A própria aparência é um fardo pesado sobre os ombros das mulheres; compreenda e se identifique
Por Isabela Marquesi
Vênus, deusa romana do amor, beleza e sexualidade Reprodução: O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli
A pressão estética atinge todas as mulheres, impactando de variadas formas os diferentes recortes sociais que englobam a feminilidade.
De acordo com Patrícia Marcelino, coordenadora de projetos do Instituto Cactus – entidade de direitos humanos que atua na ampliação do debate acerca da promoção de saúde mental e prevenção de doenças no país –, autoimagem é “a percepção subjetiva que o indivíduo constrói de si mesmo”. Patrícia explica que trata-se de um conceito multidimensional, abrangendo a percepção sobre não apenas a aparência física, mas também a imagem social, intelectual e interpessoal.
A autoimagem, segundo a coordenadora, é um elemento mutável e pode ser ressignificada ao longo da vida do indivíduo: “[a autoimagem] é constantemente moldada por fatores como nosso estado de humor, as vivências acumuladas, nossas crenças pessoais, o conteúdo que consumimos e as relações que experienciamos”. Isso implica, entretanto, que a autopercepção encontra-se muitas vezes subordinada ao rigor das expectativas e padrões impostos externamente pela sociedade.
Patrícia pontua que a cobrança estética atinge homens e mulheres em diferentes níveis: “para os homens, a cobrança estética tende a ser mais recente e pontual. Para as mulheres, é estrutural e diária”. Ela denuncia uma imposição enraizada em padrões de gênero históricos, que transformam a aparência feminina em um atributo de valor social: “algo que influencia oportunidades profissionais, relações afetivas e até a forma como são ouvidas e respeitadas”.
As expectativas impostas sobre as mulheres são produto de processos coletivos, culturais e históricos ligados aos padrões de cada sociedade. Desde muito cedo, são submetidas a normas sociais que regram a maneira com que devem se vestir e como devem se comportar. A especialista pontua corpos magros, rostos harmonizados e pele uniforme como ideais: “são padrões que ignoram a diversidade fenotípica, o processo de envelhecimento, condições de saúde, entre outros elementos”, sustenta. “Essa pressão se manifesta por meio de comentários sutis, da necessidade de pertencimento a grupos sociais ou dos padrões irrealistas propostos na mídia e nas redes sociais”.
Patrícia ainda destaca que as redes sociais desempenham papel pertinente na manutenção de normas de beleza, incentivando não apenas a busca por padrões inalcançáveis, como também induzindo o consumo de produtos e serviços estéticos.
Em uma sondagem realizada pelo Jornal Contexto com 50 mulheres acima de 13 anos, foi possível identificar quais tipos de insegurança a respeito de suas próprias aparências são mais comuns.
Os aspectos físicos mais criticados foram acne, estrutura corporal (como costas e ombros largos e cintura grossa), magreza, gordura localizada (nos braços e pernas, barriga, coxas e “papada”), cabelo, formato do rosto e nariz, sorriso e seios e glúteos pequenos.
“São poucas as partes do meu corpo com as quais sinto uma leve satisfação, não me sinto segura sobre minha aparência em um sentido geral. Sempre acho que há alguém mais bonita ou com qualidades melhores que a minha”
Respondente da sondagem
Também foram apontados atributos como celulite e estrias, cicatrizes e manchas, altura, pelos, sobrancelhas, tamanho das orelhas e marcas de envelhecimento. Inseguranças associadas ao peso e à barriga foram comentadas em 58% das respostas.
“Eu sinto que pra ser feliz eu devo ser magra primeiro”
Respondente da sondagem
Patrícia informa que o enfoque racial aprofunda uma desigualdade à medida que a imposição de padrões de beleza historicamente desvaloriza traços, corpos e cabelo de mulheres negras e pardas. Uma das fontes anônimas do levantamento de dados informou que “desde sempre sofri bullying com meu peso e meu cabelo. Apelidos como ‘cabelo de bombril’ e ‘vareta’ me afetaram bastante”.
Na comunidade transexual, a busca por uma aparência que sacie os padrões estéticos é marcada pela exigência de uma feminilidade atribuída a mulheres cisgênero (que se identificam com o sexo atribuído a elas no nascimento): “sou uma mulher trans, então acredito que todas aquelas características comumente associadas ao masculino [são inseguranças]. Não ter peito é uma delas que me afeta bastante, ‘não parecer cis’ também é outra”, lamenta uma respondente que permaneceu anônima.
