Um dos maiores grupos do rap nacional fecha a semana hip hop origens de Bauru. Em entrevista, eles falam sobre o episódio de censura pela lei “Anti- Oruam”
Por Kethlyn Gonzaga de Oliveira
Domingo, (19), esteve em Bauru na Villa Rondon o grupo de rap Realidade Cruel para fechar a semana de hip hop Origens do Circuito Paulista. O evento, que possuiu apoio do Instituto Acesso Popular, contou com grandes nomes para este encerramento, desde artistas locais como Marie & Maresia, Amaranta, Rapper Scooby, MayKaveli à artistas nacionais tendo: DJ Ding, Afro X, Jovem MK , Xis e Realidade Cruel.
O show se iniciou com luzes amareladas focadas apenas no público sem iluminação no palco. A atmosfera entre os que esperavam era de ansiedade e excitação aguardando a porta lateral se abrir para que o grupo Realidade Cruel, atualmente formado por: Léo RC, Tuca Lellis, Markão II e DJ Bola 8, entrasse. Após alguns minutos, o DJ Bola 8 entrou no palco e a luz se acendeu. A plateia começou a pular e gritar ao entender que se iniciaria um “Dia de visita”, música que relata sobre o sistema carcerário e a visão do detento sobre os familiares.
O set de músicas contou com alguns clássicos como: “Ao menos uma vez”; “Liga noiz”; “Refém da amnésia”; “Depoimento de um viciado”; “O resgate” e o “Diário de um detento”.
Todas retratam realidades de maneira franca, abordando temas contemporâneos latentes como sistema prisional, espiritualidade, abandono do Estado e, sobretudo, a esperança na mudança de mente social. Para eles, “a música é como uma fotografia para o momento da vida das pessoas”, afirma Markão II.
E esta fotografia pode ser validada pelo público, segundo Markão II, a partir da observação de duas nuances: o reconhecimento do público pela necessidade de mudança e o recebimento de relatos dado as consequências destas mudanças.
“A gente consegue ver a dimensão da música por essas duas nuances, de quem consegue ainda enxergar que tem muito a batalhar para a gente conseguir terminar com muitos problemas ou amenizar muitos problemas que ainda tem na nossa sociedade e também relato daqueles que disseram ‘ a música de vocês, a palavra de vocês, foi fundamental para eu conseguir virar a chave e melhorar minha condição de vida’”, diz.
O grupo entende que para manter esta essência é necessário manter a raiz e que está é a responsabilidade que assumem desde o início .
“E se tem pessoas que saíram das drogas, pessoas que saíram do crime, foi ouvindo Realidade Cruel. Mas a gente mantém a raiz, a gente sabe de onde veio e sabe para onde quer chegar. Então essa é a nossa responsabilidade do início até o final”, explica Léo RC.
Eles se posicionam perante a cena atual do rap que tem focado em estilos virais ao invés de textos com mensagens.
“Essa é a responsabilidade que o Realidade assumiu desde o início. É manter as raízes. Se estão fazendo música sem conteúdo, sem mensagem, apenas vendáveis, cada um com a sua resposta, cada um com a sua responsabilidade “, concluiu.
Censura

Tuca Lellis, DJ Bola 8, Léo RC e Markão II em apresentação | Foto: Kethlyn Gonzaga
No início do ano obtiveram um show cancelado pela lei “Anti- Oruam” sob alegação de envolvimento do grupo com facções criminosas dado o cunho de suas letras. “Esta lei nada mais é que uma lei para silenciar todo mundo que usa manifestação artística, musical, para denunciar alguma coisa”, diz Léo RC.
O grupo acredita que com o crescimento da extrema direita no país a liberdade de expressão cultural tem sido atacada por um setor que está delimitando o que deve ou não deve ser ouvido.
“A gente acredita que principalmente por conta dessa ascensão de uma vertente política que se diz de extrema direita, a cultura de uma maneira geral está sendo atacada, porque esse setor acredita que a cultura não tem que ter voz, a cultura não tem que ter espaço”, afirma Markão II.
Mesmo cientes de que os ataques podem se repetir e de maneira mais retaliatória, o grupo afirma que isso não abalará e nem os fará sucumbir.
“E a gente é isso, não vamos nos abalar, a gente sabe que a censura está aí, mas a gente vai continuar firmes e fortes para não abaixar a cabeça e não sucumbir a esses ataques”, reitera o vocalista.
Por fim, Markão II afirma que “o Realidade Cruel nunca mediu as palavras,porque sempre relatou as coisas como elas são. Algumas pessoas podem achar um linguajar pesado, um linguajar agressivo, mas é um linguajar que não fala mentiras”, conclui.
Motivação
“Hoje em dia, o mercado está muito mais aquecido para o rap nacional, as portas estão se abrindo muito mais, os grupos passaram a ser melhor remunerados, mais reconhecidos, e aí houve essa fusão, criaram esse separatismo da old school, new school, as músicas de fulano são nesse estilo, old school é uma pegada diferente, mas a gente entende que a gente precisa estar em todos os lugares”, afirma Tuca Lellis.
