Primeira kiki house de Bauru, a Casa de Abundância torna-se espaço de resistência para pessoas LGBTQIA+ unindo arte e afeto
Por Marco Aurélio Vieira
Em uma tarde de domingo em frente a um pequeno apartamento no centro de Bauru é possível ver uma atípica movimentação de carros. Entre gritos direcionados para o segundo andar do prédio, algumas mulheres se comunicam em tom de brincadeira. “Jogue suas tranças rapunzel”, grita uma delas. As “tranças” a qual se referia eram as chaves que dão acesso àquele inesperado lugar de encontro, chamado a Casa de Abundância.
Primeira e única kiki house de Bauru, o espaço foi inaugurado no início de 2025 e se tornou ponto de resistência para pessoas LGBTQIA+. Surgidas em meados dos anos 2000, as Kiki Houses tiveram sua origem em Nova york como uma ramificação da cultura já existente do ballroom, movimento criado por jovens negros LGBT+na década de 1970. As houses, termo em inglês que se traduz em casas, funcionavam como locais de apoio a pessoas trans,travestis e outras minorias marginalizadas.
Além de lares, as kiki houses são um espaço onde a diversidade é exibida com orgulho através das competições conhecidas como Ballrooms ou simplesmente Balls. Lá os seus participantes competem através do voguing, dança expressiva que simula o andar em uma passarela com coreografias teatrais e glamurosas.
Aos poucos, mais pessoas chegavam e se reuniam na pequena varanda do prédio em Bauru, onde Felipe Oliver, estudante de História, esperava fumando. Ele aproveitou o feriado prolongado do dia do servidor público para conhecer o local, depois de ter recebido um convite especial das participantes da casa, tornar-se o primeiro homem trans a integrar o projeto.
Entre as várias mulheres que chegavam, uma se destacava por conta da grande movimentação à sua volta. Era Maria Ribeiro, mais conhecida como Musa, mulher trans e uma das primeiras integrantes da casa.

Além de uma membra fundadora, Musa também é a princesa da casa. “Funciona como se fosse uma hierarquia, eu sou a princesa, tem a Jules que é a imperatriz e a mother que é a cabeça da casa”, explica. A mother em questão se chama Agnes Analua, também fundadora e idealizadora da casa.
Antes do projeto da Casa de Abundância, Analua já havia feito parte de outra kiki house em Florianópolis. Após deixar o lugar por divergência de ideais, quis criar um espaço que refletisse aquilo em que acreditava. “Tive a ideia de criar a casa porque contempla tudo o que eu sinto, que é abundante”, diz. Segundo ela, o objetivo central, era construir um ambiente verdadeiramente acolhedor, sensação que não havia encontrado em sua experiência anterior na capital catarinense.
Antes de fundarem a kiki house, Musa, Analua e alguns outros integrantes já moravam juntos. “ A Casa de Abundância surgiu em meio a um ambiente de acolhimento coletivo”, comenta Musa. Essa convivência foi o ponto inicial para que criassem e dessem início ao projeto que se tornaria a Casa de Abundância
Com o passar do tempo, mais pessoas conheceram e foram acolhidas pela house, que hoje conta com vinte membros. Sete deles são pessoas que moram no apartamento que acomoda a kiki house, reafirmando o papel social do projeto. Musa diz que o ambiente pode ser considerado uma espécie de “aquilombamento”, pois além de acolherem de forma solidária pessoas que passam por algum tipo de vulnerabilidade social, a maioria dos membros integrantes do projeto são pessoas pretas.
Ballroom como forma de resistência
Analua estuda a cena Ballroom desde 2019, porém teve a sua primeira participação de fato em uma competição em 2023, onde foi campeã na categoria face, uma das várias modalidades que integram o Ballroom. Desde a criação da Casa de Abundância ela tem ensinado e inserido os moradores em toda a cultura e cena Ballroom. Além de uma simples competição ou dança, o voguing é uma forma de celebrar os corpos dos participantes, trabalhando a autoestima daqueles que são julgados pela sociedade como “inapropriados”. “A cultura Ballroom ela vem de uma forma de protesto de mulheres travestis pretas”, explica Musa.
Uma pesquisa de 2011 da Universidade de Columbia nos Estados Unidos feita com 32.000 participantes indica que o índice de suicídio é 5 vezes mais frequente entre pessoas LGBTQIA+. Outra pesquisa do Instituto Williams de Los Angeles publicada em 2014 e intitulada e traduzida como “Tentativas de Suicídio entre Transgêneros e Adultos Não-Conformes de Gênero” estimou que 40% das pessoas trans já tentou cometer suicídio. Esses são os principais grupos inseridos na cultura Ballroom e que frequentam as kiki houses que, em geral, são atingidos pelo preconceito e a não aceitação da família. Para essas pessoas ter um local seguro para se expressarem e mostrarem suas belezas individuais é algo de extrema importância, “A gente começa até a gostar mais da nossa beleza e começa a entender melhor quem a gente é”, diz a princesa da kiki house.
Um futuro brilhante
Iniciativas como a da Casa de Abundância são raras de se encontrar, ainda mais no cenário interiorano. A maioria das houses se concentra nas capitais e grandes centros urbanos. A casa fundada por Analua ainda é um projeto recente, mas que já carrega consigo o orgulho de ser a primeira kiki house de Bauru e fomentar a cena local das Balls. “Eu espero que a gente se expanda cada vez mais para conseguir alcançar cada vez mais pessoas para que elas conheçam a arte do Ballroom”, finaliza Musa.
