Enfrentando preconceito para fazer história, as mulheres da cena sentem dificuldade em reencontrar a história que suas ancestrais deixaram na arte de rua e vão à luta

Por Raquel Mezavila Xavier

Nascida no Bronx, em Nova York, a cultura do hip-hop surgiu na década de 1970, quando o pioneiro jamaicano do funk e soul, DJ Kool Herc revolucionou a música. O movimento veio como resposta às tensões e a violência da região, na qual as músicas e danças eram uma forma de expressão e se tornaram uma ferramenta cultural e social. 

O hip-hop é composto por 4 elementos, o MCing (mestre de cerimônia, o elemento oral), o DJing (disc jockey, o elemento sonoro), o Breakdance (elemento físico) e o Grafite (elemento visual). Porém, um quinto elemento foi atribuído por Afrika Bambaataa, um DJ influente nos primórdios do hip-hop, que é o conhecimento, e que ele que une todos os outros. 

O quinto elemento do hip-hop refere-se ao conhecimento de exercer a arte do hip-hop, que seria o rap, discotecar, dançar break ou grafitar. Além disso, também se refere ao conhecimento necessário para fazer parte da comunidade hip-hop, como o autoconhecimento e o conhecimento social e político. 

O hip-hop, portanto, é um movimento cultural e de resistência, que nasceu no gueto e conquistou o mundo, buscando dar voz aos excluídos socialmente, aos marginalizados. Porém, segundo o artigo “As minas e o hip-hop: protagonismo feminino no âmbito cultural” de Luana da Silva e Andrea Alice Rodrigues, “é importante reconhecer que, como em tantas outras esferas sociais, também existem desigualdades de gênero presentes nesse cenário”.

A quantidade de mulheres presentes na cena do hip-hop e das manifestações urbanas em comparação com a quantidade de homens é muito menor. A falta de representatividade feminina dentro dessa cultura, a falta de visibilidade, demonstram o machismo ainda presente. 

Kika Souza atua ativamente na cena das danças urbanas, é artista, arte-educadora, desenvolve uma pesquisa sobre o Apagamento Histórico da Mulher no Hip Hop, é produtora cultural e autora do livro  “Mulheres no Hip Hop – Apagamento Histórico e Outras Violências”, obra que reflete seu compromisso com a valorização e a visibilidade das mulheres na cultura. 

Kika Souza (foto: divulgação)

Kika se identifica com a cultura hip-hop desde os seus 11 anos. “Eu lembro que, com 11 anos, tinha lançado um filme na época chamado Entre Nessa Dança, é um filme que, hoje, depois de pesquisar muito sobre a cultura hip-hop, eu entendo que foi o beat street da minha geração, né? Foi um filme que marcou muito”, comenta. 

  Ao começar a se interessar e pesquisar mais sobre a cultura, a artista sentiu dificuldade em encontrar diversidade de informações sobre hip-hop, alegando muitas vezes que não sabia exatamente o que estava fazendo, o nome dos elementos. 

“Sempre pesquisei sobre cultura hip-hop, mas, na verdade, eu percebo que foi uma pesquisa meio superficial. Eu sempre encontrava as mesmas informações, eu não tinha muito contato com as pessoas mais velhas que tinham outras informações, exatamente por causa da minha limitação de ir para os espaços. Então, eu demorei bastante para entrar na cena, para ir nos lugares, entender mais sobre a dança, foi um longo processo”, explica. 

Após entrar na ETEC de artes para cursar dança, ela teve contato com outras pessoas da cena e com meios de produção em dança. Também foi lá que conheceu sobre editais (como o VAI, um edital de valorização de iniciações artísticas), aumentando seu conhecimento sobre essas políticas públicas.

“Dentro da ETEC, é onde eu formo, junto com os meus amigos, o coletivo ‘Rangers Urban Force’. Nós éramos os únicos cinco da sala que faziam parte das danças urbanas, tinham dois b-boys, o Emersu e o Zeus; um popper, que é o Careca Boogie; um campbell locker, que é o Bruno Everton e eu do hip hop freestyle”, diz. 

Kika conhece Henrique Bianchini, um grande pesquisador da cultura hip-hop, e começa a participar de um projeto dele, o “Clube do Livro”. Nesse projeto, são propostas leituras de vários livros sobre culturas negras, culturas afro diapóricas, o jazz, funk soul, entre outros. Esses momentos foram essenciais para ela continuar sua pesquisa. 

“Não era a proposta, mas ele me ensinou a pesquisar. Então, eu volto e reinicio a minha pesquisa. E aí, nesse processo, eu acabo percebendo a dificuldade que era encontrar nomes de mulheres ligadas à cultura. E não só o nome, mas como elas estavam hoje, o que mais elas haviam feito, fotos… coisa que quando a gente fala de internet, a gente fala que ‘vai estar tudo lá, né?’, mas não estava. Então, era muito difícil. Mas aí eu comecei a organizar um material focado nas mulheres, o que eu achava sobre elas”, explica. 

