Por Gabriela Della Nina e Poliana Barros
Historicamente, as novas tecnologias vêm transformando as dinâmicas do mundo do trabalho. No entanto, segundo a economista Andreia Marques, a revolução tecnológica atual, marcada pelo uso crescente da inteligência artificial (IA), apresenta características disruptivas em relação a revoluções industriais anteriores.
Segundo a especialista, dois pontos centrais diferenciam o cenário atual: a substituição do trabalho intelectual, e a velocidade com que as inovações estão sendo implementadas. Marques explica que nas revoluções industriais anteriores “o ser humano ainda estava no centro das decisões do controle social e econômico”. Já no contexto atual “a inteligência artificial substitui não apenas o trabalho físico, mas também o trabalho cognitivo”, afirmou Andreia. Isso significa que a IA pode ocupar, inclusive, os espaços de poder e de tomada de decisões.
No ano de 2023, 55% das empresas do mundo haviam adotado o uso de Inteligência Artificial, já em 2024 esse índice subiu para 72%, de acordo com dados da empresa estadunidense McKinsey. Isso demonstra a rapidez com que as transformações no mercado de trabalho estão ocorrendo, um fator considerado preocupante pela economista. Ao contrário do que aconteceu no século XVIII, quando a implementação das novas tecnologias foi lenta o suficiente para permitir um período de adaptação social, hoje, “a implementação é muito rápida, não dá tempo para que esse ajuste ocorra sem vítimas, vamos dizer assim”, afirmou Andreia.
No Brasil, onde cerca de 29% da população é considerada analfabeta funcional, segundo dados recentes publicados pela UNICEF, a velocidade dessa revolução pode aprofundar ainda mais o abismo social. Segundo Marques, muitos não terão condições de acompanhar essas mudanças, o que aumenta a desigualdade e exclui uma parcela significativa da população do novo mercado de trabalho.
Em contraste, países europeus com sistemas educacionais consolidados e maior igualdade social estão melhores preparados para enfrentar essa nova realidade. “Se você pegar sociedades, bem desenvolvidas, como por exemplo na Holanda, Inglaterra etc. nesses países o pessoal está nadando de braçada, porque a educação lá é boa, sempre foi voltada para novas tecnologias, então facilmente se adapta ou se interage com a tecnologia”, compara a especialista.
Diante desse cenário, Marques defende a criação de políticas públicas e mecanismos de regulação. Para ela, é essencial que o uso das inteligências artificiais beneficie a coletividade, e não apenas um seleto grupo de empresários que possuem total controle sobre a ferramenta.“A tecnologia em si, eu acho muito bacana, muito potente inclusive para diminuir as iniquidades sociais. Porém, o uso dessa tecnologia não está sendo bem organizado, legislado ou regulado. E isso é que pode provocar uma grande ruptura social.”
Dentre as profissões que estão sendo afetadas, destaca-se o setor criativo. Isso tem sido impulsionado pela geração de imagens, design gráficos e vídeos por Inteligência Artificial, utilidade que surgiu nos últimos anos. Frente a essas mudanças, surge o debate sobre a relevância do trabalho artístico nos dias atuais e como as novas tecnologias vem afetando esse cenário.
A artista plástica Júlia Ramos explica que “não só artistas como eu que ficam ameaçados, mas pessoas que trabalham no universo criativo como um todo. Me preocupo com como essas pessoas irão se reinventar”. Segundo ela, a substituição de profissionais humanos por algoritmos enfraquece o valor da criação artística, transformando-a em mais um produto da lógica do lucro.
Com o surgimento da nova ferramenta, aparecem também questões que dizem respeito à regulamentação dessa atividade. Júlia citou o caso da prefeitura de Ulianópolis, no Pará, que fez um vídeo para promover as festas juninas da cidade, segundo ela “no vídeo apareciam pessoas, cenário, música etc. tudo com inteligência artificial e sem nenhum alerta de que era um conteúdo gerado por IA. Se um órgão como a prefeitura fez isso, há de se imaginar o que está por vir.”
Para a artista, resistir à forma como um sistema tão perverso funciona, pode não ser efetivo. A estratégia mais sensata seria “aprender a conviver com essas tecnologias e até utilizá-las para otimizar o próprio trabalho”, disse a profissional. Todavia, existe uma diferença clara entre a arte produzida pela Inteligência Artificial, que possui exclusivamente fins mercadológicos e serve ao capitalismo, e a arte enquanto entidade, essa sim, de acordo com Júlia, “sempre vai precisar de um ser humano para cumprir seu papel”.
Um olhar para o futuro: é possível a abertura de novos caminhos?
Embora o avanço da inteligência artificial ainda desperte dúvidas e receios no mundo do trabalho, cresce o número de especialistas e profissionais que enxergam nesse processo uma oportunidade de uma transformação não apenas tecnológica, mas também na maneira como nos relacionamos com o próprio trabalho. Em um cenário de mudanças aceleradas, reinventar-se deixou de ser uma escolha e passou a ser uma exigência.
Para o pesquisador Jonas Gonçalves, doutor em Mídia e Tecnologia pela Unesp, a IA representa um verdadeiro ponto de virada, que “precisa ser encarado não como uma onda tecnológica, mas como um novo paradigma”. Segundo Gonçalves, o impacto da IA é ainda mais profundo porque acontece enquanto o mundo ainda tenta se adaptar às revoluções digitais anteriores, como a automatização de processos e o crescimento das plataformas sociais. “Nada será como antes”, resume.
Nesse contexto, ele cita a pesquisadora Martha Gabriel, que defende a não existência de “profissões do futuro” considerando o ritmo extremamente acelerado de evolução da IA, mas sim de “profissionais do futuro” que, sobretudo, tenham habilidades essenciais, necessárias para lidar com um cenário em constante mutação. Pensamento crítico, adaptabilidade, criatividade e resiliência são algumas das competências que, segundo ela, serão indispensáveis.
Esse olhar mais estratégico sobre a IA também tem sido compartilhado por quem está diretamente no mercado. Vinicius Miquelim é fotógrafo e atua também com suporte técnico em uma empresa de tecnologia. Para ele, a inteligência artificial trouxe uma revolução nos bastidores da fotografia profissional. “Antes, editar um ensaio de casamento com milhares de fotos levava dias. Hoje, com as ferramentas de IA, dá pra reduzir esse tempo em até 80%”, explica. “A IA ajuda a automatizar esse processo, liberando mais tempo para o que realmente importa: o olhar criativo”, afirma. Para ele, mais do que dominar técnicas, é preciso reinventar formas de se conectar com o público e agregar valor ao próprio trabalho.
A valorização da criatividade vem ganhando peso em um cenário de consumo cada vez mais rápido. Outro estudo da McKinsey & Company mostra que 50% das tarefas de trabalho atuais poderiam ser automatizadas até 2030 com o uso de tecnologias já disponíveis — e a IA generativa pode acelerar esse processo. No entanto, o mesmo relatório aponta que haverá aumento na demanda por profissões ligadas à resolução de problemas, empatia e pensamento criativo.
Diante desse novo cenário, a inteligência artificial não precisa ser vista como uma ameaça inevitável, mas como uma ferramenta potente que pode melhorar a qualidade do trabalho e abrir caminhos antes inimagináveis. Para isso, é preciso garantir que sua aplicação seja feita com responsabilidade, olhando para o bem coletivo e garantindo que ninguém fique de fora dessa nova era.
