A saúde mental feminina segue como um tabu na sociedade brasileira
Por Emilyn Nagate

Hygieia, deusa grega da saúde, prevenção de doenças, limpeza e sanidade Reprodução: Hygieia, de Peter Paul Rubens
O último censo do IBGE (2022) mostra que 51,48% do país é composto pelo gênero feminino, havendo superioridade no número de mulheres em todas as regiões do país. E mesmo desempenhando papel fundamental na sociedade, essa grande parcela da população segue com sua saúde mental estigmatizada e sofrimento psíquico marginalizado.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), uma em cada cinco mulheres apresenta Transtornos Mentais Comuns (TMC) e a taxa de depressão é, em média, mais do que o dobro da taxa de homens com a mesma patologia, podendo ainda ser mais persistente nas mulheres.
O que causa o adoecimento psíquico em mulheres, especificamente? Analisando a raiz da problemática, percebe-se que ao nascer já há uma predefinição do papel que o indivíduo irá desempenhar na sociedade, de acordo com seu gênero. Quando se trata do gênero feminino, parcela da qual essa reportagem tratará, a realidade tende a impor uma pressão maior para que seu papel seja exercido.
Estereótipos de gênero e desigualdade
Desde a infância, garotas são influenciadas, por seus genitores, a entrarem em contato com brinquedos relacionados a tarefas domésticas e de cuidado, internalizando, com o passar do tempo, a ideia de que seu papel na sociedade é o de ter essas responsabilidades para elas.
Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, as mulheres gastaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens com afazeres domésticos ou cuidados com pessoas. O dado mostra como, atualmente, esta função é recorrentemente desvalorizada e não há o reconhecimento de que é um trabalho essencial para os indivíduos em sociedade. Logo, esse trabalho não remunerado é invisibilizado, mas permanece como uma carga com a qual o gênero feminino tem que lidar.
Outro fator que nasce dos estereótipos de cada gênero é a desigualdade entre eles. A falta de equidade salarial e de reconhecimento nos trabalhos que exerce faz com que a mulher se torne suscetível a desencadear transtornos psicológicos como ansiedade, além de influenciar em fatores como autoestima e insegurança, cenário que pode piorar quando somado ao trabalho em casa.
“Para mim, esta estrutura interessa ao patriarcado. Desde sempre as mulheres foram colocadas nesse lugar de assumir o trabalho não remunerado e desvalorizado, fazendo parecer que fosse uma escolha dela”, explica Debora Bonfim, pedagoga, escritora e psicóloga clínica.

Debora Bonfim, pedagoga, escritora e psicóloga da Casa de Marias Foto: Arquivo pessoal
Dupla jornada
Compreendida agora a raiz da onde as demais causas derivam, surge a sobrecarga, como um dos principais motivos do adoecimento psíquico entre as mulheres. Se elas já têm a responsabilidade de cuidar dos afazeres domésticos, o que acontece quando estas mulheres precisam atuar em um emprego para sustentar sua família?
O relatório “Esgotadas”, da ONG Think Olga, apontou que 45% das mulheres no Brasil têm diagnóstico de ansiedade, depressão ou outro transtorno mental, e apresentam sintomas como estresse, fadiga, baixa autoestima, insônia e tristeza, devido à sobrecarga.
“Há muitas mulheres negras, assistidas pela Casa, que não têm parceiros. São mães solo, mulheres que têm que se virar na correria”, exemplifica Debora. A psicóloga faz parte da Casa de Marias, uma ONG que visa disponibilizar serviço de saúde mental gratuito para mulheres negras, imigrantes, quilombolas, indígenas que vivenciam a vulnerabilidade social, o racismo e o preconceito.

Logotipos da ONG Casa de Marias Foto: Redes Sociais
Há ainda casos onde a mulher tem um parceiro, porém, vê a responsabilidade de exercer a função doméstica mais voltada para ela. Como é o caso de Natasha Rodrigues, atualmente gestante e operadora de teleatendimento. “Eu não cobro tanto dele, porque ele sai de casa seis horas da manhã e fica o dia todo fora.”
Natasha trabalha na escala 6×1 no período das 17h40 às 00h00 e conta, em entrevista ao Contexto, que em um dia descansa e no outro realiza os cuidados com a casa. Ela diz que “é um pouco cansativo. Eu passo o dia fazendo os afazeres de casa, cuidando da família, depois a noite eu venho já cansada para cá”.
Alexya, monitora de qualidade e nutricionista, explica como essa sobrecarga é normalizada atualmente. “A minha criação, como a de muitas mulheres, fez com que a gente pensasse que precisamos dar conta de tudo, não pode ser fraca no serviço, por exemplo. Hoje em dia, se uma mulher vê outra chorando, falam que ela é fraca, mas não, ela só está muito sobrecarregada”.
A nutricionista de 26 anos, não tem filhos e divide as tarefas domésticas com seu pai. Ela relata ter disponibilidade para dedicar tempo para si mesma, porém ainda conta com períodos onde se sobrecarrega com sua vida profissional. Alexya explica que se essa sobrecarga no trabalho fosse somada à responsabilidade de cuidar de filhos e de sua casa sozinha, estaria com sua condição mental prejudicada. “Tem dias que eu quero chegar em casa e só ter um pouco de silêncio. Eu penso que se tivesse uma criança em casa, isso seria muito mais difícil”.

