Longe dos holofotes das capitais, drag queens do interior do Brasil enfrentam o preconceito com arte e resistência — e mostram que representatividade importa em todas as esquinas do país
Por Gustavo Rodrigues e Bruna Santini
Num palco improvisado no fundo de um bar ou nas ruas de paralelepípedos onde o conservadorismo ainda respira forte, o salto alto, a peruca, a maquiagem vibrante e a coragem brilham mais do que o preconceito. A arte drag queen, frequentemente vista nos grandes centros urbanos, vem ascendendo de forma resiliente no interior do Brasil, rompendo barreiras sociais, culturais e familiares.
Entre saltos altos, e maquiagens pesadas e roupas feitas à mão, o interior do Brasil revela suas próprias rainhas. E para quem ainda sonha com os primeiros passos no mundo drag, Kyara Arayk resume em poucas palavras o que talvez seja a essência dessa arte:
Mady Beeong, artista drag queen, encontrou uma forma de se expressar por meio da arte após vivenciar uma juventude de restrição. “Sempre fui muito reprimido pela minha família. Já até fui obrigado a entrar em um colégio militar, rasparam minha cabeça. Mas eu sempre soube que eu tinha essa veia artística e queria trabalhar com isso. Foi quando eu consegui minha liberdade.Tudo que eu reprimi… aflorou”, contou ela.
Natural de Guarapari, Espírito Santo, Mady reflete sobre a escassez de manifestações culturais da comunidade LGBTQIAPN+ nas cidades menores. “No interior, as pessoas muitas vezes têm menos acesso à cultura, claro que na televisão há essa representatividade, mas quando falamos das capitais, é muito mais fácil você sair na rua e encontrar um evento ou uma manifestação da comunidade LGBTQIAPN+ ou da comunidade artística no geral. Eu sou de Guarapari, Espírito Santo, e é bizarro: eles veem uma drag e perguntam ‘você é travesti?’, porque é o repertório deles, no interior as pessoas estão mais carentes de cultura”, disse.
João Vitor Grassi, criado na cidade de Tupã, interior de São Paulo, sempre gostou de arte e maquiagem. No fim do ensino médio, decidiu cursar artes cênicas e se mudou para Bauru . Foi aqui que conheceu e se encantou pela arte drag queen. “Sempre gostei muito de arte, de maquiagem, e acabei me apaixonando também pela atuação. Comecei a frequentar boates LGBT, já que na minha cidade não tinha. Foi quando conheci o grupo ‘Sou Drag’, e a Maya Papillons me convidou para participar da primeira oficina de drags de Bauru. Foi onde comecei a me montar, e onde nasceu Kyara Arayk.”
Na pele de Kyara Arayk, João Vitor expressa a dificuldade em encontrar espaços para se apresentar na cidade, como artista drag LGBT. “Nas cidades do interior é sim mais difícil. Acaba não tendo tantos eventos para a gente. Hoje, em Bauru, só tem uma boate LGBT, a Loppen, e nem sempre tem drag queens se apresentando. Então, muitas vezes, a gente se inspira nas artistas das capitais”, disse.

inspirada nas pinturas de Van Gogh. Foto do arquivo
pessoal de Mady Beeong.
A Arte e a Moda Drag
A arte drag queen é muito mais do que apenas “se vestir de mulher”. É sobre afirmar identidade em um espaço que muitas vezes tenta apagá-la. Vai além da performance estética: é um movimento que questiona e subverte normas de gênero rígidas, desafiando uma sociedade que frequentemente tenta silenciar e invisibilizar corpos dissidentes. Para essas artistas, subir em um salto alto é um ato político. Cada camada de maquiagem, cada peça de roupa, é um grito de resistência que atravessa gerações.
Nova York, anos 1970. Um novo movimento ganhava força: os ballrooms, festas que reuniam Drag Queens e outros membros da comunidade LGBTQIA + em competições de dança, performances e looks. As disputas ocorriam entre membros de diferentes “casas”, muitas vezes batizadas com nomes de grifes famosas, como “House of Balenciaga” e “House of Chanel”, evidenciando desde cedo a forte conexão entre a moda e a cena drag.
Porém, somente nos anos 90 esses laços se estreitaram. Thierry Mugler levou a drag Lypsinka para a passarela; Jean Paul Gaultier lançou uma coleção com saias para homens; Marc Jacobs desfilou com todas as modelos maquiadas como drags. Nessa mesma época, surgiu também um nome que se tornaria icônico para a comunidade: RuPaul.
Os anos 2000 foram essenciais para a inserção da moda drag ao grande público. Nesse período, RuPaul lançou seu reality show, no qual artistas drag competem em provas que desafiam sua criatividade, performance e estilo. Paralelamente, grandes nomes da indústria musical, como Madonna e Lady Gaga, passaram a incorporar elementos da estética drag em seus figurinos e apresentações, ampliando ainda mais a visibilidade e a influência dessa cultura no cenário pop global.

