
Por Beatriz Malheiro
São duas da tarde. Sol de quase dezembro. Eu me aproximo da funerária com os pés doloridos por conta da subida da Rodrigues Alves.
Avistei um senhor sentado em frente à administração, parecia em horário de almoço. Perguntei por onde eu poderia acessar o cemitério, ele me explicou que a única entrada era pelo portão da Hermínio Pinto. “Beleza”, pensei. “Vou entrar lá e ver quem está trabalhando hoje”.
Passei a entrada, tudo silencioso. Conseguia ouvir apenas o ruído dos ventos nas folhas das árvores.
Perambulando um pouco pelo terreno, percebi que não havia ninguém em serviço, nem nenhum visitante. Tudo vazio. Decidi então voltar à funerária para saber de alguma informação. Cheguei perto do homem que estava sentado e perguntei:
— Boa tarde. O senhor conhece alguém que limpa os túmulos aqui no cemitério? Sou repórter do Jornal Contexto e estou escrevendo um texto sobre.
— Conheço sim. Às vezes eu mesmo limpo.
— Ah, que bom! Posso entrevistar o senhor a respeito?
— Agora eu não consigo… Ó, já tenho que voltar pro serviço. Fico lá na portaria.
— Se eu te acompanhar, você consegue? Esse texto é importante — respondi, já perdendo a esperança.
Ele me olhou de cima a baixo em completo silêncio. Com o rosto sério, cerrou um pouco os olhos e finalmente concordou. Me pediu para segui-lo.
Nós atravessamos o espaço interno da funerária e entramos no cemitério através de uma porta exclusiva para funcionários. Fiquei quieta o caminho todo — desde a administração até a portaria da Hermínio Pinto.
Chegando perto do portão azul, o homem puxa uma cadeira, se senta e diz, sorridente: “Esse é o meu cantinho!”
Sentei no chão, próxima à cadeira, e comecei a entrevista. Me apresentei, expliquei que se tratava de um perfil de sua vida, e do objetivo que eu tinha de retratá-lo através de seu trabalho.
O senhor de cabelos grisalhos, pele enrugada e semblante sério se chama André. André de Oliveira.
Começamos falando de sua vida pessoal. Ele responde todas as perguntas com certa precaução, aparentando pensativo antes de começar a falar. Explicou que sua cidade natal é Duartina — pequeno município próximo de Bauru. Hoje está casado, teve 5 filhas ao longo da vida.
Falando de seu trabalho, André explica em poucas palavras que trabalha para o Cemitério da Saudade há 31 anos. Antes disso, seu trabalho era fazer bicos de pedreiro.
Atualmente, André frequenta o cemitério dia sim, dia não. Metade de seus dias se passam ali, na segunda quadra da Rua Hermínio Pinto, observando o entra e sai daqueles que passam para visitar os entes queridos que se foram. Para ele, a morte é agora rotina, costume.
Quatro de suas filhas também estão habituadas ao fim da vida — comparecem ao cemitério quinzenalmente para limpeza de túmulos. “Elas estão desempregadas, então o dinheiro fica para elas. 240 reais o serviço”.
Perguntei como ele lida com o trabalho, como se sente encarando a vida e a morte com tanta frequência: “É… aqui a gente é até acostumado com isso aí”, responde, parando logo em seguida.
“Mas não é muito bom… Ah, você começa a lembrar de muita coisa, né? Aqui você lembra dos que já foram… Minha mãe, meu irmão, minha filha”, continua, com a face entristecida.
De repente, ele diz:
— Dezoi- 17 anos.
— Ela morreu aos 17 anos? Sinto muito.
— Não. Tem 17 anos que ela morreu. Ela tinha 27 — ele responde, desviando os olhos de mim e fixando-os no chão. Com o rosto ainda triste, André se cala por alguns segundos.
Perguntei se trocaria de emprego caso houvesse oportunidade: “Ah, eu já me acostumei. É que o meu serviço é isso aqui. Não tem outro jeito, é só isso aqui”, e finaliza explicando que tem tendões estourados no braço e enfisema pulmonar, que o impedem de conseguir fazer força.
— André, acho que tenho informações o suficiente sobre você. Certeza que não tem mais nada que gostaria de dizer?
— Não. Só isso mesmo.
— Então tá bom! Muito obrigada, viu?
— De nada!
Terminei a entrevista guardando seu número de telefone para retornar com o texto escrito e retornei à Avenida Rodrigues Alves, fazendo meu caminho de volta para casa.