Alexya, pós-graduada em nutrição clínica e analista de qualidade da Concilig Foto: Arquivo pessoal
Violência, misoginia e traumas
Outro vetor que impacta profundamente o psicológico de mulheres são os tipos de violência que elas estão sujeitas durante sua vida. O novo boletim Elas Vivem: Liberdade de Ser e Viver, da Rede de Observatórios da Segurança, mostra que a cada 24 horas, ao menos oito mulheres são vítimas de violência.
Pesquisadores que participaram da 336ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde (CNS) indicam que depressão, ansiedade, transtorno do sono, transtorno de estresse pós-traumático, ideação suicida e distúrbios mentais podem estar diretamente relacionados com relações abusivas e violentas contra as mulheres.
“Uma coisa que me chama muita atenção nos atendimentos de mulheres negras adultas é que a maioria delas já passou por uma experiência de abuso sexual na infância ou na adolescência”. Débora expõe que essas experiências fazem com que a mulher esteja mais sujeita a desenvolver distúrbios psicológicos.
Banalização do sofrimento mental feminino
Um dos primeiros elementos que fazem o contato entre a mulher e o sofrimento psíquico é o fator biológico. As mulheres passam por experiências, como a gravidez, TPM e menopausa – das quais os homens não experimentam – que podem desencadear transtornos psicológicos, por serem quadros diretamente associados à alteração hormonal. O transtorno disfórico pré-menstrual, por exemplo, que ocorre antes da ovulação, entra nesta categoria e atinge 5% das mulheres, gerando sintomas depressivos severos.
Lisa Appignanesi, diretora do Freud Museum, diz em seu livro “Tristes, Loucas e Más” que até o século 20, as mulheres eram consideradas mais próximas do emocional, do irracional e “foram mais tolhidas, obrigadas a agir de forma socialmente mais aceitável.”
Devido a essas alterações hormonais e à opinião machista, a maioria das mulheres está destinada a ouvir que sua situação psíquica ou sintomas depressivos são apenas passageiros e que ela deve aprender a lidar com eles, minimizando as situações pelas quais esse público passa. Consequentemente, essa inviabilização normaliza o sofrimento psíquico e os sentimentos dessas mulheres, como algo que se espera do comportamento feminino.
A (não) busca pelo tratamento: preconceito
A normalização do sofrimento psíquico da mulher, faz com que ela nao veja a necessidade de procurar ajuda psicológica. “A gente acaba enfrentando o estereótipo da mulher preta sempre forte, que dá conta de tudo, aquela que sempre ajuda, mas nunca é ajudada”, explica Débora.
Natasha diz que não faz terapia atualmente nem procura ajuda psicológica, porque nunca teve interesse. “Eu já tive depressão com 12 anos de idade, mas com o passar dos anos essa fase passou. Ansiedade e outros problemas sempre vão estar no nosso corpo, mas quem não tem hoje em dia?”. Ela diz que com a gravidez passa por alguns episódios de estresse que não consegue controlar e sentimentos de medo mais fortes por não ser uma gestação planejada, porém conta com o apoio de seu parceiro e colegas do trabalho para lidar com essas emoções.

Natasha Rodrigues reunida com sua família em uma comemoração Foto: Arquivo pessoal
“Ninguém pensa em procurar um CAPS por conta de uma crise de ansiedade. O pessoal pensa ‘vou procurar ajuda só se for um louco ou se estiver surtando’, sempre com esse olhar mais negativo”, expõe Alexya. Ela continua dizendo que quando começou em suas sessões de terapia vivenciou esses comentários preconceituosos pela sua família.
Vulnerabilidade financeira
Entre os principais desafios que mulheres enfrentam para cuidar de sua saúde psicológica está a vulnerabilidade social. Em regiões periféricas, a maioria das mulheres não dispõe de uma condição financeira para ir até uma clínica e passar por um atendimento particular.
Quando não há serviços de tratamento mental gratuitos e de qualidade, ou a má divulgação destes serviços, essas mulheres financeiramente vulneráveis permanecem com sua saúde psicológica precarizadas. Os indicadores mais otimistas da OMS revelam que entre 75% e 85% das pessoas portadoras de transtornos mentais não têm acesso a assistência de qualidade no País.
“A psicoterapia ainda é uma ciência muito elitizada e muitas mulheres aqui no município não têm acesso a ela”. Débora continua explicando que, além de seu trabalho na ONG, seu objetivo também é acessibilizar a terapia para mulheres no Rio de Janeiro, região onde mora.

