O debate sobre o negacionismo científico crescente pós pandemia de COVID-19 coincide com o aumento de movimentos políticos extremistas no Brasil.
Por Isabella Santana da Silva
O negacionismo pode ser definido como “uma atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam”.
Na área científica não se faz diferente: nos últimos cinco anos, desde o início da pandemia de COVID-19, a ciência vem sendo desacreditada cada vez mais pela população brasileira.
Entretanto, esse fenômeno não é algo recente. Casos anteriores como o crescimento do movimento antivacina no século XX já davam indícios de que grande parte dos brasileiros não confiavam na ciência brasileira.
Segundo Silvia Walz, antropóloga formada pela Universidade Federal de Santa Catarina, as teorias conspiratórias não mudaram, apenas se reinventaram com a ajuda das plataformas digitais para se disseminar mais facilmente.

“O negacionismo não é novo, mas o ambiente digital deu a ele uma nova escala e capilaridade. Hoje, a desinformação circula dentro de ecossistemas digitais altamente interconectados, em que a autoria se dilui e a responsabilidade se dispersa”, declara a antropóloga.
Walz afirma que o negacionismo é menos uma recusa da ciência em si e mais uma disputa sobre o que a ciência representa.
“As áreas mais atingidas são justamente aquelas que têm impacto direto sobre a vida coletiva e sobre políticas públicas. Durante a pandemia, o alvo foi a medicina e a saúde pública”, explica.
COVID-19 E O NEGACIONISMO CIENTÍFICO
Nos anos de pandemia, grande parte do negacionismo foi ocasionado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro ao proferir falas tendenciosas sobre o coronavírus e as vacinas.
Casos muito conhecidos de Bolsonaro na época, como dizer que a bula da Pfizer não se responsabilizava caso “virassem um jacaré” após injetá-las ou que pandemia se tratava apenas de uma “gripezinha” trouxeram um resultado quase de imediato: milhares de pessoas recusaram a se vacinar, começaram a se automedicar e ignorar as recomendações de prevenção da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Em 2021, o Brasil vivenciou dias árduos, principalmente quando atingiu o segundo lugar no ranking de países com mais mortes por COVID-19, atrás apenas dos Estados Unidos.
Nas telas dos celulares, informações falsas circulavam cada vez mais com rapidez.
A grande maioria das mensagens tinham um cunho mais emocional e comunitário que uniam pessoas pela indignação e pela sensação de acesso a uma “verdade escondida”.
“Esse processo tem relação com o que Shoshana Zuboff chamou de capitalismo de vigilância, um sistema que monetiza a atenção e o engajamento, favorecendo conteúdos que despertem medo, raiva ou esperança. A desinformação prospera porque ela é emocionalmente vantajosa para as plataformas e, em muitos casos, para os atores políticos que se beneficiam dela. Como diria Cesarino, esse tipo de narrativa é produtiva politicamente porque transforma o medo em ação moral, e a incerteza em identidade”, afirma a antropóloga Silvia Walz.
Parte significativa do crescimento das teorias conspiratórias vêm de contextos de desigualdade, precariedade e sentimento de desamparo institucional.
“Quando o Estado falha em oferecer respostas concretas, seja na saúde, na segurança ou na educação, parte da população busca explicações que ressoam afetivamente. Teorias conspiratórias cumprem esse papel, elas oferecem narrativas simples para realidades complexas”, completa Walz.
De acordo com a matéria “Porque as pessoas tendem a acreditar em teorias da conspiração na era digital” do Jornal da USP, “em tempos de crise, esses comportamentos tendem a aflorar em diversos setores da sociedade. A fragilidade de populações expostas a perigos iminentes como a fome, doenças, déficits habitacionais e aumentos da violência criam um campo fértil para discursos e lideranças extremistas”.
CONSPIRAÇÃO E POLÍTICA
As teorias de conspiração estão profundamente conectadas com a ideia polarizada de que as “pessoas do bem” precisam contrariar o que consideram oposição, como universidades ou imprensa. Esse pensamento os move a acreditar que negar a ciência passa a ser um gesto de lealdade política.
Segundo o professor do curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense e coordenador do projeto de pesquisa Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberanias Informacionais (INCT-DSI), Afonso Albuquerque, a questão do negacionismo é bem mais do que apenas negação dos estudos, é também política.

“As teorias de conspiração são manifestações de interesses privados de empresas, se opondo ao conhecimento público. Existe uma diferença imensa entre você querer questionar para saber melhor e você questionar para obstruir o debate. O grande objetivo deles é impedir que um debate seja feito”, afirma o professor.
Um dos pontos defendidos por Albuquerque é que o princípio neoliberal de que o mercado se autorregula e que a disputa faz o sistema funcionar, acaba afetando diretamente as universidades quando o assunto é a verba para educação e pesquisa, fazendo com que as universidades precisem competir entre si.
O resultado se vê quando as pesquisas científicas se veem quase inteiramente dependentes de financiamento privado.
“Quando você tem uma privatização da ciência, você quebra um pouco a confiabilidade. Por outro lado também, na lógica neoliberal, o governo é cada vez menos um representante dos cidadãos e cada vez mais um administrador-geral de questões para a manutenção do mercado. A gente vê, então, uma crise da legitimidade da política”, explica Afonso.
Ataques à ciência se tornam mais comuns quando um grupo majoritário de pessoas com alto alcance midiático reproduz o argumento que a ciência brasileira não é eficaz.
“O alcance das plataformas leva a uma dinâmica na qual o discurso sensacionalista, polarizador e que atrai emocionalmente tende a superar o discurso fundamentado. De alguma forma, a lógica desses influencers que atuam no campo do debate público tende ser a lógica da polarização”, explica o professor.
Entretanto, mesmo com o aumento da polarização política, naturalmente o cenário brasileiro não possui uma tradição forte de extremismos. Exemplos frequentemente citados no exterior são os Estados Unidos, com a Ku Klux Klan e a Europa com a ascensão do nazismo.
“A extrema-direita brasileira copia essas coisas. Ela quer se guiar por modelos estrangeiros, importar agendas”, diz Albuquerque.
Nos últimos anos, a extrema-direita nacional conduziu várias ações espelhadas na extrema-direita norte-americana. Casos mais famosos como o ataque aos Três Poderes no dia 08 de janeiro de 2023 foram inspirados no ataque ao Capitólio no dia 06 de janeiro de 2021.
A adoção dessas ideologias extremas vem após o crescimento do movimento bolsonarista, que deriva dos ideais de Jair Bolsonaro. O repúdio às instituições de pesquisas e às universidades têm um forte laço com os ataques nos anos de pandemia de COVID-19.
“O Bolsonaro se colocou numa situação de ser um presidente anti e isso criou uma noção de que estávamos vivendo uma crise de governabilidade. Ele atacou todas as instituições. Isso tudo contribuiu para a situação atual dele”, completa Afonso
Segundo Afonso, as ações de Bolsonaro colaboraram para que o Supremo Tribunal Federal (STF) chegasse a uma decisão em setembro de 2025: 27 anos e 3 meses de prisão.