Ao estruturar sua pesquisa “Identificando o Apagamento Histórico da Mulher no Hip-Hop”, ela se inscreve no edital do Mulheres na Cena e faz palestras sobre o estudo. Depois deste primeiro projeto, Kika, após a leitura do livro “Can’t Stop Won’t Stop: A History of the Hip-Hop Generation”, conhece a história de uma gangue de mulheres chamadas “Mercedes Ladies”. 

“Elas tinham como objetivo não depender de homens. O livro fala que elas chegavam nos lugares e elas montavam os equipamentos delas, elas faziam o show delas. O objetivo delas era só fazer aquilo que elas gostavam. Então, elas não queriam ser tratadas de maneira especial por serem mulheres, elas não queriam ficar na festa para que as pessoas não achassem que elas estavam ali para trazer mais público para a festa. Porque já tinha esse pensamento de ‘vamos encher as festas de mulheres que os homens vem”, conta.

Foi neste momento que o “Mercedes Ladies” nasce, um projeto focado no protagonismo feminino dentro do movimento hip-hop. Um espaço aberto para MCs, DJs, dançarinas e grafiteiras terem seu espaço. O projeto foi feito para o Centro Cultural São Paulo (CCSP). 

“Então, um evento que nasce com um viés de protagonismo feminino, hoje ele também tem uma questão de acolhimento das comunidades LGBTQIAP+, compreendendo que, assim como corpos femininos cis, essa população também sofre não só de extrema violência física, psicológica, mental, mas também é super excluído da cena. Então, é uma visão de criar espaços seguros tanto para as mulheres cis, quanto para a comunidade LGBT. Antes a gente pensava numa contratação exclusivamente de mulheres cis. Hoje a gente abrange para mulheres trans e pessoas não binárias e pessoas trans não binárias”, fala. 

Kika se inscreve para outro edital, em que tem a ideia de escrever seu livro. A verba do edital foi usada para a escrita e produção do livro, enquanto ela fez 4 edições gratuitas do Mercedes Ladies para a sociedade. Com ajuda da Bgirl Cris, seu livro “Mulheres no Hip Hop – Apagamento Histórico e Outras Violências” conta, no primeiro momento, com a história do hip-hop através do viés feminino, nenhum nome masculino é citado. No segundo momento do livro, o apagamento histórico feminino é aprofundado. Na terceira, são entrevistas.  

“Inicialmente, a minha ideia era entrevistar dez mulheres sobre apagamento histórico, como elas se sentiam, como era a cena quando elas começaram, para tentar perceber o que mudou e o que não mudou. Só que, durante esse processo de entrevistas, eu perguntava ‘quem foi a primeira pessoa que você viu dançar no breaking?, quem foi a primeira mulher que você viu grafitando?, quem foi a primeira mulher que você viu rapper?’ e aí, tinha duas respostas. Uma era ‘não vi ninguém, não tinha outra mulher, e eu fiz isso porque eu queria mostrar que mulher também podia’ e a outra era ‘não, foi fulana e você podia falar com ela’. E aí, eu me empolguei”, conta Kika. 

Foram muitas indicações de outras mulheres da cena, e o que era pra ser 10 entrevistas, viraram 46 entrevistas para o livro. Muitas dessas entrevistas corroboram com o que a artista pensava sobre o apagamento histórico feminino no hip-hop. 

“Quando eu falo no livro sobre violência física, violência doméstica e por aí vai, eu tenho entrevistas que corroboram com isso, falando ‘não, realmente meu companheiro me bateu e quando eu trago essa denúncia, as pessoas ficam do lado dele e me excluem’. Então, por que que as mulheres são apagadas? Por causa disso”, conclui. 

O livro foi lançado pela LiteraRUA em agosto de 2024, além de ter a escrita de Leci Brandão na preface do livro, que além de deputada é madrinha do hip-hop em São Paulo. Para finalizar, Kika ainda diz sobre seu coletivo “Mulheres no Hip-Hop” e como seus projetos fazem diferença na presença feminina dentro da cultura hip-hop e a importância da visibilidade e representatividade da mulher. 

“Tenho um coletivo hoje, ‘Mulheres no Hip Hop’, que realiza o ‘Mercedes Ladies’, então hoje a gente também ampliou para outros elementos. Contempladas pelo PROAC, Fortalecimento ao Hip Hop de 2024, em 2025 a gente acabou fazendo uma formação de grafite para mulheres cis e trans, nós tivemos 50 mulheres participando desse curso, de dois meses, foi muito incrível. Fizemos uma formação de MC, Slam, também para mulheres cis e trans, aconteceu na Zona Sul. Fizemos duas Jam parties, uma de ‘Mercedes Ladies’ e uma ‘Mercedes Ladies’ de três dias, foi um evento que durou sexta, sábado e domingo”, finaliza. 

