O movimento agroecológico garante comida nutritiva e saudável, resgata saberes ancestrais e rompe com o isolamento das mulheres, inserindo-as em uma rede de união e luta política, surgindo também como uma resposta à crise climática
Por Leticia Aguilar e Gabriela S. Conceição
A agroecologia pode ser entendida como um sistema transdisciplinar em busca de uma agroalimentação sustentável, que tem como cerne a aliança entre o ser humano e sua relação consciente com a natureza. Quando se fala de ser humano é preciso assimilar a pluralidade de corpos e saberes confluentes que engendram os agroecossistemas, e é neste âmago que se encontra o conceito das práticas agroecológicas.
Quando o assunto é agroecologia, as mulheres são as protagonistas do tema e o pilar que sustenta os saberes que compõem a prática, responsáveis pelo manejo sustentável, prezando sempre pela conservação da sociobiodiversidade. Mas a agricultura ecológica não é um conceito centrado somente na questão de gênero, para além disso, ele está estritamente ligado às disparidades raciais.
A agricultura no ocidente está enriquecida pelos conhecimentos das mulheres não-brancas, a base da agroecologia são os saberes da terra, os saberes do território, todos dominados com aptidão por essas mulheres. A agroecologia está comprometida com a luta de classes e de gênero, e é fundamental que seja antirracista e rompa com as amarras estruturais deixadas pelo colonialismo.
A agroecologia contra a agricultura hegemônica
A agrônoma e coordenadora do Núcleo de Estudos em Gênero, Raça e Agroecologias (Negras) do IFSP, Vivian Delfino Motta, é pesquisadora da agroecologia feminista antirracista e destaca a cosmovisão das mulheres de comunidades tradicionais com a terra como o caminho para uma transformação do sistema alimentar hegemônico, viabilizando a justiça social e climática.

“São essas mulheres que estão no território, que sabem lidar com a terra, que olham para o mato e sabem o que dá para comer sem se envenenar, que sabem o que cura, que levam a muda, a muda cresce, que guardam a semente, e a semente germina. São elas que fazem [a agroecologia], não quem está na academia. Não é quem sempre esteve na base de uma epistemologia do colonizador”, enfatiza Vivian.
Os dados divulgados pelo MapBiomas em 2023 sobre a cobertura de vegetação nativa nos territórios quilombolas no Brasil evidenciam a afirmação feita pela pesquisadora. No Brasil, de 1985 a 2022, os territórios quilombolas perderam 4,7% de sua vegetação nativa em oposição aos 17% nas áreas privadas.
O relatório da ONU acerca dos povos indígenas e a governança florestal, também de 2023, mostram que mais da metade (45%) das florestas intactas na Bacia Amazônica estão em território indígena, enquanto o restante da floresta em outros territórios estão mais fragmentados e/ou explorados, reafirmando o papel fundamental dessas comunidades na manutenção climática em escala global.
Academicamente, a agroecologia vem sendo construída sob um viés colonial, no qual, apesar do debate sobre as interseccionalidades e injustiças sociais existir, as pesquisas são realizadas com as experiências absorvidas pelo pesquisador, sem a inclusão dos povos e mulheres que detêm os saberes e técnicas. Cabe à academia e à política olhar a partir da lente das mulheres e garantir que ocupem os espaços de poder e reprodução do conhecimento.
A luta por representatividade nos espaços de decisões
Vivian acredita que as produções agroecológicas são um caminho para a autonomia. São espaços estratégicos que podem garantir às mulheres estabilidade financeira e soberania alimentar. “Os quintais produtivos mostram quanto as agricultoras são estratégicas e quanto elas podem ser autônomas no seu fazer. [É importante ter] autonomia para que elas possam fazer dos quintais produtivos, desde um jardim até o empreendimento econômico”, afirma a professora.
Entretanto, o poder político ainda é algo a ser conquistado por essas mulheres. Elas ainda precisam ocupar os centros de decisões. Delfino faz uma crítica ao próprio movimento: “São sempre as mesmas pessoas ocupando sempre os mesmos espaços, e as agricultoras estão sempre abaixo. Então, você vê o movimento crescendo, os congressos crescendo cada vez mais. Seis, sete, oito mil pessoas, mas as agricultoras continuam com as mesmas dificuldades de sempre. É o transporte, é a questão da produção, é escoamento, é processamento”.