início dos anos 1990. Foto por Chantal
Regnault, da série “Voguing and the House
Ballroom Scene of New York City 1989-92”.
A arte possui um poder transformador: é capaz de provocar reflexões, questionar normas estabelecidas e dar voz a grupos marginalizados. Manifestações artísticas como aquelas protagonizadas por drag queen têm o potencial de sensibilizar indivíduos, abrir debates e inspirar ações. “Mudar a sociedade é muito difícil, eu presencio muitas coisas ruins ainda, mas eu acho que a arte drag pode sim cumprir um papel de mudança social com o apoio das comunidades artística e LGBT”, explicou Mady.
Kyara destacou as dificuldades de reconhecimento da arte drag e reforçou a importância da informação para mudar esse cenário. “A arte drag queen é incrível, quanto mais você estuda mais você gosta e quando as pessoas entendem o que é essa arte, a visão delas muda. Por exemplo, quando a minha mãe descobriu que eu me montava foi o fim do mundo para ela, ela achou que eu estava fazendo programa, que eu era travesti. Então é muito importante as pessoas saberem o que é e saberem que drag queen é uma arte e que qualquer pessoa pode fazer. E eu acredito que a arte drag abre muitas portas para a comunidade LGBT.”
Quando se fala em mudança social, é impossível ignorar as vivências e sentimentos individuais. A representatividade é essencial para que as pessoas se reconheçam e se sintam pertencentes. “Eu acredito muito na questão da representatividade e como muitas crianças olham para uma drag e ficam maravilhadas e se identificam, eu falo isso por experiência própria, quando eu era criança e via a Lady Gaga toda montada e completamente diferente de tudo que eu já tinha visto — apesar de não ser, de fato, uma drag queen — e isso desperta sentimentos em você”, explicou Mady.
A arte drag queen é marcada pela diversidade e pela expressão individual. Cada artista constroi sua identidade , com estilos e narrativas.
As duas entrevistadas compartilham de onde vêm suas inspirações para “se montar”. Kyara conta que prefere algo mais transformista, com inspiração em “beleza de miss”. Peruca loira longa e salto são indispensáveis, mas o que traz vida a Kyara são as lentes de contato.
Mady se vê como uma “figura mágica”. Gosta de transmitir uma atmosfera “fofa e etérea”. Inspira-se na natureza, nos animais, em jogos e cantoras. O rosa é sua marca registrada.
Como dona de um atelier, o Mady Atelier, ela vive da moda. Conta que no início da trajetória como drag tudo foi difícil, “Eu não tinha verba para nada, praticamente. Então era tudo no brechó, eu rodava todos, garimpando o máximo que eu podia, encontrando alguma roupa que tivesse um tecido legal que eu pudesse reutilizar”, disse Mady.
Reutilizar é algo que Kyara Arayk adora fazer. A drag relata que, devido ao valor alto dos acessórios para confeccionar as roupas, sempre buscou alternativas, como a reciclagem de materiais que seriam jogados fora. “Já ganhei concurso de melhor look reciclável. Era pandemia, fiz um look inteiro de jornal. Eu sempre amei essa parte de reconstruir”, explana Kyara.
Em sua marca, Mady Beeong usa materiais pouco convencionais, como o couro sintético, vinil e plásticos. Embora esses itens normalmente estejam associados ao universo fetichista, ela busca desfazer essa associação, explorando babados e formas irregulares. “Eu trago muito essa mensagem de liberdade criativa, de que a gente pode fazer o que quiser com o material que quiser, sem essas amarras que as pessoas têm”, explica.
A drag compartilha um momento de virada em sua carreira, quando criou um look inspirado no quadro “Noite Estrelada”, de Vincent Van Gogh, e na capa do álbum “Melodrama”, da cantora Lorde. “Foi um divisor de águas, o primeiro look que eu pintei à mão. Eu nunca tinha feito algo parecido e eu falei: cara, é aqui que eu vou me entender como artista, me jogar e fazer isto acontecer.”, relata Mady.
Para Kyara e Mady, a montagem como drag vai muito além da aparência: é um ritual de expressão e libertação. “É uma questão de poder, me sinto poderosa. Parece que baixa uma coisa na gente, começo a me soltar e me sentir completa”, revela Kyara.
“É o momento que consigo externar tudo que está na minha cabeça, me sinto completa. É uma extensão da minha personalidade. Quando eu me monto, eu intensifico tudo”, disse Mady.
Coletivo Vera
Segundo levantamento do coletivo nacional Drag Brasil, o número de drags em cidades pequenas cresceu mais de 70% nos últimos cinco anos, impulsionado por redes sociais e editais culturais.
Os palcos de Bauru refletem essa tendência, embora a comunidade LGBTQIAPN+ ainda enfrente muitos desafios. Na cidade, o Coletivo Vera, formado por pessoas da sigla, busca fortalecer a representatividade, promover o respeito às identidades e combater o preconceito por meio de eventos e ações voltadas à população local.

Na prática, o coletivo arrecada recursos por meio de eventos e rifas para ajudar cidadãos em situação de vulnerabilidade, como crianças carentes e indivíduos atendidos pelo grupo de acolhimento para pessoas trans e travestis de Bauru. Também organiza desfiles, concursos de miss e mister, além da oficina de drags da cidade — uma parceria com o Senac iniciada pela drag queen Maya Papillons. A oficina ensina a arte drag e a montagem de personagens a qualquer pessoa interessada. O encerramento é marcado por um batismo: um desfile em evento aberto ao público.
Desde 2023, a Secretaria de Cultura de Bauru lança um edital com cachê de 4 mil reais para artistas drags se apresentarem na Parada LGBTQIA+. Ainda assim, a burocracia e o preconceito persistem. “Queríamos fazer o concurso de miss no teatro, mas criaram uma lei que diz que não pode fazer concurso de beleza no teatro municipal, sendo que toda cidade pode”, disse Kyara , que também é organizadora do coletivo.
A comunidade pode participar do Coletivo Vera de forma voluntária e ajudar na divulgação e apoio a pessoas em situação de vulnerabilidade. “Só o fato de termos conseguido montar um coletivo para a gente já é uma conquista enorme”, declarou a drag.

