Segundo especialistas, a estratégia digital é eficaz pois explora as vulnerabilidades cognitivas do eleitor, priorizando o instinto sobre a razão
Por Beatriz Lourenço dos Reis
A campanha eleitoral contemporânea não é mais um embate de plataformas ideológicas em praça pública; ela é, fundamentalmente, uma guerra de dados e emoções, travada nas telas dos celulares e moldada por algoritmos de precisão. Longe do debate racional e massivo da televisão, a vitória hoje se constrói por meio do microtargeting (estratégia de marketing para que, com dados pessoais, o conteúdo se designe para um grupo extremamente específico) e da manipulação sutil dos sentimentos do eleitor, um processo que altera o custo da disputa, a ética da comunicação e a saúde psicológica da democracia.
A espinha dorsal da campanha se sustenta no Big Data (conjunto de dados massivos), que, segundo Victoria Lourenco dos Reis, estrategista de marketing digital, atua como o principal cabo eleitoral. O trabalho da equipe não se limita a dados demográficos básicos; é uma caça a clusters (grupos de computadores interconectados que trabalham juntos como um único sistema para executar tarefas e processar dados) comportamentais e gatilhos emocionais em tempo real.
Victoria explica que “nossa equipe usa o Big Data para uma segmentação extremamente detalhada, buscando clusters comportamentais. O foco do dinheiro se inverteu: o maior investimento é no centro indeciso, com mensagens moderadas e soluções práticas”.
Apesar desse foco financeiro na persuasão do eleitor flutuante, a mobilização da base polarizada não é negligenciada. “A base já fiel é mobilizada com mensagens polarizadas e radicais. O custo de impulsionamento para esses grupos é menor, pois o objetivo não é persuadir, mas garantir que eles votem e atuem como multiplicadores orgânicos da mensagem”, complementa a estrategista, revelando a dualidade estratégica que sustenta a campanha moderna.
Essa personalização extrema, no entanto, exige uma adaptação constante à linguagem das plataformas, sendo o TikTok, segundo Victoria, o mais desafiador. Ela ressalta que “o conteúdo mais eficaz é o autêntico e de entretenimento (memes, vídeos curtos). O conteúdo formal é direcionado apenas para nichos específicos. A chave é que o conteúdo deve parecer espontâneo, mesmo que seja altamente roteirizado; é o ‘fake- authentic’. O eleitor das redes sociais não quer ser ensinado; ele quer se identificar com o candidato,” o que implica um custo psicológico para o político, forçado a ser um personagem acessível 24 horas por dia.
A maior preocupação de quem opera o marketing digital hoje é a Inteligência Artificial (IA) para manipulação (deepfakes). Victoria Lourenco dos Reis é categórica: “O uso de IA para manipulação (deepfakes) é a nossa maior preocupação em termos deataques adversários hoje. Ele atinge o cerne da campanha, que é a credibilidade do candidato.”
Para mitigar esse risco, as equipes precisam ser proativas, monitorando a deep web e grupos fechados, além de manter um repositório de vídeos de “negação” prontos, garantindo que a resposta seja na velocidade da viralização, já que a crise digital se propaga exponencialmente e é praticamente impossível de ser contida no sentido tradicional, exigindo uma saturação de conteúdo positivo para “afogar” a desinformação. O objetivo não é mais eliminar o conteúdo falso, mas sim reduzir sua relevância e garantir que a narrativa oficial seja a mais forte na busca do eleitor.
O psicólogo Otávio Marques oferece o contraponto, explicando por que essa estratégia digital é tão eficaz: ela explora as vulnerabilidades cognitivas do eleitor, priorizando o instinto sobre a razão. Marques explica que as campanhas são desenhadas para evocar emoções fortes porque o processamento emocional é mais rápido e primitivo no cérebro do que o processamento racional.
Ele analisa o poder do gatilho emocional, onde “campanhas que focam no medo de um futuro distópico (perda de segurança, perda de valores) criam um senso de urgência e ameaça, o que gera a raiva. A raiva é uma resposta a essa ameaça percebida e canaliza essa energia em ação (voto, doação, compartilhamento)”.
Marques enfatiza que, psicologicamente, somos mais motivados a evitar uma perda do que a conquistar um ganho, e o medo e a raiva simplificam a decisão complexa do voto: “Sentimentos intensos simplificam a decisão complexa do voto. Em vez de analisar 50 propostas, o eleitor é levado a uma escolha binária: ‘Eu sou contra aquilo que me ameaça.’ Essa simplificação reduz a dissonância cognitiva e mobiliza o eleitorado com eficiência superior.”
Sobre o efeito das redes sociais na coesão e na polarização, Otávio Marques aponta para o comportamento de manada facilitado pela viralização. “O medo da exclusão (ser o ‘diferente’ na bolha) é um motor poderoso. A adesão à narrativa se torna um ato de pertencimento ao grupo, e não um ato de crença factual. A viralização de uma informação, mesmo falsa, cria um efeito cascata, onde o cérebro tende a associar volume à verdade ou à importância, sem realizar a checagem factual.” Esse mecanismo facilita a adesão rápida a narrativas extremas que, de outra forma, seriam rejeitadas em um contexto de análise mais lenta.
O impacto dessa sobrecarga de informação e manipulação emocional é a fadiga da informação. Marques finaliza analisando que a exposição constante a fake news e a uma avalanche de dados leva à sobrecarga cognitiva.
“Diante de um excesso de estímulos e da complexidade de checar fatos, o cérebro busca atalhos. O eleitor não desiste de votar, mas busca a simplificação cognitiva,” explica. Essa simplificação resulta em tendências preocupantes: o eleitor pode votar por identidade, optando pelo candidato que representa sua tribo social, ou cair na apatia seletiva, decidindo que “todos os lados mentem,” o que, paradoxalmente, torna adesinformação mais eficaz, pois a desconfiança generalizada elimina o incentivo para a busca pela verdade.
O cenário é de um alto custo estrutural para a democracia. O investimento em impulsionamento pago é hoje o maior custo operacional das campanhas, o que implica que a competição é desigual, concentrando-se em quem tem a estrutura financeira para manter o compliance e a guerra digital.
A disparidade no gasto com publicidade digital é a principal causa da desigualdade de visibilidade eleitoral. A Justiça Eleitoral, por sua vez, luta para rastrear o Caixa Dois Digital e a origem real do financiamento da desinformação, já que o dinheiro passa por várias camadas de agências e subcontratadas antes de chegar às plataformas.
O desafio da regulação é que o tempo de resposta da Justiça é lento, enquanto a manipulação é instantânea. A campanha política do futuro já chegou, e ela não se faz mais com comícios lotados, mas com algoritmos bem calibrados. O sucesso exige que os políticos e a Justiça Eleitoral dominem essa nova linguagem, garantindo que o direito ao voto seja informado, livre e, acima de tudo, protegido da manipulação invisível dos dados e das redes. O custo da eleição, hoje, é o custo da integridade cognitiva do eleitorado.