A pesquisadora acredita que as mulheres agricultoras precisam “estar no espaço de construção de saberes e de políticas sobre elas”. E adiciona que “se está tendo um projeto, elas têm que estar como pesquisadoras; se está construindo uma política pública, elas têm que estar sendo escutadas”.
A agricultora agroecológica e ativista, Valdenise Gomes, acredita que a educação política-ambiental é uma pauta muito importante para as mulheres, porque assim “você governa a sua vida, governa o seu espaço” e luta pelo seu lugar de poder em qualquer situação.

O apagamento e as dificuldades da mulher no fazer agroecológico
Não há como falar de agroecologia sem falar da ancestralidade e da relação da mulher com a natureza, já que são, majoritariamente, as protagonistas das práticas agrícolas que fogem da lógica do mercado e das estruturas capitalistas de expropriação da terra. Elas buscam garantir a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável de suas famílias nos moldes contrários aos da agroindústria degradante.
A expressividade e destaque das mulheres na agricultura ecológica é massivamente subalternizada pela dominação masculina. Essa cultura patriarcal enraizada na sociedade coloca as mulheres agricultoras como meras “ajudantes” do homem ou até mesmo nem possuem seus trabalhos reconhecidos. A produção das mulheres é em muitos casos destinadas para a alimentação da família ou geração de renda para a subsistência, isso quando não é apropriada pelo marido ou companheiro.
A separação do ”trabalho do homem” e do “trabalho da mulher” e sua hierarquização é ainda mais abusiva no ambiente rural. Cabem às mulheres a reprodução e o trabalho de cuidado, este assiduamente invisibilizado. Suas contribuições nas práticas agrícolas – que são plurais, promovem a segurança alimentar, sua autodeterminação como mulher independente, fortalecem a biodiversidade e a justiça social – também não escapam do apagamento.
Estruturalmente estamos condenados a um sistema onde é preciso explorar a mão de obra para gerar riqueza, e estão arraigados à sociedade as instituições que estruturam os valores da sociedade e delimitam a subjetividade dos indivíduos. Existe uma construção histórica metodológica que colocou as mulheres como submissas aos homens.
Vivian explica como essa relação de poder se estruturou historicamente sob as mulheres: “o poder da religião é um poder político, e que desde sempre amarrou casamentos e riquezas. Temos o poder biológico, a ciência, construindo imaginários deturpados sobre as mulheres, contestando a sanidade das mulheres”.
A professora adiciona que a sociedade está dominada por um pensamento de que “uma mulher não é capaz de gerenciar a sua própria vida”. E que são colocados “uma série de impedimentos biológicos vinculados à gravidez, à menstruação, à questão sexual, para que também houvesse uma culpa e uma fragilidade, fazendo da mulher um sexo frágil. Então, os homens sempre se apropriam do corpo e do fazer das mulheres para unir riquezas e fazer mais dinheiro”.
Para ela, esse processo é ainda mais intenso para as mulheres negras e indígenas da América Latina, sendo sempre estereotipadas e vítimas da zoomorfização – atribuição de características animais a seres humanos – de seus corpos ao longo da história.
Enquanto os homens se preocupam em lucrar a partir da exploração incessante da terra, com um sistema de monocultura que contamina o solo e esgota os ecossistemas, as mulheres preocupam-se com a subsistência sustentável, buscando uma qualidade de vida digna e que preserve os recursos naturais – a análise se estreita quando consideramos homens não-brancos, uma vez que estes não acessam o mesmo tipo de poder detido pelos homens do patriarcado eurocêntrico comumente aplicado.
Os cultivos plurais e biodiversos ao redor de suas casas “não eram vistos como importantes na estrutura capitalista, e na manutenção do sistema familiar, considerados apenas miudezas das mulheres. As dificuldades começam com a invisibilidade desse modo de cultivar a terra, de produzir, que é menos importante que o modelo de mercado. Então, o que dá dinheiro é importante, o que não gera moeda não é, assim, as mulheres já saem perdendo de largada”, destaca Vivian sobre o apagamento das mulheres na agroecologia.
O cultivo agroecológico surge contra essa lógica. Os espaços que seguem as bases desse conhecimento possuem um grande valor para a biodiversidade. Em entrevista, Vivian Delfino recorda o encontro com uma agricultora que possuía um quintal produtivo com cerca de 161 espécies. Essa guardiã conhecia cada uma das espécies e sua funcionalidade, lembrando até mesmo a história de onde veio a muda.
