A trajetória dos tombamentos em Bauru expõe entraves, omissões e a dificuldade histórica de valorizar o patrimônio
Por Eduardo Dragoneti
Fábio Pallotta sempre escolhe a sombra da copaibeira, no coração da Praça da Copaíba, em Bauru, para marcar entrevistas. Ali, no meio do que viria ser a avenida Getúlio Vargas, décadas atrás, ele fez parte do grupo de moradores que se mobilizou para impedir que a árvore fosse derrubada por um projeto viário. “Eu dava aula numa escola naquela época, e a gente começou um movimento para que a prefeitura notasse a importância dessa árvore. O pessoal da engenharia da prefeitura notou, e decidiram arredondar a Copaíba, preservando essa árvore de quase 20 metros”, lembra. Hoje, a copaibeira continua ali, bem cuidada, e para Fábio ela representa um episódio em que a comunidade conseguiu impedir uma perda anunciada.
Fábio é professor de Educação Patrimonial, pesquisador da história ferroviária e suplente da OAB no Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Bauru (Codepac). Ele faz questão de dizer que fala sempre como indivíduo, nunca em nome do órgão. Mas sua trajetória – que passa por arquivos ferroviários, salas de aula e debates públicos – o tornou uma referência para entender o patrimônio local. Seu ponto de partida é claro: preservar não é uma tarefa somente burocrática. É uma disputa permanente entre memória, descaso, interesses econômicos e visões diferentes sobre o que merece permanecer na paisagem da cidade.

O impasse dos tombamentos
O Codepac foi criado, em 1992, em meio a urgência de preservação de construções históricas de Bauru. Demolições e descaracterizações sucessivas – como as da Praça Rui Barbosa e de prédios do centro – provocaram uma reação na cidade e aproximaram a população da pauta.
Nilson Batista Júnior, primeiro presidente do conselho, lembra que esta demanda por preservação tem sido marcada na cidade por avanços lentos e perdas apressadas. “Passado o momento inicial, esse engajamento ficou mais limitado a alguns grupos isolados, como professores do ensino básico, grupos de universitários, jornalistas, arquitetos, historiadores e memorialistas”, diz. “A sociedade precisa entender e se convencer que a preservação daquele bem tem sentido e um valor real, para que possa dar apoio a iniciativa”, complementa Batista Júnior.
As antigas Indústrias Matarazzo, por exemplo, foram um dos maiores complexos industriais da cidade na década de 1950, entretanto foram destombadas por decisão política e demolidas, mesmo com parecer contrário do Codepac. O terreno segue vazio até hoje, algo que Batista Júnior descreve como um prejuízo irreversível para o patrimônio industrial da cidade. Já o Bauru Tênis Clube (BTC) teve seu processo arquivado por decurso de prazo, resultado de entraves jurídicos. Fábio lamenta que o processo não tenha sido homologado: “É uma obra do Ícaro Castro de Mello, e está sendo descaracterizada sem nenhum entrave. Até a placa de bronze com o nome do clube foi arrancada”.
Já a Casa Lusitana é um exemplo de como o tombamento pode funcionar e cumprir seu papel de preservação. Símbolo da cultura portuguesa no interior do estado, o imóvel é comparado por Fábio com um “shopping center” do passado. Ali era possível encontrar alimentação, produtos importados, bacalhau e até roupas finas. O processo foi longo: teve início em 1996 e foi sancionado apenas em 2010. A construção permanece como propriedade da família Garcia, que tem a obrigação de manter a originalidade do imóvel e defender a memória da Casa Lusitana, com seu ilustre relógio no topo.
É nesse movimento irregular de histórias com finais felizes e tristes (e meios sempre conturbados) que Bauru construiu seu histórico de tombamentos. “Essas questões só vão para frente se existe a conversa entre o Conselho [Codepac], o Executivo e o Legislativo. A gente se comunica, mas é uma conversa de ouvido surdo”, resume Fábio. Projetos parados, disputas políticas, resistência de proprietários, falta de pessoal técnico e ausência de incentivos formam um ciclo que atravessa gestões e gerações.
Batista Júnior completa essa análise com um ponto que considera central: a falta de estímulos para os proprietários cuidarem de imóveis históricos. Manutenção especializada tem custo alto, e a isenção de IPTU, segundo ele, “é irrisória frente ao custo real”. A isenção concedida pela Prefeitura de Bauru, regulamentada pela Lei n° 6.248 de 2012, oferece um desconto parcial no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para os donos de imóveis tombados. O benefício pode ser de 50% na hipótese de tombamento apenas da fachada e de 75% no caso de tombamento integral do imóvel.
