A presença de mulheres no funk têm sido muito mais expressiva, no entanto, artistas ainda se sentem subjugadas nesse meio
Por Catarina Pereira
Atualmente, cresce cada vez mais a incidência de DJs mulheres que têm ganhado destaque e relevância enorme no cenário do funk, mas nem sempre esse espaço feminino foi tão expressivo ou valorizado. O universo do funk luta para sair de uma posição periférica e de marginalização há tempos as mulheres, em especial mulheres negras, são o grupo que se encontra em maior posição de subjugamento.
A produtora e artista Dj Ray esclarece as dificuldades de uma carreira feminina traçada pelo funk. A artista iniciou sua jornada tocando por diversão, sendo convidada para operar a playlist de forma informal em confraternizações entre amigos. Ray pegou gosto pela atividade e resolveu transformar seu passatempo em sua profissão. Mas sua relação com o funk começa depois. “No início, eu tocava muita música afro-diaspórica, acho que música preta. Eu falava, assim, eu toco música preta, né? Porque, pra mim, faz sentido. Aí, eu tocava muito rap, black”, afirma Ray.
Sua relação com a cultura da música negra expressa muito da intrínseca conexão das raízes do movimento do funk e outros estilos, que surgem em áreas periféricas, por grupos marginalizados, como expressão de resistência e criação de uma cultura própria que fazia sentido identitariamente para aqueles que a produziam.
“Eu era, também, uma consumidora de funk. Antes da pandemia, teve aquela fase tipo do Mandelão, e aí, eu comecei a gostar muito desse funk mais agressivo. Esse gênero que foi surgindo e aí, eu comecei a me mesclar nos meus set, junto com black. Principalmente, rap de mina”. A artista conta que entrou no mundo do funk trazendo a voz feminina, o que caracteriza um diferencial. No entanto, não foi uma característica que foi valorizada por grandes espaços do meio musical.
Rayane conta que enfrentou e enfrenta inúmeros obstáculos na carreira que acredita serem diferentes de um colega de profissão homem. Para ela, existem dificuldades pelo fato de ser uma mulher em um ofício dominado primordialmente pelo gênero masculino. “Eu acho que são vários estigmas que a gente sofre sendo mulher,, essa coisa de você estar numa line e normalmente você ser a cota, tipo vamos colocar uma mulher aqui, porque senão vai ficar muito feio”.
A DJ conta que o preconceito atravessa os espaços do meio musical, e em inúmeras situações seu trabalho não foi levado a sério. Para Rayane, existe uma comparação entre o trabalho de um DJ homem e uma mulher, em que o trabalho masculino tem valor muito maior. Há o estigma que uma DJ não teria a capacidade, por exemplo, de tocar no horário de pico de uma festa, logo é preferível colocar as mulheres na abertura da pista, já que muitos acreditam que “ela não daria conta”. Dj Ray esclarece os motivos de tal atitude, “rola uma coisa de subestimar muito grande, a gente é muito subestimada”.
Por ser um meio que é majoritariamente composto por homens cis, e que tem esses em posições de destaque e poder, a mulher é vista de forma desvalorizada pois não é bem-vinda. Não existe um espaço para elas, e esse tem que ser conquistado continuamente. Essa característica surge da dominação do funk por grupos que têm poder econômico e social ao ver a ascensão e aceitação deste no imaginário popular. Assim, uma cultura pertencente aos grupos minoritários se torna uma forma de lucro para grupos dominantes, excluindo espaços que deveriam seguir sendo de resistência.
Em um cenário assim, as mulheres se tornam ainda mais marginalizadas e excluídas. Vem daí a importância da presença e reafirmação feminina no meio do funk e dos DJs. “Funk é uma cultura negra, então, isso é nosso, isso é meu, eu acho que se tinha alguém que devia tá vivendo disso, conseguindo se estabelecer financeiramente, eu acho que nada mais justo do que ser eu e os meus semelhantes”, afirma Ray.
Além das diferenças simbólicas, ainda há a diferença material. “Mesmo tendo uma experiência eu sei que o meu cachê deve chegar a um terço do que o de homens que às vezes acabaram de entrar no mercado, então, a dificuldade em ter uma equipe, a dificuldade em você conseguir se estruturar, uma dificuldade em você conseguir investir, uma dificuldade de você conseguir continuar acreditando no seu corre”.
No entanto, a perspectiva para a cena feminina tem se tornado cada vez mais positiva. Principalmente através da divulgação nas redes sociais existem mais mulheres que consomem e produzem funk. Rayane reafirma a necessidade de apoiar essas mulheres, não apenas pelo consumo na forma de entretenimento mas de forma política.
“O público também precisa ter essa consciência de que eles deveriam apoiar essas mulheres, e as mulheres também precisam apoiar as mulheres, as mulheres também precisam consumir as mulheres, porque não vai adiantar nada a gente ficar gritando se a gente não mudar as nossas práticas”.
Esse processo no entanto já tem mostrado resultados, dado o fato que antes existiam determinadas profissões que eram muito mais voltadas às mulheres, e atualmente esse leque tem variado mais, como é o caso do funk. Uma mulher também tem direito á esse espaço e deve ocupá-lo. Essa quebra de paradigmas representa a evolução e conquista feminina desses espaços culturais.
Outras DJs femininas que começaram há pouco tempo também sentem o preconceito no meio de trabalho, apesar de muita evolução já trilhada por companheiras de profissão que traçaram caminhos semelhantes. DJ Letts, que iniciou sua carreira há pouco mais de um ano, e já tocou em lugares extremamente reconhecidos como a Submundo 808, relata que passou por situações em que foi subjugada e desrespeitada ao exercer sua profissão. “Já tive lugar que eu toquei e o dono da casa falou que eu nem precisava subir no palco e fazer alguma coisa, só de estar lá e ser bonita, já valia”, afirma a DJ.
Ela também especifica que o meio é difícil de se adentrar sendo uma jovem, “principalmente nessa bolha onde desumaniza a mulher, muitas vezes esses caras não dão valor pras meninas, não dão oportunidade. É difícil achar alguém que vai te estender a mão”.
Letts atua como produtora também e chama atenção para a falta da presença feminina nessa área. “Eu acho que tem poucas minas ainda que produzem, é um ambiente muito masculino, então acaba sendo mais hostil para a gente entrar, do que um homem começar, por exemplo. E sem contar o receio da gente postar o trabalho cair hate pra cima de nós porque a gente é mulher”.
A perspectiva geral positiva foi reafirmada pela artista, que diz perceber mais mulheres interagindo com o meio, o que indica que a perseverança da presença de mulheres no cenário da produção musical e da atuação no funk têm aberto caminhos para que o futuro desse meio seja cada vez mais representativo daqueles que criaram essa cultura.



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