O método que revolucionou a saúde feminina ainda levanta questões sobre seus efeitos e seu papel social
Por Helena Pompeu
Um comprimido minúsculo, tomado quase sem pensar, carrega uma das decisões mais profundas da vida de uma mulher: a escolha de ser ou não ser mãe. Desde que chegou às farmácias, o anticoncepcional mudou não apenas o corpo, mas também a vida de milhões de pessoas. Entretanto, também é alvo de dúvidas sobre os efeitos colaterais e debates que atravessam gerações e perduram até hoje.
Ao longo da história, o controle sobre a fertilidade tem sido uma luta constante das mulheres em todo o mundo. Há registros, ainda no Egito Antigo, de estratégias utilizadas na tentativa de prevenção à gravidez, como tampões e pessários vaginais. Mulheres gregas utilizavam diversas plantas para preveni-la, enquanto as chinesas ingeriam mercúrio com o intuito de diminuir a fertilidade, o que frequentemente resultava em mortes.
Séculos depois, a busca por métodos seguros ganhou força com os avanços da ciência. O biólogo estadunidense Gregory Pincus, influenciado pelos estudos de duas ativistas do controle de natalidade, Margaret Sanger e Katharine McCormick, mostrou em pesquisas que a progesterona é um hormônio inibidor da ovulação. Com os resultados, então, foi aprovada pela FDA, a agência regulatória de medicamentos dos Estados Unidos, em 1960, a Enovid, primeira pílula contraceptiva em circulação.

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Contexto brasileiro
No Brasil, a Enovid começou a ser comercializada em 1962. Na América Latina como um todo, a utilização desse método foi bastante incentivada por organizações internacionais de controle de natalidade, já que naquela época o Brasil era visto como um local de “explosão demográfica”.
Em razão da facilidade de sua utilização, alinhada ao sentimento de empoderamento e liberdade das mulheres, a pílula hormonal se difundiu aceleradamente ao decorrer da década. Quase dez anos depois, em 1970, mais de 6,5 milhões de cartelas do remédio já tinham sido vendidas, com esse número ultrapassando os 40 milhões em 1980.
Em dados divulgados pela PNDS (Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde) de 2006, estimava-se que cerca de 30% das mulheres, com ou sem união estável, utilizavam métodos hormonais combinados, sendo a pílula (66%) a preferida das usuárias. Métodos para a contracepção são ofertados gratuitamente pelo SUS, e o anticoncepcional oral combinado é um dos principais procurados. Em 2024, o Sistema Único de Saúde distribuiu mais de 22 milhões de contraceptivos.

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos em 2023, 58% das mulheres brasileiras utilizam algum método contraceptivo, sendo destes, a pílula a mais popular no país (cerca de 33%), seguido do preservativo (14%), e injeções (11%), respectivamente. O levantamento também apontou que apenas 13% das mulheres tinham controle do seu planejamento reprodutivo, revelando que a falta de conhecimento é o principal fator para a não utilização de métodos de contracepção.
De acordo com dados do Relatório de População da ONU, publicado em 2022, no Brasil, aproximadamente 56% dos nascimentos não são planejados, reflexo direto da desinformação e do pouco acesso a orientações sobre formas de prevenção. Ainda assim, para muitas mulheres, o anticoncepcional segue sendo um aliado essencial, capaz de proporcionar segurança, autonomia e controle do próprio corpo.
Além da contracepção
Para Bianca Belentani, de 18 anos, a pílula anticoncepcional representa uma mudança significativa em sua rotina. A estudante de pedagogia iniciou o uso há 3 anos, ainda no ensino médio, a princípio como alternativa para o tratamento da acne. “Minha dermatologista já tinha comentado que o uso de anticoncepcional poderia me ajudar no tratamento contra acne, então também passei por um ginecologista para ele indicar qual pílula seria a mais adequada para meu caso”, explica.
O uso de anticoncepcionais no tratamento de acne é reconhecido como um dos mais eficazes por dermatologistas e ginecologistas. Desde a década de 1990, alguns tipos de pílula passaram a ser indicados com dupla função: prevenir a gravidez e tratar desequilíbrios hormonais que afetam a pele.
Apesar dos tabus que a cercam, a pílula é um dos fármacos essenciais para a saúde feminina. Além do papel de contracepção e de tratar a acne, o método também é utilizado para regular o ciclo menstrual, reduzir cólicas e fluxos intensos, e muito importante para melhorar condições de endometriose e a síndrome do ovário policístico (SOP).

