Conheça a história da vendedora de doces do centro de Bauru

Por Alex Iarossi

A entrevista estava marcada para quinta-feira, dia 20 de novembro, feriado nacional. Giovana havia me dito que estaria vendendo balas nesse dia no semáforo da Avenida Nações Unidas, um dos principais pontos de referência da cidade de Bauru e cujo nome faz homenagem à organização que luta contra as desigualdades sociais e pela paz mundial. Conversaríamos naquela tarde.

Ando pela avenida e não encontro Giovana. Mando mensagem às duas da tarde e a resposta chega às nove da noite. O gás de sua casa havia acabado, sua internet tinha sido cortada e as crianças estavam com virose, por isso não a encontrei no local que combinamos. 

No dia combinado, por volta das três da tarde, passei no semáforo onde Giovana costuma ficar: das Nações Unidas em frente ao banco da Caixa Econômica Federal. O sol fervia o asfalto, fazia 34ºC. Os carros andavam de janela fechada, com o ar condicionado ligado. 

A mulher não estava no semáforo. Por conta do calor, a vi sob a sombra do banco Bradesco, na mesma avenida. Sentada sobre um lençol cor de rosa, estava a vendedora de doces junto de mais três crianças. Uma em seu colo e outras duas, um menino e uma menina, sentados próximos a ela. À sua frente, um carrinho de bebê carregado de itens se encontrava travado para não descer a rampa. 

Pedi permissão para sentar e ali, acomodado ao lado de Giovana, ela começou a me contar sua história. 

Galão de água ao lado da Bíblia Sagrada (Foto: Alex Iarossi)

Nascida e criada em Bauru, Giovana Carolaine tem 27 anos e viveu a infância em um abrigo para crianças. Aos quinze, ela quase foi adotada por uma mulher generosa, que, inclusive, ajudou-a a realizar vários cursos profissionalizantes que se orgulha em ter feito. 

— A moça queria me adotar, então ela me ajudou a fazer um monte de cursos, de unha, de cabelo, de design de sobrancelha, atendente de farmácia e cozinheira. Mas, no fim, ela não ficou com a minha guarda porque o juiz não deu e me devolveu pra minha mãe — diz a vendedora.

Mesmo com todos os diplomas, nunca foi fácil conseguir um emprego. Giovana afirma que já trabalhou em restaurante, padaria e, também no McDonald’s, mas não conseguiu nada fixo. Por isso, usou como opção a venda de doces no centro, trabalho que realiza há cinco anos.

— Vendo balinha pra conseguir comprar as coisas de casa, pagar aluguel, comprar as coisas para os meus filhos e assim vou indo.

A neném que está em seu colo é sua filha de dois anos, Isadora. Os outros dois são seus sobrinhos Emily e Enzo. A menina mora com ela, já o menino vive junto com a mãe, irmã mais velha de Giovana, em uma casa próxima a sua. 

Além de Isadora, de dois aninhos, ela tem mais três filhos. A Evelyn, de dez anos, que frequenta a escola e ajuda nas vendas do semáforo – Giovana fica de um lado da rua e ela fica de outro – a Isis, de oito, que pratica balé, judô e curso de costura em projetos promovidos pela prefeitura e o Igor, de quatro anos que frequenta a creche e fica com a irmã enquanto trabalha no semáforo. No dia da conversa, Evelyn e Isis não estavam presentes por estarem com virose. Igor estava com a tia.

Nossa conversa é rapidamente interrompida. Giovana pega duas marmitas que estão dispostas na parte inferior do carrinho de bebê e entrega às duas crianças que estão próximas. Para a bebê, entrega algumas colheradas periodicamente enquanto fala comigo. O calor parece aumentar, mesmo na sombra.

Giovana vendendo doces na Avenida Nações Unidas (Foto: Alex Iarossi)

As balinhas ajudam Giovana a manter despesas básicas, porém não é sua única fonte de renda. Atualmente, ela também recebe auxílio do Bolsa Família. Entretanto, o dinheiro que vem do benefício, ela poupa para realizar o maior sonho de sua vida atualmente.

— A minha casa não é alugada, mas o dinheiro que seria do aluguel, que a gente guarda do Bolsa Família que é para fazer o muro.