Contudo, a concessão exige que o proprietário utilize o valor descontado para a manutenção e conservação do local, sendo necessário provar a aplicação desse montante ao Poder Público. Fábio esclarece que esse benefício não é automático, pois o proprietário deve seguir o trâmite exigido , já que não aplicar o valor da isenção na manutenção seria uma ilegalidade. Na visão do professor, a percepção de que o tombamento é uma punição – e não uma proteção – se consolidou e tornou-se senso comum entre proprietários. E isso produz efeitos duradouros.
A museóloga Olga Araújo, conselheira suplente do Codepac, explica que o conselho depende administrativamente da Coordenadoria de Patrimônio Cultural e Museus, que há anos enfrenta defasagem de pessoal. “O secretariado do conselho depende de agentes culturais e administrativos que estejam disponíveis, acumulando outras funções. Ou seja, não trabalham em exclusividade para o conselho. Por isso, apesar de não ter arquitetos, existem vagas ocupadas por historiadores e museólogos”, afirma.
A sobrecarga de trabalho limita a análise, as fiscalizações e o acompanhamento dos processos. Uma minuta de atualização da legislação está em discussão, construída nas últimas gestões e alinhada às demandas da 4ª Conferência Municipal de Cultura. A proposta prevê modernização dos procedimentos, ampliação de representatividade e revisão de multas e isenções. A expectativa é que o processo se torne mais claro e mais rápido, evitando situações como a do Bauru Tênis Clube.
Para Olga, parte da resistência ao tombamento nasce de ideias equivocadas sobre o que ele representa. “As pessoas acreditam que o tombamento congela o imóvel, quando na verdade, ele permite adaptações e melhorias, desde que avaliadas tecnicamente”, explica. A proteção não impede reformas – impede, sim, a descaracterização. Porém, o desconhecimento destas informações alimenta desconfianças.
O caso mais recente que expõe essa tensão é o do Ginásio Panela de Pressão, parte do complexo Cláudio Amantini. O processo foi aprovado pelo Codepac, mas ainda depende de homologação da prefeita, Suéllen Rosim. O presidente do Noroeste – clube responsável pelo local –, Reinaldo Mandaliti, já declarou publicamente sua preocupação com o tombamento, alegando que isso poderia afetar reformas urgentes e investimentos que o ginásio necessita.
A reação segue um padrão conhecido de proprietários que temem restrições e possíveis custos adicionais aos seus imóveis, a partir do tombamento. Batista Júnior relata que alguns proprietários, ao perceberem que seus imóveis poderiam ser tombados, passavam a descaracterizá-los propositalmente para impedir o processo. A falta de incentivos e de informação transforma a preservação em algo visto como obstáculo, e não como potencial.
Olga também pondera que o tombamento não impede melhorias estruturais e pode até facilitar parcerias e financiamentos caso existam políticas públicas adequadas. Fábio comenta que muitos proprietários não percebem a oportunidade e importância em ter seus imóveis tombados, mas alerta: “não adianta você tombar um bem importante historicamente, se você não der uma utilização para esse bem”.
O abandono da estação ferroviária

Fábio relembra os entraves do processo do tombamento da estação ferroviária de Bauru, que já foi o maior entroncamento ferroviário do Brasil. Hoje, o prédio sofre com infiltrações, pichações e abandono. Disputas entre Executivo e Legislativo travaram tentativas de revitalização, e o espaço se degrada sem uso social dia após dia. “A cada ano que passa, a perda é maior”, lamenta.
Na visão do professor, a revitalização da estação poderia ser o ponto de partida para a criação de um polo cultural e turístico no município – espaço para feiras, grupos artísticos, apresentações e roteiros ferroviários educativos. Cidades como Paranapiacaba e Campinas transformaram suas estruturas ferroviárias em atrativos culturais que giram a economia local. Bauru perdeu a chance de fazer o mesmo. “Seria educativo, turístico, histórico. Mas depende de articulação, vontade e, principalmente, de a cidade reconhecer que isso é valioso”, diz Fábio.
Além da estação, ele cita escolas antigas, casas ferroviárias, galpões e áreas verdes que poderiam ser integrados a um circuito de memória urbana e afetiva. Quando lembra da copaibeira, afirma que ela só resiste porque um grupo decidiu que ela deveria continuar de pé. A árvore, que quase foi derrubada, é agora parte da rotina de quem passa por ali, um pedaço de cidade que faz sentido porque se tornou espaço de convivência. “Quando a gente perde um patrimônio, não perde só um prédio”, diz. “Perde a convivência, perde a identidade e, no fim, perde-se a própria cidade.”