De acordo com a coleta de dados, essas inseguranças foram desenvolvidas pelas respondentes em grande parte de maneira externa, a partir de comentários de colegas e familiares. A comparação com outras pessoas compôs 50% das respostas, e 24% mencionam as aparências nas redes sociais como objetos de comparação. Essas inseguranças também foram, em alguns casos, resultados de bullying durante a infância e de disforia de gênero (desconforto provocado por características físicas e sexuais, associado a pessoas transexuais).
O Índice Contínuo de Avaliação de Saúde Mental (ICASM) avalia a autopercepção segundo a soma dos níveis de confiança, vitalidade e foco, variando de zero a 1000. O sumário referente ao primeiro semestre de 2024 indica uma grande discrepância do ICASM entre os respondentes satisfeitos com a própria aparência durante as duas últimas semanas antecedentes à pesquisa e os respondentes insatisfeitos durante o mesmo período de tempo.
Enquanto os respondentes satisfeitos apresentaram ICASM de 807, aqueles que relataram sentir-se insatisfeitos entre uma e duas vezes possuem ICASM de 654, e aqueles que sentiram-se insatisfeitos mais de três vezes possuem ICASM de 414.
Relação ICASM e autopercepção Fonte: Sumário Executivo de 2024 do Panorama da Saúde Mental
No quesito da influência das redes sociais na saúde mental dos avaliados durante os últimos 15 dias, os respondentes que relataram um impacto muito negativo apresentaram ICASM de 475. Quanto às pessoas que alegam usar o Instagram todo dia, a faixa etária entre 16 e 24 obteve o menor ICASM: 542 pontos.
Relação ICASM e faixa etária em pessoas que utilizam redes sociais diariamente Fonte: Sumário Executivo de 2024 do Panorama da Saúde Mental
“Esses resultados indicam que a exposição contínua a padrões idealizados nas redes sociais pode ser associada à piora da autoimagem e à redução do bem-estar. A comparação constante e a dificuldade de se desconectar intensificam a ansiedade, a autocrítica e a sensação de inadequação”, aponta Patrícia.
A busca pela saciedade
Patrícia reconhece que, por mais que existam mulheres que se encaixem nos padrões de beleza, essas expectativas têm tornado-se cada vez menos tangíveis através de vias acessíveis e naturais, sendo muitas vezes alcançadas por meio de procedimentos invasivos e exigindo investimento considerável da renda dos indivíduos.
As cirurgias plásticas configuram recurso muito utilizado para se obter satisfação com a autoimagem. Segundo a Pesquisa Global da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), foram realizadas cerca de 38 milhões de cirurgias estéticas no ano de 2024, constando aumento de 40% no número de procedimentos cirúrgicos e não cirúrgicos em comparação a 2020.
A cirurgia estética mais realizada foi a de pálpebra, seguida da lipoaspiração, mamoplastia de aumento, correção de cicatrizes e rinoplastia, e os procedimentos não cirúrgicos mais realizados foram aplicação de botox, preenchimento com ácido hialurônico, remoção de pelos, firmamento de pele não cirúrgico e peeling dermal químico. A lipoaspiração representou o procedimento cirúrgico mais comum entre as mulheres.
De acordo com o levantamento realizado pelo Jornal Contexto, 70% das respondentes afirmam interesse em realizar procedimentos estéticos, sendo os mais desejados lipoaspiração, procedimentos nos seios e rinoplastia. Também destacaram-se botox, preenchimento labial, drenagem de gordura localizada e depilação a laser.
Narciso, personagem da mitologia grega que definhou até a morte admirando o próprio reflexo Fonte: Narciso, de Caravaggio
O equilíbrio e a aceitação
Diante dessa situação, surge o questionamento: qual o limite entre o autocuidado saudável e a cobrança excessiva?
Patrícia conta que a diferença reside na motivação: “o autocuidado parte do desejo genuíno de se sentir bem e preservar a saúde física e mental, enquanto a cobrança vem da necessidade de atender expectativas externas. Quando o cuidado com a aparência começa a gerar sofrimento, culpa ou endividamento, é sinal de que ele ultrapassou o limite saudável”.
A fim de se estabelecer uma relação saudável com a própria aparência, a especialista aconselha “reconhecer que beleza não é um padrão fixo, mas uma experiência plural e subjetiva”. Ela destaca a necessidade de fortalecer um senso crítico a respeito do que é exposto pelas redes sociais, promover ambientes de acolhimento, aperfeiçoar a educação emocional e desenvolver práticas de autocompaixão e aceitação corporal: “cuidar de si deve ser um ato de liberdade, não de obrigação”.
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