Um muro. É tudo o que Giovana mais deseja concluir em sua casa. Seus olhos brilham e lhe faltam palavras para explicar esse desejo em sua residência de três cômodos.

— Eu tiro e tento guardar os 600 reais e eu vou lá comprar um pouco de tijolo. Eu comprei os ferros esses dias pra fazer a coluna. Eu comprei dois sacos de cimento, fui tonta, o cimento endureceu — diz enquanto ri.

Confessa que “tenta” guardar pois não é todo mês que a quantia consegue ser reservada devido a necessidade das crianças e da própria casa. Recentemente, por exemplo, sua geladeira queimou. Por isso, o sonho do muro teve que ser adiado. Há também meses em que precisa comprar o leite, pagar energia de água e luz. Com esses muros da vida, seu sonho de muro vai se desfazendo.

Ao falar de sua casa, Giovana descreve com precisão:

— Não está rebocada, não tem contrapiso — conta a vendedora, referindo-se ao seu lar. — Ela só está levantada. O único lugar que tem piso é o banheiro. Tem três cômodos, a cozinha, que é tipo uma cozinha americana, aí vem a sala, mas é o quarto das crianças, e aí tem o meu quarto. No quarto é o banheiro, que é o quarto e o banheiro junto.

A casa fica no quintal de sua ex-sogra, que mora junto com seu ex-marido, pai das crianças. Giovana diz que mantém contato com ele e que, inclusive, ele a ajuda em algumas ocasiões.

Durante a semana, ela não vende doces no semáforo. Apenas aos sábados e domingos, das dez da manhã às cinco da tarde. De segunda a sexta, dedica-se a levar as crianças para creche e escola e para manter a limpeza da casa. Emily é quem a ajuda a arrumar os pequenos, pois estuda no período da tarde.

Semáforo da Avenida Nações Unidas (Foto: Alex Iarossi)

Os riscos de se vender doces no farol com as crianças são inúmeros e a própria Giovana assume isso. Não apenas pelo fato do intenso fluxo de carros que passam em 80km/h em uma avenida com limite de 60km/h e que, em certos horários, não respeitam o vermelho do semáforo, mas também pelos riscos que os próprios motoristas trazem. Ela relata que já passou por situações onde, ao chegar em um carro, o homem que dirigia se masturbava atrás do volante.

— Tem também o risco de alguém maldoso passar, dar uma marmita, e a marmita estar com alguma coisa, porque acontece, passa na televisão e eu vejo.

Por conta desse risco, Giovana diz que não aceita as marmitas que são entregues na avenida. A alimentação deles é oferecida por dois estabelecimentos que ficam ali perto: a Casa da Picanha e a Porteira. 

Além destes, outros fatores de risco que ela reconhece ao estar ali são o sol, o calor e o Conselho Tutelar. Me questiono como um órgão público pode ser um risco, e Giovana parece ler minha mente.

— Tem o risco do Conselho Tutelar passar, falar com você, e falar que vai levar as crianças. Sim, já aconteceu muito isso comigo. Só que, eu já falei: vocês vão me ajudar? Estou sem gás, estou sem as coisas em casa, vocês vão levar as coisas na minha casa? Vocês vão ajudar com pacote de fralda, com leite? Não, não vão me ajudar. Sabe o que eles falam? ‘Pode continuar vendendo’.

Giovana visita o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) para pedir o cartão alimentação e ver se há vagas de emprego disponíveis. Além da instituição, vai também ao instituto Raio de Sol e em diversos estabelecimentos de Bauru. Mas, é sempre a mesma rotina em todas as entrevistas.

— A primeira coisa que eles perguntam na entrevista é: você tem filho pequeno? Seus filhos estão na escola? Você tem quem olhar eles no horário que a gente pode colocar você? É a primeira coisa que eles perguntam —  e nesses critérios, pessoas como Giovana são desclassificadas.

Houve uma vez em que conseguiu uma oportunidade de emprego. Uma mulher passou pela avenida e a convidou para trabalhar para ela em sua padaria. Giovana começou no seu novo cargo completamente feliz e realizada. Finalmente tinha um emprego fixo. Porém, com o passar do tempo, já no terceiro mês, a patroa dispensou vários funcionários e Giovana, sozinha, passou a fazer o serviço que antes era dividido entre várias pessoas. A exaustão era forte. A jornada também. Quando questionou a patroa sobre um possível aumento de salário, ela negou. Com isso, Giovana pediu demissão e voltou a vender doces nas Nações Unidas.

