raiva quando um cara insiste demais, porque daí já me dá uma vontade de sair do quarto, aí eles ficam insistindo, insistindo, insistindo. Agora eu faço assim, que agora eles têm medo: eles falam assim ‘ah, mas eu não tenho nada’, e eu falo, ‘e tu sabe se eu tenho?’”, e solta uma risada.
Leva as mãos aos cabelos lisos, escuros, e demonstra um penteado de maria chiquinha: “[já aconteceu] de a gente pegar homem pedófilo de falar assim ‘ah, amarra teu cabelo de tal jeito, me chama de tio, me chama de fulano de tal’”. Ela gagueja. “Ou o cara fala assim: ‘se tu conhece alguma menina de menor, me fala’”.
Bruna conta histórias que comprovam a diversidade do que acontece entre as paredes de veludo de um cabaré: homens que não aceitam o uso de proteção e homens que usam dois preservativos ao mesmo tempo; clientes agressivos e rapazes que apenas pagam para tomar uma cerveja e conversar – “esses são os amores da nossa vida”, Bruna e Karen riem; maridos que não vão para o quarto, mas pagam strip-tease.
A mulher mais uma vez chama atenção para a infidelidade da maioria dos frequentadores do cabaré. Defende que o trabalho de garotas de programa não é incentivar traição: “se você é casado, tá tudo bem, a gente respeita, tem gente que acha que a gente não respeita, mas a gente respeita sim. Os homens que não respeitam as mulheres que tem, essa é a verdade, eles não respeitam”. Ela comenta sobre o impulso de busca por satisfação sexual constante de alguns homens, e mais:
“Eu penso que, se existissem menos menina do job, tinha mais estupro […] Porque os homens, realmente, eles sempre vão procurar”

Foto: Isabela Marquesi
O show
A prostituição é um rosto que veste diferentes máscaras. A máscara de uma esquina escura, de um cabaré colorido, de um site na tela de um celular. A máscara de um palco, de um quarto, de um bar, de uma mesa de sinuca. A máscara de 600 reais a hora. A máscara de uma mãe, uma filha, uma amiga. A máscara de um pai, um filho, um marido, de um médico, um advogado, de um pedófilo, um agressor.
A prostituição pode vestir uma máscara de criança: Bruna conta que já conheceu garotas de programa mais novas, na faixa dos 14 anos. Ela explica que cidades grandes não costumam aceitar a prostituição de meninas menores de idade, mas é algo comum em pequenas cidades do interior.
A prostituição pode vestir a máscara da causa transexual: a realidade das mulheres travestis (de organismo masculino, mas que se identificam como mulheres), segundo Bruna, é muito dura. Ela conta sobre grupos de travestis que são acolhidas por alguém que proporciona transformações como beleza do cabelo e silicone nos seios. Para pagar as dívidas dos procedimentos, as mulheres são contratadas para prostituição.
A prostituição pode vestir a máscara da saúde sexual: a mulher expõe mais uma vez a insistência em não usar proteção e os perigos das ISTs no meio da prostituição. Ela conheceu uma garota que aceitou mais dinheiro para não usar preservativo, e que acabou contraindo HIV. O sentimento de raiva e vingança fez com que ela seguisse passando a doença adiante, para outras pessoas que insistiam em não usar preservativo.
A prostituição pode vestir a máscara de outras orientações sexuais: muitas pessoas sequer imaginam que existem garotas de programa lésbicas, que trabalham com homens por necessidade. Bruna relata que, quando começou a trabalhar com programas, não tinha interesse em homens, e hoje, depois de começar a se relacionar com homens por dinheiro, ela se identifica como bissexual. Ela pontua que “as héteros são as que menos ficam trabalhando, porque se apaixonam por alguém e acabam saindo dessa vida. Às vezes tem clientes que assumem elas e tiram elas dessa vida”.

Foto: Isabela Marquesi
Cai o pano
O céu da noite próximo aos centros das cidades não é muito estrelado por causa da forte iluminação urbana; porém, ainda que esteja sob um céu na beirada escura de Bauru, o Cabaré Brasil não tem estrelas além das garotas de programa. É um nu azul que abraça a música e os feixes de luz. Duas horas depois, esse azul profundo abrirá espaço para pinceladas claras de laranja e amarelo quando amanhecer: são três horas da manhã.
Karen se despede com um abraço e entra com outras mulheres no carro que as levará para casa. Bruna fica, com seus colares e argolas, suas longas unhas pintadas, seus anéis e sua bolsa, debruçada no banco e de pernas cruzadas. Às vezes mexe no cabelo, ajeita a franja enquanto fala.
Uma última pergunta, então, para ela voltar para casa e descansar:
O que ela gostaria que as pessoas entendessem sobre isso?
“Sobre o quê?”
“Sobre trabalhar com isso”.
E foi a pergunta que ela precisou de mais tempo para responder. Ela passeia os olhos pelos arredores enquanto pensa, e pede: que cada um cuide de sua vida.
“Na noite a gente conhece muita gente que faz de tudo. De tudo mesmo […] A gente conhece muita gente que tem dinheiro, e muita gente errada. Então, o que a gente faz, pra mim, eu não julgo errado. Porque, querendo ou não, é o nosso corpo. É errado às vezes pra nós mesmos, porque a gente se sente mal. Mas a pessoa achar que o nosso trabalho é errado, tipo, por quê? Por que que é errado, sendo que tanta gente faz às vezes até pior?”.
Ela gostaria que entendessem que elas, garotas de programa, não fazem mal a ninguém. Deixa ainda, como recomendação, o filme Amor de Redenção (2022), que acredita retratar bem os sentimentos de quem vende seu corpo.
E o fim da madrugada engole todos. A essa altura da noite, o cabaré só não está completamente vazio porque as garotas ainda arrumam suas coisas e conversam entre si. Nenhuma lâmpada está apagada e não há um segundo de silêncio: tudo funciona quase como um organismo de vida própria, independente de quem está ou deixa de estar aqui dentro.
A equipe de reportagem volta à estrada escura e deixa para trás cada salto fino e cada batom escuro que, acima de qualquer quantidade de dinheiro e de qualquer dose de cachaça, faz parte de uma pessoa inteira. As luzes desvanecem no breu. A música some na distância, sem parar de tocar. Amanhã o show continua.

Foto: Isabela Marquesi