Belentani relata melhora significativa da acne após o início do uso do Selene. Foto: Arquivo pessoal
Mesmo com receio de sofrer com algum dos efeitos colaterais mais comuns, como alterações de humor, diminuição da libido, aumento de peso, sangramentos irregulares e náuseas, por exemplo, Bianca decidiu iniciar o tratamento. A estudante relata que percebeu apenas pequenas mudanças físicas. “Eu sinto que fiquei mais inchada, mas em geral só tive resultados positivos, ajudou bastante no controle do meu surto de acne e diminuiu minhas cólicas e o fluxo menstrual”, conta.
Os resultados animadores foram decisivos para que ela optasse por continuar com o uso, mesmo ciente de que podem surgir consequências a longo prazo. Por utilizar outras medicações, Belentani afirma não ter notado alterações emocionais relacionadas ao anticoncepcional, o que evidencia que as experiências com o medicamento variam de pessoa para pessoa.
Entre o controle e o medo
Enquanto algumas mulheres veem no anticoncepcional um símbolo de autonomia, outras encontram nele um ponto de ruptura. Isabelli Voskelis, de 20 anos, faz parte desse segundo grupo: após seis anos de uso, percebeu que o método já não fazia sentido para sua rotina e para o modo como desejava se relacionar com o próprio corpo. Com orientação médica, decidiu interromper o uso da pílula e migrar para um método menos invasivo, o DIU.
“Comecei a tomar com 14 anos, após orientação médica. Escolhi a pílula porque era o método mais conhecido. Conhecia outras opções, mas optei pelo mais tradicional”, conta. Nos primeiros meses, Isabelli notou algumas mudanças positivas: a acne melhorou e, como fazia uso contínuo, parou de menstruar. “Mas eu também sentia mais irritabilidade”, lembra a estudante de design.
Com o tempo, porém, os efeitos indesejados começaram a pesar mais que os positivos. “A minha libido foi o que mais mudou. Eu não tinha mais vontade, e a lubrificação era praticamente zero”, afirma Voskelis. Foi esse incômodo, aliado ao medo das consequências a longo prazo, como risco de trombose e desequilíbrios hormonais, que a levou a buscar uma alternativa que ainda a prevenisse, mas com menos efeitos em sua saúde.
A transição, segundo ela, foi tranquila e acompanhada de perto por sua médica. “Coloquei o DIU com anestesia geral e sedação, e foi tudo bem fácil. As espinhas voltaram, mas a sensação de não ter uma obrigação diária é ótima”. Hoje, mesmo após duas rejeições do dispositivo pelo útero, Isabelli Voskelis não pretende trocar de método. “Para mim, compensa muito mais colocar outro DIU do que voltar ao anticoncepcional”, revela.

Isabelli Voskelis, 20 anos. Foto: Arquivo Pessoal
Sua escolha reflete uma mudança de percepção que tem se tornado comum entre mulheres de todas as idades. Segundo pesquisa realizada em 2021 pelo Instituto Ipsos, há uma crescente de abandono por medo dos efeitos colaterais. Mesmo assim, os riscos são pequenos se comparados com os benefícios e a sensação de proteção que o anticoncepcional traz.
Novos desafios
Sessenta anos após sua chegada no mercado, a pílula anticoncepcional hoje representa muito mais que uma escolha de querer ou não engravidar de uma mulher. Significa também autocuidado, autonomia e liberdade, possibilitando o controle e o equilíbrio de seus próprios corpos.
A evolução da ciência acompanha as transformações do corpo e da sociedade. No momento, a medicina busca reduzir os efeitos colaterais do métodos anticoncepcionais já existentes, ao mesmo tempo que aumenta sua eficácia. Novas pesquisas procuram também desenvolver métodos mais seguros, acessíveis e confortáveis para as pessoas que buscam cuidados.
Margaret Sanger, em 1921, afirmou em seu livro “Woman and the New Race” que “nenhuma mulher pode se considerar livre até que ela possa, conscientemente, escolher se ela será ou não será mãe”. Ainda hoje, a frase é um símbolo da luta feminina pela liberdade reprodutiva.
Mais de cem anos depois, Bianca Belentani enxerga a chaga que o uso de anticoncepcionais traz para a vida das mulheres. “Há um certo julgamento moral em torno do uso do anticoncepcional que reflete um controle social sobre a sexualidade feminina, reforçando estigmas de gênero. Quando na verdade o uso deveria ser associado ao direito da saúde e da autonomia da mulher em planejar sua própria vida”, comenta. Enquanto a ciência evolui, a autonomia feminina continua sendo o verdadeiro desafio, que nenhuma fórmula química sozinha é capaz de resolver.

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