Dona do canal “Careca TV” e psicóloga infantil trazem pontos de vista sobre quais impactos podem surgir na exposição de jovens na internet
Por Maria Eduarda Lopes
Foi sancionada no dia 17 de setembro a Lei nº 15.211, conhecida como Eca Digital, que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, e o dever das plataformas adotarem medidas de segurança adequadas para esse público. Esse Projeto de Lei representa um grande passo no Brasil em relação à proteção de dados e abre uma discussão sobre a privacidade dos menores de idade na internet.
O caso da jovem de 21 anos, Lorena Reginato Defende, dona do canal no Youtube “Careca TV”, se tornou um exemplo de exposição precoce nas redes sociais. A psicóloga infantil Mayara Cristina Fusinelli de Almeida, fala sobre os efeitos e impactos da exposição precoce e descontrolada de crianças na mídia.
Até então, a principal legislação que protegia esses usuários de exposições indesejadas nas mídias sociais era a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabelece regras para a coleta, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade. Essa Lei era complementada pelo Art. 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que criminaliza o ato de submeter a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento. Agora, com a sanção da Eca Digital, ela apenas reforça os princípios que ambas as legislações garantem, mas com um foco e determinação em proteger os menores nesse âmbito.
Ela conta como surgiu a ideia de criar o “Careca TV”. “Eu vivia muito ali no meio do hospital, sabe? Então, eu queria sair um pouco daquele ambiente. Na época eu via muito YouTube, eu adorava canais. E daí eu infernizei meu irmão pra ele fazer o canal pra mim. Aí eu gravei o vídeo e postei”.
Ela afirma ainda que não esperava o tamanho do reconhecimento que seu canal teve, hoje contendo cerca de 1,6 milhão de seguidores. “Eu só gravei e postei, sabe? E daí, do nada, vi um monte de gente comentando. Foi muito doido pra mim, mas acho que até hoje não caiu a ficha ainda”, diz. Apesar do período delicado que ela enfrentava, ela afirma que fazer seus vídeos eram o que lhe trazia alegria e inspiração, e sua vivência com a gravação de vídeos influenciou na escolha de sua formação, o audiovisual.
Lorena começou a postar seus vídeos com 11 anos de idade. Nessa idade, é esperado que se tenha uma supervisão dos responsáveis com esse jovem durante a realização desses vídeos. “Meu irmão que sempre ajudou bastante a gravar os vídeos, a fazer alguns roteiros, mas nada assim, supervisionado. Até porque ele fazia um roteiro e eu falava totalmente ao contrário do que ele fazia. Eu tinha total acesso, porque minha mãe não entende muito bem do YouTube até hoje”, explica. Um cenário muito comum em nossa realidade, é o fato de pessoas que não cresceram com a tecnologia nas mãos, serem leigas em relação ao uso correto das plataforma digitais, comparado a pessoas das novas gerações.

Ela acrescenta que seu irmão tinha a preocupação de futuros comentários negativos chegarem até ela, e que isso realmente aconteceu, mas que apesar das críticas, fazer os vídeos era o seu momento de lazer e conforto. Para ela, “era algo que eu postava ali no meu tempo livre. Eu não falava muito com muitas pessoas. Eu sempre falava com o meu irmão, com a minha mãe. E daí, com isso, eu consegui falar com muitas pessoas. Aí, tinha as mensagens alegres, motivadoras, e eu ficava mais feliz, mais motivada a seguir em frente. E eu acho que foi isso, na verdade, assim, que me impacta até hoje, né? Se eu pudesse voltar atrás, eu teria continuado com o canal”.
Muitas crianças e adolescentes que vivenciam essa era digital compartilham ou já compartilharam desse mesmo sentimento de querer produzir conteúdos para o digital, assim como Lorena. Mas, experiências são individuais e mesmo nos casos mais positivos, podem existir os seus riscos. A normalização de se expôr livremente por meio de vídeos ou imagens está diretamente ligada a tendências de mostrar uma rotina perfeita, ter vídeos virais e ter reconhecimento. Muitos também enxergam o meio digital como uma oportunidade de monetizar fazendo algo que para si é considerado um tipo de lazer.