Para a especialista, a desvalorização desses espaços agroecológicos interfere na aquisição e na transmissão dos saberes dessas mulheres, reproduzindo a invisibilidade feminina. “É uma riqueza de saberes que ainda não foi acessada e para que possa ser acessada, as mulheres têm que estar no espaço onde possam falar, onde possam compartilhar esse conhecimento”, complementa ela.
Além da negligência do conhecimento e das técnicas de manejo, a maioria das agricultoras enfrentam um desafio político e social: a falta de apoio financeiro e presença nos espaços de poder e de decisão. Vivian denuncia que a precariedade e recursos escassos dificultam a produção e comprometem a saúde das agricultoras, impedindo a aquisição de maquinários que podem aliviar o esforço físico.
“Na questão de saúde, a gente sabe que as mulheres estão bem mais adoecidas hoje. São mulheres que trabalham há muito tempo, começam muito cedo. Então, têm muitos problemas de saúde, problemas de coluna; e aí você não tem recurso para comprar uma máquina que vai facilitar o trabalho”, pontua ela.
Relação mulher e natureza: um vínculo ancestral
Lutar pela preservação das terras é também lutar pelos seus corpos, uma vez que na cosmovisão indígena, por exemplo, o corpo da mulher está diretamente conectado ao território em que ela reside, sendo um corpo-território, que carrega toda a memória ancestral de seu povo.
Em dados publicados através do Censo Agro 2017, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os territórios administrados por povos indígenas têm a produção agrícola mais diversificada (43,24% classificados como diversificados e muito diversificados) e com menos agrotóxicos. Além disso, a participação das mulheres possui taxas elevadas nas produções realizadas por indígenas (com participação de 25,90% das mulheres), seguido das produções de pessoas pretas (com 24,57% das mulheres atuantes na agricultura).

As pesquisas refletem a cosmovisão e atuação das mulheres de comunidades tradicionais e não-brancas na realidade, como agentes essenciais para a subversão da agroindústria, esta que agride e intensifica a catástrofe climática. Os Sistemas Agrícolas Sustentáveis (SATs) são a base da agricultura indígena e quilombola, amplamente angariados pelas técnicas femininas.
O intelectual e líder quilombola, Antônio Bispo, carregou em seus manifestos a urgência de se disputar o conceito agroecológico construído na academia, porque as práticas de produção consciente e equilibrada com a terra, e que valorize a interação humano-natureza sempre existiu nas Roças de Quilombo e de Aldeia. A sociedade deve apreender que existe um conhecimento ancestral que não precisa ser descoberto, ele precisa ser visibilizado, com a participação ativa dos povos detentores desse saber.
Com seu discurso contra-colonial, Bispo levou adiante o conceito de Biointeração Afropindorâmicas – termo criado pelo intelectual para se referir aos negros e indígenas do país, substituindo o termo “indígena” vinculado aos colonizadores. Na biointeração os corpos estão em harmonia com a natureza, sustentados pela coletividade e pela comunhão orgânica entre os saberes ancestrais com o território.
A agroecologia ecofeminista com base no feminismo negro e comunitário promovem a construção da soberania coletiva dessas diversas mulheres. “Elas constroem os seus quintais produtivos em coletivo também, uma ajudando a outra a crescer e a fazer com que tenham um espaço para que seus produtos escoem e cheguem em mais pessoas, para além da segurança alimentar delas mesmas”, elucida Vivian Delfino.
Vivian também destaca que “para acessar o poder de transformação que a ancestralidade é capaz de fazer, você tem que ter deixado esse legado e tem que ser cuidadora da vida, e estar em conexão com a natureza. Esse é um perfil extremamente feminino. Extremamente feminino no sentido de cuidar, no qual já chegamos à conclusão que cuidado não é uma palavra que deprecia o trabalho das mulheres, mas qualifica e caracteriza”, as mulheres cuidam de uma forma saudável e se preocupam em como as diferentes formas de vida vão progredir.
Troca de saberes e educação ambiental
O conhecimento da ativista Valdenise Gomes vêm de sua avó, que também cultivava uma grande variedade de plantas em seu quintal. A agricultora se orgulha em dar continuidade a essa prática. “É uma coisa que eu devo à minha família. Se eu não fizer, eu tô matando eles duas vezes. O que eles tentaram fazer e não conseguiram por falta de condição, eu posso fazer hoje”, pontua ela.
A ativista utiliza uma técnica ancestral de cultivo: a utilização de sementes crioulas. Elas são sementes oriundas de plantações orgânicas, normalmente passadas de geração em geração. Ela explica que seleciona as melhores plantas para fazer a coleta das sementes, depois planta em seu quintal novamente na época correta, seguindo um calendário de plantio feito por ela mesma, e depois também realiza a troca das sementes e a doação de mudas.
