Por Beatriz Marrancone, Bianca Costa e Lucas Mello

Atrás de um muro alto, reforçado com pedaços de madeira e cercado por arames, três pitbulls latem furiosamente. Ao fundo, uma casa coberta com tatames voltados para o portão e câmeras espalhadas, bloqueiam qualquer tentativa de acesso ao que se esconde ali. Quem  tenta observar o espaço encontra resistência: o caseiro tem ordens claras — ninguém  entra na propriedade.

Durante décadas,  por trás de muros  e jardins bem cuidados — este espaço abrigou uma das casas noturnas mais famosas do Brasil. À beira da rodovia Marechal Rondon, na entrada de Bauru, um lugar que já foi chamado de palácio, de escândalo, de império. Hoje, em silêncio,  ainda carrega memórias que não podem ser ignoradas. 

Até 40 anos atrás, a Casa da Eny era um símbolo de luxúria e poder. Não era só um bordel, era uma experiência. Mais de quarenta quartos decorados com esmero, piscina iluminada, saunas e restaurante com rosbife famoso. Dois bares e salões de festa onde se realizavam confraternizações de empresas, jantares discretos entre políticos, encontros improváveis em plena ditadura militar. Durante as décadas de 1960 a 1980, passaram por ali padres, fazendeiros, governadores, artistas, ministros, presidentes da República e até um príncipe austríaco, como conta o livro Eny e o Grande Bordel Brasileiro, que conquistou  em 2001 o segundo lugar no Prêmio Jabuti, na categoria Biografia; do jornalista e doutor em letras pela Universidade de São Paulo (USP), Lucius de Mello.

A casa guardava salões de festa que ecoavam música e risadas madrugada adentro. Corredores com o perfume das melhores essências francesas e quartos onde o Brasil secreto se encontrava — discretamente — com o prazer.

Hoje, o cenário é outro — mas os rastros ainda estão ali. A casa principal, onde tantos nomes de destaque já se instalaram, já não existe mais. No lugar dos quartos cobiçados, um terreno plano e cimentado tomou conta. No restaurante, algumas mesas antigas seguem jogadas aos cantos. O bar, feito de madeira grossa, resiste — sólido, ainda de pé. No chão, os taquinhos desgastados testemunham o poder do tempo e os banheiros das suítes se desfazem. Azulejos importados de Portugal repousam encostados, meio esquecidos, no que costumava ser o salão de refeições. 

A área da piscina, curiosamente, segue bem conservada, como  estabelecido  no acordo feito em 2006 entre o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Bauru (CODEPAC)  com os três irmãos Banuth, proprietários do espaço.

Um documento lavrado em cartório, citado no processo de tombamento (n. 23.681/01) , registra o acordo firmado após os herdeiros manifestarem que não queriam que a propriedade fosse tombada. Em contrapartida, comprometeram-se a preservar a área da piscina, como já era de interesse da família. Em troca, ficava aberta a possibilidade de utilizarem o restante do terreno como bem entendessem — o que incluía a construção de um condomínio residencial, que jamais saiu do papel. Hoje, entre entulhos e memórias, os escombros guardam ecos de um Brasil secreto.

Tombamento cai por terra

Apesar da importância histórica e simbólica da Casa da Eny, hoje o tombamento do imóvel é juridicamente impossível. Segundo o CODEPAC, o processo depende da integridade física do bem a ser preservado. Em outras palavras: é preciso que ele exista. 

O tombamento, segundo as normas municipais, busca proteger edificações com valor histórico, arquitetônico ou cultural — mas não apenas por aquilo que elas representaram, e sim por aquilo que ainda são capazes de expressar materialmente. 

Área de lazer preservada em acordo com CODEPAC (Foto: Arquivo pessoal)

Lilian Henrique de Azevedo, secretária do conselho, é direta: “O tombamento dessa área não é mais possível”. Com a demolição da parte principal e a degradação das estruturas restantes, a Casa da Eny não reúne mais as condições mínimas para ser reconhecida como patrimônio. O processo, iniciado em 2001, foi arquivado definitivamente em 2006 — e hoje não há caminho legal para sua retomada.

