A dicotomia de opiniões no cenário literário sobre os critérios que definem o valor, a função e os limites da produção literária. 

Por: Jhenifer Oliveira   

As críticas literárias Dirce Waltrick Amarante e Regina Dalcastagnè debatem sobre o conceito de literatura na atualidade.

Em uma entrevista à Folha de S. Paulo, a tradutora e professora Aurora Bernardini causou polêmica no cenário literário ao questionar: Qual o conceito de literatura? Ao expressar suas opiniões em relação a algumas obras de autores famosos no mercado editorial contemporâneo, Bernardini afirmou que tais livros não deveriam ser considerados como literatura, o que proporcionou uma reação forte do público. 

Em seu depoimento, a professora afirma que a literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo e esquecer a forma. Em seguida, exemplifica seu posicionamento com a obra “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, revelando que o livro em conteúdo é “apaixonante, insólito e original”, mas que o autor não apresenta um estilo particular em sua forma. A tradutora também fala sobre Eco, Ernaux e Ferrante e afirma que tais escritores cativam o público com livros que apresentam conteúdos de interesses comuns e experiências acabrunhantes, mas que, para ela, não passam de best-sellers. 

Tal posicionamento gerou uma grande repercussão em redes sociais sobre os critérios que definem o valor literário de uma obra. Muitas pessoas destacaram a questão da dicotomia de “alta” e “baixa” literatura, uma diferenciação criada após o mercado editorial crescer e começar a vender obras em massa, a fim de definir quais livros eram considerados dignos de ser uma boa literatura ou apenas materiais de entretenimento. A tensão entre esse conflito ressurgiu com opiniões diversas, na qual parte das pessoas consideram a distinção como preconceito literário, enquanto outras a veem como necessária para discernir obras que têm maior significado. 

 A crítica literária Dirce Waltrick Amarante, que concorda com a professora Bernardini, acredita que o conceito de literatura é fundo e forma e usa como exemplo o livro “Lições de Poética”, de Paul Valéry para consolidar seu ponto de vista. “Acredito que a literatura sempre te coloca num lugar de desconforto, mas um desconforto que é interessante, que te faz sair do teu lugar, da tua zona de conforto, mas essa é a minha opinião de literatura, e é o que eu digo, cada um tem a sua”, afirma Waltrick. A crítica também opina sobre o valor estético requisitar uma linguagem mais rebuscada. Segundo ela, levar o leitor ao desconforto em relação a essa linguagem, tem toda uma reflexão filosófica por trás da banalidade do cotidiano, da banalidade do que a gente fala, dos clichês que nós usamos no dia a dia. 

Durante a entrevista, a tradutora expressou sua indignação em relação às críticas e discursos de ódio direcionadas à professora e trouxe a reflexão de como debates acontecem atualmente. “Acho que nossa reflexão em torno de determinados temas, sejam eles políticos, literários, artísticos, enfim, está muito intolerante, as coisas já não ficam apenas numa zona da reflexão intelectual”, afirma Waltrick. Ela acredita que devido aos exemplos citados por Aurora serem autores famosos, isso acumulou uma grande onda de “hate” de seus fãs. “O autor Muzy tem uma analogia que fala sobre isso, quando se coloca algo em um pedestal, transforma aquilo em um monumento, a gente perde a conexão com o que realmente importa, e eu acho que é isso o que aconteceu com essa legião de fãs”. 

A pesquisadora e crítica literária Regina Dalcastagnè, concorda que as críticas em relação à professora Bernardini tomaram proporções desnecessárias, mas discorda em relação à opinião da professora sobre o conceito de literatura ser estilo e forma. “Eu acho que nós devemos discutir, se é um texto proposto como literário pelo escritor, tem personagens, tem uma trama, tem todo um envolvimento, é literatura”, explica. A pesquisadora também propõe a reflexão de tal conceito ser pautado em valor estético. “Uma posição conservadora e até um tanto elitista, que é de alguém que se sente no direito de dizer isso é literatura e isso não é, então, se não é literatura, teria que sair completamente do campo dos estudos literários”. Dalcastagnè acredita que há um grande incômodo na expansão de obras feitas por grupos sociais que não têm o total domínio sobre a linguagem e estão experimentando fazer literatura muito recentemente. “Se não tem forma, continua sendo literatura e é importante, porque faz parte da necessidade de auto representação desses grupos”, diz a crítica. 

Para explicar seu ponto sobre excluir determinadas obras e defini-las como não literárias, Dalcastagnè cita uma analogia do livro “Teoria Literária”, de Terry Eagleton. Tal metáfora propõe que a literatura funciona como um jardim. O jardineiro decide o que é flor e o que é mato, mas essa definição muda quando outro jardineiro entra e reconhece beleza no que antes foi arrancado. A pesquisadora declara que tal definição ajuda a entender como os critérios de valor mudam com o tempo e com as disputas sociais. “Quando movimentos negros, feministas, periféricos e LGBTQIA+ dizem ‘também queremos estar nesse jardim’, estão reivindicando espaço para contribuir com a beleza, a crítica e a leitura do presente”, afirma.

No fim, apesar de todos debates, é possível analisar que não há uma conclusão, e sim opiniões intelectuais diferentes, que mostram como questões históricas, sociais e culturais podem ser narradas de diversas formas. Entre o desconforto estético defendido por Dirce Waltrick e a liberdade do conceito de literatura proposta por Regina Dalcastagnè, o que se evidencia é que a definição de literatura permanece em constante disputa e em permanente mudança, conforme o surgimento de novos autores e leitores. 

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