Nas quadras, piscinas e ginásios de Araraquara, o esporte se tornou mais do que um lazer. Por meio de  políticas públicas o esporte busca formar cidadãos, promover convivência e oferecer novas perspectivas para aqueles que enfrentam as desigualdades

Por Gabrielle Camili Dolce

Nas Escolinhas de Esportes da Fundesport (Fundação de Amparo ao Esporte do Município de Araraquara), centenas de crianças e adolescentes participam diariamente de atividades gratuitas, orientadas por profissionais capacitados e alinhadas ao objetivo principal do projeto: democratizar o acesso e fortalecer a inclusão social.

Ginásio de Esportes Castelo Branco (Gigantão) em Araraquara. Foto por Gabrielle Camili Dolce

Para o professor, Fábio Reina da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer, e gestor esportivo, o impacto dessa rede vai muito além dos aspectos materiais. “O esporte é um instrumento de equidade social que ajuda a reduzir desigualdades e promover o desenvolvimento humano em todas as dimensões: cognitiva, afetiva e motora”, afirma Fábio. Com décadas de atuação no município, o secretário ainda defende que políticas públicas esportivas devem priorizar o acesso e a permanência de seus frequentadores, garantindo que crianças de diferentes bairros encontrem oportunidades perto de casa.

Fábio Reina da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer. Foto por Gabrielle Camili Dolce

Com mais de 90 pontos distribuídos pela cidade, as escolinhas de esportes de Araraquara são um programa gratuito da prefeitura que oferece aulas de mais de 20 modalidades esportivas para crianças e adolescentes de 6 a 17 anos, em diferentes locais da cidade. O objetivo é promover a inclusão social, o desenvolvimento de habilidades motoras, disciplina e trabalho em equipe, além de incentivar a prática de esportes como ferramenta de cidadania, que abrangem modalidades como o futebol, natação, atletismo, vôlei e ginástica artística. O modelo de distribuição das unidades das escolinhas aposta na descentralização para facilitar o contato entre as equipes e as comunidades. “O primeiro passo da inclusão é o acesso, a criança precisa encontrar o esporte no seu território, em um ambiente seguro e acolhedor”, explica. Segundo ele, o objetivo não é formar apenas atletas de alto rendimento, mas sim formar cidadãos mais autônomos, saudáveis e preparados para viver em sociedade.

O esporte, além de movimento,é apresentado como um espaço de convivência, tomadas de decisões e construção de valores. Fábio explica que, em um contexto marcado pelo uso excessivo de telas e pela perda de habilidades sociais, as práticas esportivas ajudam a recuperar experiências fundamentais para o desenvolvimento. “As tecnologias oferecem respostas prontas, e devido a isso as crianças estão deixando de pensar criticamente.  Porém o esporte devolve a elas essa capacidade de decidir, de se relacionar e de resolver problemas, é um exercício constante de convivência e reflexão”, aponta.

Do treino à vida: histórias que começam na escolinha

Na ginástica artística, a professora Juliana Desidério acompanha de perto essas transformações. Ex-atleta das próprias escolinhas municipais, iniciou na modalidade aos 8 anos e, desde então, dedicou sua vida à ginástica. Hoje, com 17 anos de experiência como técnica da equipe da cidade, ela vê nas alunas um reflexo da própria história. “Eu não consigo pensar na formação de uma criança sem o esporte, aqui, elas aprendem disciplina, convivência e respeito. Muitas chegam com realidades difíceis e encontram no treino um caminho possível”, explica.

Treinadora Juliana Desidério e a equipe de ginastica artística de Araraquara. Foto por arquivo pessoal

Juliana acredita que a prática esportiva é uma importante ferramenta não apenas na educação, mas também em seu desenvolvimento. “Eu sei que existem crianças que não são aptas ao esporte ou até mesmo não gostam tanto, mas é essencial que ela vivencie o esporte durante seu desenvolvimento”, afirma. Ela aponta também que a atividade esportiva oferece novas/diferentes expectativas de futuro. “Ele não precisa ser um atleta de alto rendimento para viver o esporte, existem muitas maneiras de trabalhar com esporte. Eu vejo o esporte como uma ferramenta de educação, assim como a escola “, comenta.

A professora Juliana também compartilha a própria trajetória para explicar por que acredita tanto no papel social do esporte. Ela conta que cresceu em uma família que enfrentava sérias dificuldades financeiras a ponto de a mãe tirar parte da própria marmita do trabalho para garantir a alimentação dos filhos. “Minha mãe lutou para que tivéssemos um caminho”, diz ela. Para Juliana, essa realidade se repete nas escolinhas. Muitas crianças enxergam no esporte a única possibilidade de construir um futuro diferente. Ela explica que a equipe incentiva os alunos a permanecerem na escola, concluírem os estudos e até buscarem bolsas de faculdade. Em contraponto, comenta que jovens de classes mais altas não precisam abrir mão de lazer, tempo livre ou estabilidade para seguir treinando, enquanto jovens atletas em vulnerabilidade precisam conciliar rotina puxada, falta de recursos e, em muitos casos, responsabilidade com a própria sobrevivência. “Tenho alunas com dez irmãos que usam o dinheiro da bolsa para ajudar a alimentar a família”, comenta. Para elas, o esporte não é só escolha e sim uma chance de evitar caminhos de risco e violência, como a criminalidade, e encontrar uma perspectiva de vida que antes não existia.