Durante os cinco anos em que esteve em discussão, o dossiê do tombamento acumulou pareceres técnicos diversos, divididos entre os que enxergavam ali um símbolo cultural único e os que recusavam sua legitimidade como patrimônio. Lilian destaca um parecer decisivo: o do professor Luiz Augusto Teixeira Ribeiro, então docente de Fotojornalismo na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru.

Em sua análise, Ribeiro argumenta que a Casa da Eny não apresentava elementos suficientes para ser considerada um marco da história bauruense. Segundo ele, não houve fatos relevantes ligados à cidade que justificassem o tombamento. Foi além: classificou Eny Cezarino como “apenas mais uma empresária do ramo da prostituição” e defendeu que a verdadeira Casa da Eny — o primeiro prostíbulo, situado na antiga zona do meretrício de Bauru — já não existia mais. Assim, na visão do professor, não fazia sentido tombar a segunda sede, aquela mais conhecida, construída anos depois em outro local.

Esse segundo imóvel, a chácara situada na entrada da cidade, foi erguido por Eny após a remoção dos bordéis da zona central de Bauru. Enquanto muitos estabelecimentos se deslocaram para uma área periférica determinada pelas autoridades (em região ainda pouco documentada nos registros oficiais), Eny seguiu na direção contrária: escolheu a rodovia de entrada da cidade para instalar seu novo império. E assim o fez.

Ribeiro, então, sustentou à época que a mudança de local descaracterizou a essência do patrimônio original — um argumento que pesou na decisão final do CODEPAC.

Mas nem todos concordaram com esse ponto de vista. Um dos pareceres favoráveis mais notáveis foi o de Lucius de Mello. Para ele, o tombamento da Casa da Eny era mais do que justo: era necessário. Em seu parecer, Lucius afirma que a propriedade não era apenas um imóvel, mas um documento histórico vivo, que atravessava o tempo e merecia ser preservado sem preconceitos.

Lucius também argumenta que a história de Bauru está intimamente ligada a tensões morais  — como a excomunhão da cidade pela Igreja Católica nos anos 1950, em razão da recusa em demolir a zona do meretrício. Nesse contexto, a figura de Eny não era marginal, mas central: uma personagem que encarnava os conflitos, contradições e transformações sociais de uma cidade interior do Estado. 

Henrique Perazzi de Aquino foi presidente do CODEPAC nos anos em que o processo esteve aberto e lembra das pressões enfrentadas à época.

“Havia perseguição. A cidade de Bauru pode não parecer ter tanto conservadorismo, mas ela é bastante conservadora”, afirma. “E quando foi levantada essa hipótese de tombar a casa da Eny, as pessoas começaram a se levantar contra. ‘Imagina, tombar um prostíbulo?’ E daí? Qual o problema de se tombar um prostíbulo? Pra mim, nenhum.”

Aquino explica que essas pressões acabaram sendo decisivas no desfecho do processo. “A maioria dos conselheiros também sentiu um pouco da pressão que a cidade fazia, e mesmo alguns sendo favoráveis ao tombamento, o colegiado da época decidiu por não tombar a propriedade em sua totalidade”, diz.

Estado irreversível

Além da pressão social, outro fator determinante foi o estado físico do imóvel. Com o passar dos anos, nenhuma obra de preservação foi realizada. A estrutura foi se perdendo. E, em vez de conservação, vieram os usos alternativos.

Interior de uma das contruções da casa da Eny (Foto: Beatriz Fulas Apolari)

“A área onde era o bordel já tinha sido usada para jogos de paintball — aqueles jogos de tiros violentos — que destruíram as paredes do imóvel. Então ele já não tinha a característica de antes”, explica Aquino.

Segundo ele, a casa também foi palco de festas eletrônicas organizadas por Caio Banuth, um dos três proprietários do terreno, filhos herdeiros de Fauzer Banuth. “Após o falecimento do pai, o filho usou aquela área para fazer festas, eventos.”