Esse conhecimento ancestral é o contrário da lógica de mercado que visa a produção em larga escala. O modelo da monocultura é considerado, pela agricultura, um ciclo vicioso de destruição devido ao uso exacerbado de agrotóxicos. É um método de plantio que “vai matar um bocado de gente e não vai ser nem de fome”. Isso porque ao trabalhar sua propriedade com veneno, o agricultor contamina a água, os animais e, consequentemente, as pessoas.
Valdenise denuncia que os agrotóxicos afetam as plantações orgânicas e que é fundamental o ensino da educação ambiental para as novas gerações. “É algo que não vai ser trabalhado de hoje para amanhã, é sedimentar. Você ensina a criança hoje, ela vai crescer com aquela ideia, e [vai ensinar] para o filho dela e para o vizinho, até chegar no ponto que a gente só faça a manutenção desse problema”, pontua ela.
Empoderamento das mulheres através da agroecologia
Os quintais produtivos agroecológicos – diferentemente do modelo da agricultura convencional, monocultora e dependente de agrotóxicos – são majoritariamente cultivados por mulheres, sendo uma ferramenta de empoderamento que incentiva a transformação pessoal e a autonomia financeira.
A agricultora Valdenise exemplifica essa transformação. Ela comenta que “a maior parte dos quintais, quem cuida são mulheres”, e isso acontece porque “o marido vai trabalhar e a mulher fica em casa, então ela não está fazendo nada e vai cuidar do quintal”. A dedicação ao plantio doméstico deixa de ser uma simples tarefa e se torna um poderoso meio de autonomia financeira, construção de redes de contato e apoio entre as agricultoras.
A ativista fala sobre a tristeza causada pela solidão, muitas vezes após os filhos crescerem e saírem de casa, tristeza essa que é quebrada após a ressignificação do cultivo e do aumento do círculo social. “Seus filhos já estão casados e sobra apenas você, você e seu marido, você e seus pais; é quando começa uma tristeza de viver só. Se a gente pega essas mulheres dessa idade e dá um ressignificado ao que ela já sabe fazer, existe uma grande transformação. Não é questão de dinheiro, nem tudo se resume a isso porque chega um momento que isso não vai valer nada, o que vai valer são suas companhias”, reflete ela.
A pesquisadora Vivian Delfino menciona o caso do projeto “Flores de Ximenes” que coordenou em Pernambuco, onde mulheres encontraram um novo lar depois de perderem suas terras de origem e serem deslocadas em um território a 400 quilômetros de distância: “Com a agroecologia elas criaram afeto [com o novo território]. O projeto gerou esse sentimento de pertencimento para o território e fez com que elas se encontrassem, porque era um território muito grande. Famílias vindas de diversos lugares foram colocadas ali sem vínculo nenhum. Uma era de Minas, a outra era da Bahia. Então elas criaram um vínculo por estarem trabalhando juntas e aí se uniram”.
As mulheres garantem a segurança alimentar da família e da comunidade local. Elas constroem uma ação coletiva, incentivando o bem-estar através da troca de saberes, sementes e mudas. “O conceito do quintal é assim: se você tiver, você traz; se você não tiver, você leva”, comenta Valdenise.
Essa coletividade incentiva algumas mulheres a saírem da esfera privada (cuidado com o lar) para ocuparem o espaço público – feiras, eventos, movimentos sociais, palestras, entre outros. Essa transição aumenta a presença das agricultoras femininas nos espaços de poder e decisão, alterando a visão patriarcal que define a mulher apenas como ajudante, garantindo que seja reconhecida pelo seu saber técnico.
A agroecologia e sua essência plural
Faz parte da luta agroecológica a valorização e resistência das mulheres não-brancas, para que possam recontar suas histórias sem as amarras do discurso eurocêntrico instaurado. É uma luta contra o agronegócio que deve ser construída olhando para a tecnologia ancestral que nos rodeia, com a valorização de práticas agrícolas justas, cristalizadas através da vigilância permanente dos territórios, para que seja possível acessar a justiça social e climática.
A policultura, a troca de saberes, a biodiversidade, o cuidado com as sementes crioulas e o trabalho feminino é a arma necessária para lutar contra a agricultura monocultura oriunda de um sistema colonial que visa o lucro acima do bem-estar.
