Como um dos maiores ícones atuais da cultura brasileira se transformou de movimento social em cultura da ostentação

Por Nina Conrado

O funk é um dos gêneros musicais mais escutados no Brasil nos dias atuais e, hoje em dia, é um dos maiores símbolos culturais brasileiros, mas ele nem sempre foi como conhecemos.  Surgiu nos Estados Unidos por volta dos anos 1970, sendo uma mistura de jazz, soul e R&B. Porém, ganhou nova identidade quando chegou ao Brasil e passou por transformações, na década de 1970, aderindo à bateria eletrônica e às letras em português. O ritmo se popularizou no Brasil primeiro nos bailes black da Zona Sul do Rio de Janeiro. Em 1989,  DJ Marlboro, conhecido como o fundador do “funk carioca”, lançou o álbum Funk Brasil, no qual ele retrata o dia a dia das comunidades das favelas, suas dificuldades e lutas diárias. 

Essa obra fortaleceu o funk como forma de expressão de experiências, desejos e desafios dos jovens das periferias e tornou-se forma de resistência social e autoafirmação para os grupos marginalizados socialmente, inovando completamente a indústria musical e emergindo como uma forma de arte produzida pelas favelas e para as favelas.

O funk se consolidou nessa época, mas foi só a partir dos anos 2000 que ele deixou de ser somente da periferia e alcançou boates, baladas, novelas e muito mais, fazendo com que o ritmo chegasse às classes média e alta. Assim, outros nomes surgiram, e com eles, outros hits famosos e que tocam em festas até hoje. Claudinho e Bochecha com “Só Love”, MC Marcinho com “Glamurosa” (2001), Tati Quebra-Barraco com “Boladona” (2004), MC Leozinho com “Ela Só Pensa Em Beijar” (2006) e MC Créu com “Dança do Créu” (2009) são apenas alguns exemplos.

Embora ainda sofra preconceitos, seja alvo de estigmatização e mesmo tendo muitas letras que fazem analogia à sexo e sensualidade, o funk se tornou uma forma de dar voz às pessoas marginalizadas enquanto explora e debate o cotidiano nas favelas e periferias. Isso o concretizou como uma forma de militância popular.  

MC Créu conta que quando começou no funk, “a maior dificuldade de participar do movimento era o grande preconceito de ser marginalizado, ser funkeiro era sinônimo de ser bandido! Você assumir que seu estilo musical era o funk fechava automaticamente muitas portas. Mas hoje muitas dessas portas foram abertas e muitos cadeados foram quebrados. Hoje o funk é sinônimo de riqueza e a dificuldade que os artistas iniciantes encontram é a competição entre eles mesmos.”

MC Créu em sessão de fotos/ Reprodução: Presskit MC Créu

Porém, assim como todo movimento de expressão sócio-cultural que está e esteve em alta há décadas, o funk está sujeito a muitas mudanças e transformações dos artistas, das batidas, dos ritmos, do público consumidor, das letras e até das motivações e intenções por trás das produções. 

Créu fala sobre sua perspectiva, sobre seu processo criativo e sobre a importância que sua música desempenhava para si e para o seu público. “O funk sempre significou uma válvula de escape, gritar para o mundo as dificuldades da periferia, cantar o amor, reivindicar direitos esquecidos através da música e, claro, muita diversão periférica”. 

Entretanto, é visível, ao analisar alguns funks atuais, como a maioria dos funkeiros atuais deixam de lado a motivação social e focam em cantar de um lugar de “ostentação”, fazendo uma música cheia de letras explícitas e com conotações sexuais. 

Letras como “Eu só quero é ser feliz/Andar tranquilamente na favela onde eu nasci/E poder me orgulhar/E ter a consciência que o pobre tem seu lugar” (Rap da Felicidade, Cidinha e Doca) não são mais tão frequentes, e quando são, não fazem tanto sucesso quanto letras como “Enquanto eles lança carro/Nós ronca de helicóptero/Eu te conheci nas alturas e nas alturas eu te soco” (Casei Com a Putaria, MC Ryan SP e MC Paiva).

Essa diferença entre as letras demonstra as transformações pelas quais o funk passou, não só no que diz respeito à parte técnica, mas também em todo o âmbito das motivações, históricos dos artistas e origens do ritmo.

Uma nova cultura foi incorporada ao funk, mas é uma que vai contra o que os funkeiros mais tradicionais pregavam inicialmente. Isso expõe de forma bem clara como o gênero se transformou e deixou de lado seu legado original, tendo um impacto direto nos objetivos primários e mais elementares do movimento.  

Creu explica esse contraste e o critica ao afirmar que os verdadeiros precursores do funk estão perdendo sua voz: “A raiz foi perdida, os funkeiros de hoje vivem com muita grana e vêm de outras realidades, então eles cantam o que vivem e tiram espaço do verdadeiro personagem do ‘preto favelado’ poder também contar sua realidade e exercer seu espaço”. 

Assim, o que um dia foi um gênero musical acessível para todos, uma alternativa viável ao mundo do crime e para jovens periféricos, hoje se destaca como um ritmo de classe alta também. Muitos dos funkeiros mais conhecidos atualmente vieram de realidades bem diferentes das que os funkeiros antigos vieram. 

“O playboy que nasceu e cresceu dentro de um condomínio canta funk. Até aí nenhum problema. Mas a partir do momento que isso começou a tirar as oportunidades dos verdadeiros funkeiros “pretos favelados”, aí começou a me incomodar. Houve um processo de branqueamento no funk: as raízes se perderam quase que totalmente e falar de amor e problemas sociais saiu de moda, e isso é o mais triste!”, conta Créu.

O funkeiro pioneiro aconselha os jovens da nova geração que buscam entrar na cena: “Estudem sobre o movimento, entendam o que ele realmente é, respeitem a hierarquia de quem veio antes e lembrem-se do poder da música. O que você está cantando hoje vai ficar eternizado, então faça algo que daqui a 20 anos você se orgulhe, e não se envergonhe. 

Também defende seu comprometimento com o movimento e sua importância, fazendo um apelo aos artistas atuais, para que fique cada vez mais fácil exercer com orgulho o ritmo do funk: “A gente que veio da antiga encontramos só mato e trabalhamos para limpar o terreno e deixar a estrada asfaltada para a nova geração. Então que ela venha, cuide do asfalto e coloque postes de luz para que as próximas gerações venham e encontrem a estrada do funk cada vez mais iluminada”.  

Acompanhe mais reportagens sobre a cultura do funk:

Deixe um comentário