Além do hip-hop, o skate também é um esporte que representa a cultura periférica. Nasceu com os surfistas, ao colocar rodas em tábuas de madeira para “surfar no asfalto”, até virar parte do cenário urbano. Segundo artigo do Ciência Hoje, “Inserido nas paisagens urbanas e entrelaçado com outras subculturas juvenis, como o punk, o heavy metal e o hip-hop, o skate no Brasil consolidou-se como uma expressão de resistência e subversão do espaço público”. 

Manuela Manzatto, mais conhecida como Manu Manzatto, de 20 anos, é graduanda em educação física na Unesp de Bauru. Seu primeiro contato com o skate foi com seus 6 anos, após isso nunca mais parou. Porém, o preconceito foi algo notável desde o início. 

Manu Manzatto (foto: divulgação)

“Eu já vivi muito preconceito dentro do skate, desde o início. Eu tenho 12 anos de skate. Era sempre foi visto como estranho, tipo uma menininha na pista. Comecei a andar bem nova, brinco até, eu andava de sandalinha da Barbie. Naquela época, era diferente, eu era vista como “maria moleque, sapatona”, diz. 

Nesta fala, é notável que não somente o machismo era presente, como a homofobia. A questão do “lugar da mulher” também era questionada dentro do esporte. Segundo Manu, as pessoas não ajudavam muito na pista e que o apoio de sua mãe foi essencial.

“Não tinha muita ajuda das pessoas da pista. Quem me ajudou sempre em tudo foi minha mãe! Quando eu ganhei meu patrocínio em 2021, os meninos da pista falavam que eu não tinha rolê, que eu não tinha manobras suficientes para ter um patrocínio, que eu só era patrocinada porque eu era mulher, por causa da Raíssa Leal”, conta. 

Manzatto ganhou muitos campeonatos, e com alguns deles, como o campeonato da Flash Ramp Park em setembro de 2021 em Bauru, ganhou o primeiro lugar e patrocínios de marcas, academias e lojas também. Ainda afirma que em seu patrocínio da academia, ela era a única mulher de cinco homens que andavam lá. Além disso, outro fator interessante de analisar estava nas premiações dos campeonatos. 

“As premiações eram bem diferenciadas. Enquanto os meninos ganhavam um dinheiro bom, mil reais, tênis bom, calça boa e todas essas coisas, as meninas ficavam com o resto. Tipo, um tênis 37, que ainda é pé, mas às vezes vinha tênis 42, vinha camisa extra G. Enquanto os meninos ganhavam mil, as meninas ganhavam bem menos. O resto, né? O brindezinho”, afirma. 

Manu Manzatto impactou muito a cena em Bauru, ela fazia palestras de skate em escolas, alcançou um bom público. Nas palestras em que fazia, ela contava sobre a história do skate, modalidades, o papel da mulher no skate e também sobre sua história. Também ressalta a importância do olhar para suas alunas quando dava aulas e enxergar suas necessidades, principalmente de crianças neurodivergentes que precisam de outro tipo de apoio. 

  “Um ponto legal de citar é o tanto de menina que eu consegui motivar a andar de skate. Eu dei aula de skate também por um tempo, na Flash Ramp, eu tinha uma aluninha particular que a gente ia nas pistas e tal, pequenininha, devia ter onze, doze anos. E eu me via muito nela, porque ela tinha TDAH e ela era muito medrosa, meio avoada assim. E tipo, reconhecendo alunos assim eu consigo evoluir mais, pensar que eu vou ajudar essa menina pra ela não se machucar, pra ela não criar medo”, fala. 

A skatista também comenta sobre a entrada das modalidades do skate nas olimpíadas de Tokyo de 2020, sobre como a Raíssa Leal ajudou a dar visibilidade para o skate e ser um símbolo de representativa feminina dentro do esporte, mas que já existia muita história por trás. 

“A Raíssa trouxe muita visibilidade pro skate, principalmente pras mulheres, porque ela era uma menininha de 7 anos mandando um heel, um heel flip numa escada vestida de fadinha. E o vídeo dela foi compartilhado pelo maior skatista, um dos maiores skatistas da história, que é o Tony Hawk, conhecido como o pai do skate. Muitas meninas começaram a querer fazer skate. Mas já tinham muitas skatistas, como a Karen Jonz, a Letícia Bufoni”, concluiu.

Dentro das pistas, o apoio entre mulheres era muito raro quando Manu começou, pois poucas praticavam o esporte. Por isso, ressalta a importância de sua mãe, Lilian, em sua carreira no esporte. 

“Minha mãe deu autógrafo, e o pessoal chamava ela sempre, tia Lilian. Minha mãe sempre foi minha treinadora, ela sempre me acompanhou em tudo, então agradeço total a ela, porque se não fosse minha mãe, nada seria possível”, afirma. 

Ainda falta muito inclusão para as mulheres, não somente no skate como em toda a cultura urbana, principalmente as que são compostas majoritariamente por homens. 

“Já melhorou muito, muitos outros esportes também e a gente vai ter que continuar essa luta, mostrando que as mulheres podem, mostrando que não tem rótulo, não tem gênero, não tem sexualidade, não tem nada disso”, finaliza Manu. 

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