Antes disso, Aquino lembra que Fauzer chegou a manifestar interesse em transformar o local em um hospital psiquiátrico — projeto que, assim como o posterior prédio residencial, jamais saiu do papel. 

Apesar de tudo, Aquino  ainda demonstra certa satisfação com a preservação de ao menos parte da antiga estrutura. “Nós conseguimos que estivesse intacta essa área da piscina. E, da forma como foi feito esse acordo de preservação, você pode permitir que se construa várias coisas no entorno da piscina, sem que esta fosse alterada.”

Enquanto o ex-presidente do CODEPAC parece ver o copo meio cheio, o escritor Lucius de Mello lamenta o que poderia ter sido — e não foi. Para ele, a Casa da Eny tinha potencial para se tornar um centro cultural. Um espaço de memória que não se limitasse apenas à história da famosa cafetina, mas que também abraçasse as camadas esquecidas da história bauruense: as comunidades indígenas, a cultura popular, os excluídos da narrativa oficial. “A gente não pode ser tão pretensioso a ponto de querer ser dono da história”, afirma.

A frase ressoa entre os escombros. A casa que já foi símbolo de um Brasil secreto, palco de luxo e transgressão, hoje é silêncio e cimento. A significativa placa “Eny ‘s Bar e restaurante”, um convite àqueles que passavam pela  cidade no interior de São Paulo, segue pendurada na grande caixa d’água, onde costumava atrair seu público. Agora apagada e com algumas letras soltas e enferrujadas, a placa se esconde por entre as cercas e árvores altas. O mesmo ocorre com a casa. A tentativa de preservar sua história não resistiu ao tempo — nem ao esquecimento conveniente de uma cidade que preferiu virar a página antes de terminar de ler o parágrafo.

Cimentado onde antes ficava a construção principal da Casa da Eny
(Foto: Arquivo pessoal)

Eny oferecia algo raro: sigilo, luxo e ordem. “Suas meninas”, como eram chamadas — cerca de 70 no auge — eram obrigadas a seguir regras quase aristocráticas. Precisavam estar sempre  bem vestidas e saudáveis.

Mas o bordel era só a superfície do império. Eny fazia política com a mesma elegância com que servia uísque importado — às vezes contrabandeado do Paraguai, é verdade. Angariava votos, ajudava a eleger amigos e sabia resolver rapidamente qualquer “problema” com a polícia. Tinha aliados em todos os lados. Sua casa era ilegal apenas no papel, como conta o Lucius, em seu livro. 

Aos olhos da cidade, era uma pecadora com coração generoso. Apesar do preconceito, financiava creches, ajudava escolas, apoiava obras sociais das freiras e sustentava parentes — mesmo sem receber deles nem aprovação nem carinho.

Eny possuiu 26 imóveis ao longo da vida. Casou-se, não teve filhos e morreu pobre, em uma cama de hospital, em 1987, aos 69 anos. Culpava os anticoncepcionais e a revolução dos costumes como responsáveis por sua decadência. No fim da década de 1970, em entrevista à revista Cruzeiro, a cafetina afirmou: “Está na hora de eu fechar, porque nunca vi profissional perder para amador”. Com isso, ela se referia à crescente liberdade sexual das mulheres — agora  já não havia tanta demanda pelo sexo pago, antes visto como única saída para os anseios masculinos.

Quando a história tem dono

O trevo em frente ainda é conhecido como “Trevo da Eny”, nome que foi oficializado pelo projeto do deputado Pedro Tobias e sancionado em lei por Geraldo Alckmin após publicação no Diário Oficial do Estado.

Mas o que ele aponta agora? Para o mato alto, os cães de guarda, os escombros silenciosos. Um espaço que pertence à memória coletiva, mas que hoje tem donos. 

Os proprietários anunciaram a demolição em junho de 2006. Segundo entrevista à época  para o jornal “Bom dia, Bauru”, Caio Banuth atacou  o processo de tombamento: “é muito fácil querer tombar, a casa não é deles. É coisa de sonhador, de pessoas que não tem o que fazer”, disse na ocasião.