Apesar da aparência inofensiva, esse exibicionismo digital pode trazer riscos, que muitas vezes são negligenciados. Esse fenômeno atinge com força principalmente a nova geração, que cresce cercada de telas e com a ideia de que se manter online é uma extensão de suas vidas. Pais e responsáveis enfrentam hoje os desafios de impor limites em um ambiente sem proteções adequadas. Essa realidade evidencia como o comportamento e o emocional da criança precisam ser devidamente respeitados e tratados da maneira correta, e esse é um tema que abre espaço para especialistas salientarem a atenção redobrada dos responsáveis.
Mayara, psicóloga infantil, afirma em entrevista que os impactos emocionais e comportamentais estão presentes na vida de jovens que convivem tanto com as redes sociais e produzem conteúdo. “Considerando a exposição nas redes sociais, temos a comparação, especialmente das meninas. Tem impactos ali de ansiedade, depressão, porque tudo que é exposto na rede social é um mundo perfeito. A gente percebe os sinais quando a criança perde o interesse de brincar ou então ela não sabe mais brincar. Existem os impactos da socialização, e percebe-se que a criança não tem mais interesse no social. Estar com a família ou com outras crianças se torna chato”, explica.

Ao perceber sinais prejudiciais, Mayara afirma sobre como os responsáveis podem agir, até mesmo em casos em que a criança já está acostumada com a exibição no digital. Ela diz que “os pais são os principais responsáveis nesse processo. E, assim, não é porque a vaca já foi pro brejo que não dá pra gente voltar atrás. E eu penso que, independente disso, se é prejudicial pro meu filho, eu tenho que fazer o que for possível pra tirar ele disso aí. Então, trabalhar no preventivo”.
Ela ainda afirma que o cérebro em formação do jovem pode a deixar em uma vulnerabilidade maior e ser mais propícia aos impactos. A idade aproximada do cérebro estar completamente maduro é por volta dos 25 anos, e durante esse período, é desenvolvida a personalidade, os comportamentos e discernimentos.
Para ela, “uma criança, ela não consegue fazer todo esse discernimento. Então se ela enxerga aquilo que estão falando sobre ela, ela acata. Então isso que estão falando sobre mim é o que eu sou. Então se o mundo, se essas pessoas são agressivas, significa que o mundo ao meu redor é perigoso. Então você consegue perceber como o transtorno de ansiedade vai sendo formado? Eu sou fraca e o mundo é ameaçador. Então pronto, instalou um transtorno de ansiedade aí. Eu vou ter medo de qualquer coisa ou qualquer desafio que se coloque na minha frente”.
Outra questão abordada por Mayara é a monetização desses conteúdos. “A partir do momento que aquilo se torna monetizável, se torna um trabalho para criança. E aí você pode falar assim ‘ah, mas é um trabalho que a criança gosta’, mas criança tem que ser criança. A única responsabilidade que ela tem que ter é de estudar. O resto do tempo, ela tem que ter tempo livre pra brincar”.
A Organização das Nações Unidas (ONU) defendeu na Assembleia Geral de 1989 o direito de toda criança a brincar e a divertir-se, cabendo à sociedade e às autoridades públicas garantirem a ela o exercício pleno desse direito. O Brasil promulgou a lei em 1990, reforçando o compromisso que o país tem em garantir os direitos das crianças. No cenário atual, é essencial a manutenção dos direitos fundamentais da população, tendo em vista os novos obstáculos que o digital tem gerado.
A proteção da infância no ambiente digital é um desafio que exige a participação conjunta de pais, responsáveis, instituições e das próprias plataformas digitais. A promulgação do ECA Digital legitima a necessidade de todos atuarem de forma conjunta para promover um uso mais consciente e seguro das redes, garantindo o bem-estar e a dignidade das crianças e adolescentes. Embora a influência do meio digital esteja cada vez mais presente na rotina da população, a colaboração entre sociedade e poder público mostra que é possível avançar na construção de um ambiente virtual mais responsável.