Giovana ao lado de seu irmão Erick (Foto: Alex Iarossi)

Giovana possui três irmãos mais velhos. Jéssica, Stefany e Erick. Na foto acima, Erick está à esquerda da irmã. Ele é morador de rua e dorme na porta de estabelecimentos fechados durante a noite nas ruas de Bauru. Por mais que Giovana e a família insistam, Erick não quer ir para a casa da mãe e permanece na rua. 

Na noite do dia 16 de outubro, enquanto dormia, Erick foi brutalmente espancado por outro homem. Levou 12 pauladas na cabeça. Câmeras de segurança registraram o momento do crime.

— Doze pauladas na cabeça. Deram doze pauladas na cabeça dele. Deu traumatismo craniano. Ele quebrou os ossos da face. Ele fez duas cirurgias no olho e três cirurgias na face. Ele estava dormindo. O moço chegou do nada — relata a irmã, ainda abalada.

A vendedora diz que o homem já foi reconhecido e preso. Inclusive, foi a própria quem ficou responsável pelo reconhecimento. Sabia quem era o agressor pois identificou no vídeo ser o mesmo rapaz que pede doces a ela enquanto trabalha e que também é morador de rua. Ele levou a bicicleta de Erick e foi preso na semana seguinte quando apareceu na Praça da Paz, pedindo por comida.

Apesar dos ferimentos graves, Erick já está se recuperando, ainda internado no hospital. Já abre os olhos e permanece se alimentando por sonda. Giovana é quem faz visitas diárias e o ajuda nas tarefas de higiene.

— Tiraram a ‘tráquio’. Ele está só comendo por sonda, porque ele não consegue mastigar e engolir a comida, né? Porque quebrou o maxilar.  E fizeram a cirurgia, mas ele vai ter que ficar lá um pouco, né? Eu vou lá, dou banho nele, fico lá um pouco com ele. Fico três horas com ele e ajudo ele a tomar banho.

Doces vendidos por Giovana (Foto: Alex Iarossi)

Isadora, no colo de Giovana, aponta para algo no chão e pronuncia algumas sílabas.

— É formiga. Não faz mal, não —  diz a mãe.

A tarde se alonga, o calor permanece e ali, sentados no chão, percebo que é o momento de ir. Vou para a última pergunta da nossa entrevista:

— O que te motiva a vender balinha no semáforo mesmo com todos esses obstáculos, esses muros que surgem, Giovana?

A resposta fica presa em sua garganta. Permito um momento de silêncio entre nós. As crianças encaram a mãe, esperando o que ela tem a dizer. Me encontro na mesma posição que as crianças, mas entendo que não é uma resposta fácil. Seus olhos se enchem d’água. As lágrimas escorrem sem mesmo formar uma palavra. Na verdade, as lágrimas são as palavras. São frases formadas a partir daquilo que não é dito, mas vivido. Aquelas lágrimas são de uma vida que guarda muito. De uma vida que enfrenta diversos muros e tenta atravessá-los diariamente.

Ela esfrega as mãos pelo rosto, respira fundo e responde: 

— Olha… O que motiva vender balinha é meus filhos e Deus. Eu tenho muita fé em Deus. Muita mesmo. Eu acredito que um dia minha vida vai mudar, sabe? As pessoas fecham o vidro na sua cara. Às vezes as pessoas falam: ‘vai arrumar um serviço’. É ruim. Muito. A minha meta é conseguir arrumar um serviço, não precisa nem ser registrado. Só conseguir uma renda e conseguir fazer o meu muro, sabe? Mas eu sei que, aos poucos eu tô conseguindo. Por mais que é louco o que eu faço vendendo, tem dia que você não vende nada, tem dia que você vende, tem dia que você não faz nenhum real. Mas tem dias que parecem pessoas boas, que te ajudam. Então, a minha meta é terminar de arrumar a minha casa, comprar os meus móveis e, sabe, conseguir fazer o meu muro. O importante é ter uma comida em casa  e meus filhos perto de mim, isso já é suficiente pra mim.

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