Em país marcado pelo avanço do agronegócio e com uma das maiores concentrações fundiárias, levantamento aponta aumento da violência em conflitos por terra
Por Isabela de Andrade Ferreira
Em abril deste ano foi divulgado o relatório anual de Conflitos no Campo, realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), e referente ao ano de 2024. O levantamento contabilizou 1.768 conflitos por terra, o maior número registrado na última década, além de um aumento nos casos de violência em relação ao ano de 2023, em sua maior parte relativos a atos contra a ocupação e posse de terra.
As áreas com aumento mais significativo de conflitos e violência foram a Amacro, (sigla que se refere a região dos estados de Amazonas, Acre e Rondônia) e Matopiba (que engloba parte do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Desde 1985 a CPT vem fazendo o importante trabalho de documentar esses dados em um país onde a desigualdade fundiária esteve sempre tão enraizada historicamente.
“Nosso objetivo é tornar público esses dados, e fazer com que nossa sociedade a partir dessas informações se deem conta que de fato devemos assumir uma campanha contra a violência no campo. E que nosso Caderno possa servir de alerta para nossas autoridades em nível municipal e estadual, que tomem providências para que vidas humanas não continuem sendo vítimas da violência e da morte. É um compromisso com a vida dos povos indígenas, dos camponeses, ribeirinhos, pescadores e de quem vive no campo”, defende Dom José Ionilton, presidente da CPT.
Jorge Xavier de Almeida, liderança na luta por terra desde 1994 no norte e noroeste de Minas Gerais, afirma que, para além dos dados recentes, a violência no campo tem se mantido constantemente em níveis alarmantes.
“Eu penso que isso se manteve, às vezes oscila um pouco pra cima, um pouco pra baixo. A gente sabe que morre muita gente nessa disputa por terra. O que eu percebo é que a violência se mantém sempre num nível alto”.
Jorge conta que já presenciou diversas situações de violência nos últimos 30 anos em que tem participado de ocupações. “Era cotidiano os pistoleiros fazerem essa pressão de atirar pra dentro do acampamento. Não atingia ninguém, mas era quase todo dia. A gente ligava pra polícia militar e eles não compareciam. Era o nosso próprio pessoal que fazia a contenção, a própria segurança”.
Relatou ainda sobre a violência policial, que, segundo ele, tem agido como o “braço armado do latifúndio”, descrevendo episódio recente em que policiais dispararam com balas de borracha, armas de choque e spray de pimenta contra a comunidade de assentados .
“Aqui em Minas Gerais a violência é mais constitucional. Muitas vezes sofremos violência policial. É muita prisão, muito espancamento. A polícia está sempre pronta a combater esses movimentos que atuam aqui na região”, conclui.
Apesar de histórica, a questão da terra no Brasil tem seguido novas dinâmicas de concentração com o crescimento exponencial do agronegócio.
Nesse sentido, o relatório da CPT aponta que a maioria dos conflitos tem se concentrado justamente nas áreas de expansão e fronteira do agro.
“O agro está invadindo assentamentos que fazem fronteira com suas fazendas. Eles têm comprado lotes de assentamentos, aproveitado da fragilidade dessas pessoas que acabam cedendo a esse assédio imobiliário. A gente tá perdendo essas áreas pro agronegócio”, explica.
Somente na comarca de Buritís, onde vive atualmente, o assentado já respondeu a 60 processos referente a luta do MST e da FETRAF, dos quais foi condenado em quatro, que lhe renderam ao todo 26 anos de prisão. Ele defende que esse é também um tipo de violência: personalizar o movimento em suas figuras de liderança, sendo responsabilizado individualmente como figura de “bode-expiatório”.
Duas das condenações de Jorge são por furtos em uma agência do Banco do Brasil que foi ocupada como forma de protesto por mais de 300 pessoas contra a falta de crédito rural. A primeira acusação foi pelo roubo de um grampeador de papel e a segunda pelo roubo de um kit de facas oferecido como brinde aos clientes da agência. As duas acusações juntas lhe renderam mais de 12 anos de condenação.
Foi também responsabilizado pelo roubo de uma grade de arado de uma das fazendas ocupadas pelo movimento agrário e pelo abate de 785 cabeças de gado, ação na época aprovada em assembleia pelos membros da ocupação como medida de urgência para aplacar a situação de fome generalizada de cerca de 700 famílias após inúmeros pedidos para autoridades locais por cestas básicas (250 foi o número real de animais abatidos).
“Eu não cometi nenhum dos crimes que foram atribuídos a mim, estou numa batalha jurídica. E isso acontece com várias lideranças em todo o Brasil, é uma forma que eles têm de atingir diretamente o movimento”, diz.
Jorge foi absolvido da última acusação, mas segue pagando pena no regime condicional pelas outras três enquanto busca apoio e mobilização para que seu caso seja revisado.
“Embora o golpe que sofri tenha sido, e é, duríssimo, eu não me vitimizo com isso. Eu sabia dos riscos do envolvimento com a luta social. Enfrentar o coronelismo da região, a gente conhece a história do nosso país…Quem detém o poder sempre tratou os menos favorecidos, os sem terra, os sem teto dessa forma. Eu sabia dos riscos, mas me sinto um combatente social atingido covardemente”, completa.