Tentamos entrar em contato com  Banuth e não obtivemos retorno até o fechamento desta reportagem.

Alternativas

Quase duas décadas depois, o debate ressurge, agora sob outra forma. Lilian afirma que ainda estuda formas de preservar a memória da Casa da Eny — mesmo diante da impossibilidade de um tombamento tradicional. A proposta em andamento mira outro tipo de reconhecimento: o tombamento imaterial da paisagem.

Ela aponta que esse tipo de proteção dialoga melhor com o que restou do espaço. “Isso — manter a paisagem — tem tudo a ver com o que existe lá de fato. Porque pode fazer reformas, mudar uma coisa ou outra. Mas a memória do lugar vai ficar sempre lá”, afirma.

A ideia é preservar os elementos que ainda fazem referência ao passado do local, mesmo que discretamente. “Quais elementos poderiam ser mantidos para não descaracterizar totalmente? Para que se tenha um lugar de memória”, reflete Lilian.

O tombamento imaterial, previsto pela Constituição Federal e regulamentado por instituições como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), busca preservar manifestações culturais, saberes, celebrações, formas de expressão e também paisagens que carregam significado histórico e simbólico para uma comunidade. 

No caso das paisagens culturais, o reconhecimento se dá não apenas pelo valor estético ou natural do espaço, mas por sua relação com a memória coletiva — como lugares onde tradições ocorreram ou que marcaram a história de um povo. Nesse modelo, protege-se o sentido e a memória ligados ao território, mesmo que as estruturas físicas tenham desaparecido.

Apesar dos planos para esse novo tipo de tombamento, Lilian ressalta uma dificuldade estrutural do CODEPAC que impacta diretamente a preservação do patrimônio em Bauru: o conselho não possui caráter deliberativo. Isso significa que as decisões tomadas ali nem sempre são efetivamente implementadas, dependendo da aprovação do Executivo municipal para avançar.

“O nosso conselho, por hora, não tem característica deliberativa, o que é muito sério e problemático para a gente. Porque as nossas decisões não são veiculantes, ou seja, elas não têm força. O nosso conselho era deliberativo, mas por uma questão bastante controversa, a respeito de quem determinaria o bem tombado, porque quem determina não é o CODEPAC, é o Executivo.”

Por isso, em uma reunião extraordinária realizada no dia 27 de maio deste ano, os conselheiros do CODEPAC discutiram duas minutas de leis fundamentais para o patrimônio cultural da cidade: o Projeto de Lei que institui formalmente o CODEPAC e o Projeto de Lei de Tombamento e Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial de Bauru, que visa ampliar a proteção a elementos culturais intangíveis.

Apesar das ruínas e da falta de preservação que excluíram as chances de tombamento, a Casa da Eny ainda vive — não mais em paredes ou móveis, mas nas perguntas que levanta. Que tipo de memória merece ser preservada? Quem decide o que é — ou não é — patrimônio? O silêncio em torno da antiga Casa da Eny não apaga a potência de sua história: a forma como um bordel teve o poder de movimentar grandes quantias de dinheiro, atrair nomes influentes da política e da elite nacional, e escancarar os limites morais de uma cidade do interior que, mesmo tentando esconder, nunca deixou de lembrar.

Letreiro escrito “Restaurante Eny’s Bar” (Foto: Arquivo pessoal)

Foi justamente esse paradoxo que despertou o interesse de Lucius de Mello. Ele conta que decidiu escrever sobre Eny ao se mudar para Bauru pouco tempo depois da morte  da personagem. Percebeu e achou curioso o luto da cidade pela morte de uma cafetina. A comoção popular o surpreendeu. O respeito, o carinho e até a admiração que parte da cidade demonstrava por aquela mulher — vista por muitos como símbolo de generosidade e ordem — destoavam da narrativa oficial. Ali havia algo a ser contado.

Hoje, entre as ruínas e os latidos dos cães de guarda, resta uma certeza: mais do que concreto e tijolo, o que se perdeu ali foi a chance de encarar de frente uma parte incômoda, porém essencial, da identidade de Bauru.


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