Como o discurso do controle migratório busca institucionalizar o filtro de classe
Por Beatriz Lourenço dos Reis
O Brasil, país que ostenta o título de nação miscigenada, abriga uma de suas contradições mais cruéis: a xenofobia interna, o preconceito dirigido a brasileiros por outros brasileiros com base na sua região de origem. Longe de ser apenas um resquício histórico, essa aversão tem se manifestado de maneira agressiva nas redes sociais e, de forma mais perigosa, em tentativas de institucionalização do controle sobre a livre circulação, ferindo um pilar da Constituição. A análise sociológica e jurídica aponta que o preconceito regional não é um mero acidente geográfico; ele é um subproduto da desigualdade socioeconômica e de um imaginário nacional historicamente enviesado, que persiste em enxergar o Sul e o Sudeste como o único eixo do “progresso”.

A xenofobia brasileira, muitas vezes atua no campo das sutilezas e da humilhação diária. A estudante de enfermagem Maria Júlia, que trocou Maceió por Curitiba em busca de melhores estudos, relata a dor dessas sutilezas: “Eu evitava falar na fila da cantina da universidade. Eu percebi que, assim que eu abria a boca, o olhar das pessoas mudava, como se meu sotaque já fosse um atestado de que eu era ‘inferior’ ou que só estava ali por sorte,” afirmou para o Jornal Folha de São Paulo. O sotaque transforma-se em um marcador social que, na visão de quem discrimina, é sinônimo de falta de status ou de origem humilde, reforçando a divisão de classes.
O sociólogo Juliano Marcel, pesquisador em migração e desigualdade, explica que a raiz do problema remonta ao processo de desenvolvimento brasileiro, onde o Sul e o Sudeste se estabeleceram como polos de “progresso” e o Norte e Nordeste como “atraso”. Marcel aponta que essa dinâmica criou um paradoxo histórico que perdura.
“A migração Nordeste-Sudeste foi um fenômeno de ordem econômica, impulsionado pela falta de oportunidades e pela necessidade de mão de obra barata para a industrialização do Sul/Sudeste. O migrante era bem-vindo como força de trabalho, mas não como cidadão ou vizinho,” afirma.
O sociólogo reforça que a rejeição é um mecanismo de negação da própria história. “O preconceito, portanto, é uma forma de negar o endividamento do Sudeste para com o Nordeste. Rejeitar o migrante é uma maneira de silenciar o fato de que a riqueza e a infraestrutura das grandes metrópoles foram erguidas com o suor dessa população, mantendo-a numa posição subalterna e sem pleno pertencimento.”
A polêmica envolvendo o vereador de Santa Catarina Mateus Batista, acusado de tentar barrar nordestinos, é o exemplo mais recente de como o preconceito busca se legitimar. Confrontado, o político negou a xenofobia explícita, mas aprofundou a discussão ao confirmar a existência de uma proposta de controle.
“Primeiramente não existe nenhum projeto que proíba pessoas especificamente do norte e nordeste de vir para Santa Catarina. Isso foi uma fake news espalhada por sites
de fofocas, e já estamos tomando as medidas judiciais cabíveis”, disse o vereador, tentando desvincular-se da acusação de ódio.
No entanto, a negação do boato levou à confirmação de uma iniciativa que visa “otimizar a migração e não superlotar a cidade” – um discurso de logística que camufla o filtro social. O vereador confirmou que o projeto de “controle migratório” tem abrangência nacional, protocolado por um deputado federal, mas com um mecanismo de controle perigosamente restritivo.
“É apenas a necessidade de apresentar um comprovante de residência, aluguel ou algo do tipo, ao chegar na cidade,” detalhou o vereador.
Filtro social
A exigência de documentos formais para “chegar à cidade” é o ponto central da investigação. Para especialistas, essa é uma barreira administrativa inconstitucional que, sob o pretexto de organização, executa um filtro social. A medida não restringe o migrante que detém capital, mas o mais vulnerável, reforçando a clivagem regional.
Juliano Marcel é enfático ao analisar essa proposta. “O migrante que se desloca por razões de vulnerabilidade social é, por definição, aquele que não possui emprego formal nem contrato de aluguel. Ao impor essas exigências, o projeto não afeta o migrante com alto capital; ele impõe uma barreira intransponível ao migrante pobre, majoritariamente vindo das regiões com maior desigualdade”.
O sociólogo reforça que isso não se trata de controle logístico. “Isso não é um controle de migração; é um filtro de classe. A medida transforma um direito constitucional — o de ir e vir — em um privilégio condicionado à capacidade econômica, tratando o migrante pobre como um risco social e não como um cidadão”.
Marcel aponta que o discurso de que os migrantes estão “superlotando” as cidades é o mecanismo da xenofobia velada. “Em vez de investir em infraestrutura, o político escolhe culpar o recém-chegado. O discurso do controle é a forma mais contemporânea e burocrática de dar vazão à xenofobia regional, escondendo o preconceito por trás de uma suposta necessidade de ‘planejamento’.”
Amparo Legal
O caso do vereador demonstra que o preconceito não se limita à ofensa verbal ou à atitude individual; ele busca se institucionalizar por meio de propostas que, embora disfarçadas de neutralidade, violam o Direito de Livre Locomoção e a Isonomia constitucional. A barreira burocrática ataca diretamente a essência da cidadania brasileira.
A Lei no 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito, pune quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
O entendimento jurídico é claro: “procedência nacional” abarca a procedência regional quando há intenção de discriminar. O combate a essa chaga social exige mais do
que repúdio; exige fiscalização rigorosa. O jornalismo, ao expor a contradição entre a negação da xenofobia e a confirmação de uma barreira burocrática, cumpre o seu papel de sentinela para garantir que o direito de ir e vir de todo brasileiro seja respeitado. A luta é para que a Constituição prevaleça sobre o preconceito de classe e de origem.