Equipe do grupo Casa de Marias Foto: Arquivo pessoal
Natasha conta que, mesmo não procurando serviços de saúde mental, recebeu relatos de outras pessoas que já tentaram o acesso ao serviço gratuito em Bauru. “De serviços gratuitos, eu sei que existe o CAPS. Só que as pessoas tem que correr atrás até ser chamada e conseguir passar por lá”.
Débora ainda explica que a ONG disponibiliza atendimentos de forma remota, justamente pensando na questão financeira das pacientes: “Nem todo mundo tem grana para poder comparecer presencialmente, então o atendimento remoto é uma forma que a gente vê de acessibilizar o tratamento”.
Escassez de tempo
Devido à sobrecarga com a dupla jornada, muitas mulheres não disponibilizam tempo para cuidar de si mesmas, inclusive de sua saúde mental. “No início, quando eu comecei, a questão era o tempo, mas hoje ficou um pouco mais fácil continuar”, explica Alexya sobre as dificuldades que enfrentou quando começou a realizar suas sessões de terapia.
“Nós mulheres, infelizmente, não fomos ensinadas a nos priorizar. Então para uma mulher conseguir manter seu tratamento e seu horário fixo de sessão é muito difícil. Qualquer coisa tira ela do foco. Precisou levar a criança ao médico? Ela larga a terapia e vai levar”. A psicóloga continua dizendo que “muitas pessoas ainda têm muito preconceito em procurar ajuda psicoterapeutica, acham que não tem depressão e que não precisam se tratar, pois depressão é para quem está com tempo”.
Essas mulheres que utilizam de todo seu tempo com a profissão que exercem e com as responsabilidades domésticas, não possuem disponibilidade para realizar hábitos saudáveis, como a prática de atividade física, o sono reparador e a alimentação balanceada.
“Eu deixo de fazer muita coisa porque estou cansada.”, conta Vanessa Lima dos Anjos, mãe de 3 filhos e operadora de teleatendimento, assim como Natasha. Ela explica que na parte da manhã cuida dos serviços de casa e de seus filhos, à tarde vai para o trabalho e que atualmente seu tempo livre é à noite, depois das 21h, quando encerra seu expediente de trabalho.

Vanessa com sua filha e marido Foto: Arquivo pessoal
O que fazer?
Tanto a mulher em si, quanto a sociedade, são responsáveis por realizar esforços para que o sofrimento psicológico desta parcela da populção seja reconhecido e viabilizado. “É necessário que haja um trabalho de conscientização sobre a importância desse cuidado à saúde mental feminina”, afirma Débora.
Cíntia Aleixo, psicóloga especializada em saúde mental feminina, diz em estudo que “a mulher primeiro precisa partir para o conhecimento sobre como ela tem vivenciado os seus dias, refletir sobre o que tem sido exaustivo emocionalmente para ela, e conversar, ter conversas maduras com as pessoas que vive, para poder reduzir essa carga, dividir o trabalho”.
César Augusto Trinta Weber, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP, aponta em sua pesquisa que “a ciência precisa aprimorar o modelo de atenção em saúde mental de modo a torná-lo mais acessível, eficaz, resolutivo e humanizado.”, César lista algumas dessas ações, como por exemplo, a expansão e qualificação da Rede de Atendimento Psicossocial, dos Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Outras Drogas do Tipo IV, de hospitais psiquiátricos, hospitais-dia, comunidades terapêuticas, entre outros.
“Infelizmente, muitas mulheres acabam reforçando essa ideia machista que somos nós que criamos os homens. Quando têm uma filha e um filho, a mãe delega que a função da menina é realizar os afazeres domésticos, enquanto o menino pode ir brincar”, Débora explica que a conscientização deve começar desde cedo, em casa, onde a mãe deve fazer com que o menino também tenha responsabilidades domésticas e de cuidado.
Para finalizar, Débora diz que “essas mulheres precisam entender que elas são as pessoas mais importantes da vida delas, que elas precisam cuidar de sua saúde mental, pois é a partir delas que tudo começa”. Ela continua frisando que a vida dessas mulheres não depende de seu parceiro romântico e que elas devem amar a si mesmas acima de tudo, investir em sua carreira e “buscar seu desenvolvimento pessoal, como tocar instrumentos ou focar em sua carreira profissional, para agregar valor em sua existência”.

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