Ginásio de ginástica artística no Gigantão em Araraquara. Foto por Gabrielle Camili Dolce

Entre os exemplos mais marcantes de crianças que tiveram sua vida transformada pelo esporte, a técnica cita a história de Isabela, uma jovem ginasta de 17 anos que entrou no projeto aos 6 anos. “Ela veio de uma situação familiar muito delicada, com vulnerabilidades sérias. Hoje é uma das principais atletas do município e usa o dinheiro da bolsa que recebe para ajudar a mãe a construir a casa da família”, conta Juliana. “O esporte deu a ela uma perspectiva que antes não existia”, conclui. 

Fábio também cita situações semelhantes. Ele relembra o caso de um jovem atleta paralímpico que iniciou nas escolinhas, e anos depois tornou-se vice-campeão mundial de atletismo. “Era um menino de classe popular, com deficiência e pouca perspectiva, mas teve acesso ao projeto e encontrou um caminho e hoje tem patrocínio, viaja e representa o país”, comenta.

Uma segunda família 

Para muitos jovens, o ambiente esportivo se torna uma rede de apoio afetivo. Juliana conta que, em alguns casos, os alunos passam mais tempo no projeto do que com os pais. “Nós viramos uma segunda família, eles confiam, compartilham dificuldades e nos pedem ajuda, e nós assumimos essa responsabilidade de orientar, acolher e sempre mostrando que nada vem de graça e que é preciso esforço”, conta a professora.

A técnica explica que a rotina é intensa, são treinos diários, avaliações, viagens e campeonatos. Ainda assim, as crianças entendem a importância da oportunidade que esse projeto gera. “Alguns nunca tinham viajado ou sequer entrado em um avião, e quando isso acontece pela primeira vez, elas percebem que o esporte pode levá-las para lugares que antes pareciam impossíveis”, relata.

O acompanhamento também é emocional. “Conversamos muito com elas, quando algo não vai bem, tentamos entender, e quando necessário, contamos com apoio psicológico da Fundesport”, explica.

Desafios de um mundo conectado

Apesar de seus resultados positivos, os profissionais enfrentam desafios constantes, especialmente o impacto das telas e das redes sociais no comportamento dos alunos. “O problema não é o celular, é o excesso de uso, as crianças estão tão acostumadas com respostas prontas que perdem a autonomia intelectual e no esporte elas recuperam essa autonomia”, ressalta Fábio.

A permanência e o incentivo do adolescente é outro ponto  destacado por ele. A combinação de pressão escolar, rotinas mais pesadas e falta de incentivo familiar contribui para o abandono da prática esportiva. Por isso, o secretário acredita que o papel da família é essencial. “Não adianta só colocar o filho no treino, os pais precisam participar, valorizar e estar presentes, e quando a família entende a importância do esporte, tudo muda”, afirma.

Mesmo sem medalha, o esporte muda destinos

Os professores insistem que o objetivo principal não é o alto rendimento. A função social das escolinhas está em oferecer experiência de convivência, disciplina e pertencimento, elementos fundamentais para a formação cidadã. “Nosso objetivo não é formar atletas, é formar pessoas”, diz Reina. “Se um ou outro chegar ao alto rendimento, ótimo. Mas todos têm direito de viver o esporte e colher seus benefícios”.

Juliana reforça que os maiores resultados não aparecem no pódio, mas na vida cotidiana. “Quando vejo uma menina que chegou, com dificuldades familiares, se transformar em uma jovem responsável, disciplinada e cheia de metas, isso é o que vale pra mim”, comenta.

Fábio destaca que o impacto do esporte não se limita ao presente, mas segue acompanhando as crianças até a vida adulta. Para ele, quando uma criança da periferia passa por um processo formativo consistente, marcado por convivência, disciplina e acesso a direitos, ela se torna um adulto mais consciente e preparado para atuar socialmente. “Se essa criança da classe periférica consegue ter toda essa formação, com certeza ela vai ser um adulto melhor, porque ela venceu todo esse processo”, afirma. 

O professor explica que jovens que vivenciam essas experiências desenvolvem a capacidade de compreender deveres, identificar direitos e cobrar melhorias dos órgãos públicos, justamente por terem enfrentado as realidades que desejam transformar. “Quanto mais você melhora lá, mais consegue harmonizar direitos e deveres”, diz. Segundo ele, esse deve ser o olhar do gestor público: priorizar quem tem mais necessidade e garantir que políticas esportivas cheguem de fato às crianças que precisam.

Em Araraquara, a política pública esportiva vem se consolidando como ferramenta de inclusão e transformação. Entre treinos, conversas, dificuldades e conquistas, o esporte tem assumido um papel fundamental na vida de muitos jovens, especialmente aqueles que mais precisam de apoio. Para Fábio, esse é o caminho. “O esporte transforma realidades, mas tudo começa em casa, na família que incentiva, participa e acredita no movimento.” Juliana carrega a mesma convicção. “Não importa se vão seguir carreira no esporte ou não. O importante é que saiam daqui melhores do que entraram, mais fortes, mais disciplinados e mais conscientes do próprio valor”, conclui.

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