Entretanto, o cenário nem sempre foi desta forma. O início do grupo na década de 90 contou com grandes “perrengues” ocasionados pela visão marginalizada do rap, falta de reconhecimento e com isso a baixa remuneração dos artistas
“Desde o início, quando o rap começou a estalar, principalmente aqui em São Paulo, os maiores perrengues aconteceram lá atrás, na década de 80, 90. Perrengues que eu digo foi em relação à falta de reconhecimento. O rap sempre foi taxado como estilo marginal, não era valorizado, não era remunerado da forma que deveria”, explica Tuca.
Apenas na mudança de século o cenário do rap começou a progredir e desde então o grupo está recebendo oportunidades antes não imagináveis.
“Em 2000 houve uma mudança nesse cenário, de 2010 até 2017, mais ou menos. E dos últimos anos para cá, o rap nacional inteiro está vivendo um momento em que nunca tivemos essa oportunidade antes” afirma a vocalista.
O aumento da visibilidade por outros meios de comunicação tem se tornado uma das motivações para manter o legado onde classificam esta nova era como “melhor fase”.
“E o que nos motiva é exatamente porque essa é a melhor fase, e nós precisamos estar nessa melhor fase também, a gente precisa estar em séries, a gente precisa estar em museus, a gente precisa estar dentro da música, a gente precisa estar em programas de TV, a gente precisa estar em todos os lugares, e o que nos motiva é o legado que nos trouxe até aqui, e a gente enxerga que ainda há muita coisa a caminhar, muita entrega a fazer”, diz Tuca.
O que sempre motivou desde o início o Realidade Cruel “é a dedicação, o amor pela história, pelo grupo, e a transformação social que a gente consegue atingir e chegar onde a gente quer chegar”, complementa DJ Bola 8.
Para eles, “nunca houve desmotivação onde há amor, quando se tem amor pela parada, quando se tem amor pelo rap, quando se tem amor pelo grupo, quando se tem amor pelas pessoas que compõem o grupo, isso é uma motivação diária, vou fazer uma música aqui, eu acho que o Marcão vir nela vai ser daora, esse refrão aqui a Tuca já vem, nossa, esse aqui o DJ Bola 8 vai fazer os squash ali e vai ficar pesado, então é isso, e a música rap sempre tem um leque de opções para poder se inscrever, então a motivação é essa, diária, nosso escritório é nas esquinas, nos becos, nas vielas, e é isso”, concluiu Léo RC.

O que esperar?
O grupo se mostra animado para o futuro com uma ‘Realidade Cruel mais cruel’, utilizando canais multimídias, inteligência artificial, estruturas maiores de palco e com uma uma surpresas pela frente, “e um projeto envolvendo Realidade Cruel e outro grupo de peso com banda e coral. É um projeto acústico que vai sair agora em 2026, aguardem”, afirma Tuca.
“Pode esperar um Realidade Cruel cada vez mais cruel e digital do que nunca, abusando de inteligência artificial, abusando de videoclipe, abusando de postura inovadora, de pirotecnia em palco, buscando dessa coisa de temas que foram ditos de uma maneira que a gente sabe que dá para explorar mais, então cutucar mais ainda algumas feridas”, diz Markão II
Para eles é necessário voltar ao passado para compreender o presente e esta é umas das ‘feridas’ que o grupo quer representar nesta nova era para o seu público.
“As pessoas, principalmente que vêm da periferia, de uma condição econômica e social não privilegiada, que essas pessoas têm que prestar atenção no passado, essas pessoas têm que entender que o que já aconteceu é o que dá a possibilidade da gente estar aqui hoje e dar saltos para o futuro, porque o que a sociedade capitalista, a sociedade excludente quer fazer o tempo inteiro é que a gente não tenha noção de onde a gente veio, o trajeto que a gente percorreu, as dificuldades que a gente enfrentou, porque se a gente não tem noção de tudo isso a gente não vai se organizar. Então, é necessário a gente olhar para o passado o tempo inteiro para aprender o que deu certo e não achar que está inventando a roda hoje”, diz Markão II
Sobre as novas temáticas, podem aguardar um Realidade Cruel um pouco mais de amor. Para Léo, “é necessário colocar amor nas músicas, mediante a todos os problemas”. Ele e complementa dizendo que no dia 20 de novembro irão lançar a primeira música desta nova era onde abordaram temas emblemáticos sobre o racismo porém sob uma perspectiva esperançosa onde o amor vence.
“Quero falar que dia 20 de novembro estaremos lançando uma nova música do qual eu falo sobre racismo, porém com amor, porque o amor venceu isso, então dia 20 de novembro, em nome do amor, música nova do Realidade”, diz Léo RC.
