“Toda vez que eu vou pra farmácia pegar meus medicamentos, eu tenho que falar ‘Meu gênero ainda está feminino. Quando vão mudar?’”, relata Jean Felipe do Carmo, homem trans de 38 anos.

Por Beatriz Malheiro

Pessoas trans estão sujeitas à hostilidade em diversos aspectos do cotidiano, até mesmo em ambientes que, em teoria, deveriam ser acolhedores. O preconceito embutido na área da saúde é um fator agravante da marginalização da transgeneridade. Pode elevar a dificuldade do acesso de pessoas trans ao cuidado médico, devido ao medo da discriminação.

A transfobia no meio ambulatório possui várias faces. Pode se apresentar como recusa de utilizar o nome social, negação para certos tratamentos ou até mesmo deboche com as exigências de saúde de uma pessoa transgênero.

Jean Felipe do Carmo conta que tem seu gênero registrado de forma incorreta na farmácia em que frequenta para buscar medicação. “Toda vez que eu vou pra farmácia pegar meus medicamentos, eu tenho que falar ‘Meu gênero ainda está feminino. Quando vão mudar?’”.

Jean já tem o nome e gênero corretamente registrados em seus documentos há cinco meses, porém ainda é tido como alguém do gênero feminino no sistema da farmácia.

Ele considera essa questão como falta de força de vontade por parte da farmácia. “Eu acho que a burocracia é uma droga. Eles não querem mudar. Estão lá me enchendo o saco mesmo”, diz.

Os abusos também ocorrem no meio ginecológico. É comum que homens trans tenham suas necessidades menosprezadas durante o atendimento. Jean conta que, certa vez, ao ser atendido por uma ginecologista, foi discriminado do começo até o final da consulta. “Ela começou me chamando pelo meu nome morto. Eu falei ‘Meu nome é Jean, eu quero que me chame pelo meu nome’, e ela já me olhou com a cara estranha”.

Jean dá mais detalhes de como a consulta prosseguiu. “Eu falei ‘Bom, não me sinto bem com o meu útero, e eu quero tirar’ e ela falou assim ‘Oxi! Você não tem motivos plausíveis para tirar o seu útero, não vai conseguir. Você teria que ter alguma coisa’”.

Esse é um exemplo claro de como as demandas de saúde de uma pessoa trans são descartadas por discriminação e despreparo profissional. Jean explicou que mesmo o seu útero dispondo de miomas — nódulos prejudiciais que se desenvolvem dentro do útero —, seu pedido não foi ouvido. “Ela disse ‘Mesmo assim, seu mioma não tem o tamanho ideal para poder retirar’”.

A médica foi denunciada e Jean recebeu um pedido de desculpas da clínica de ginecologia. “Eles pediram desculpa e só. Mais nada. Não falaram se desligaram a médica”.

Também é comum que, por terem medo de serem julgadas ou maltratadas, algumas pessoas trans busquem tratamento hormonal dentro da informalidade, de maneira clandestina. Algo que pode representar um grande risco à saúde, pois o uso de hormônios exige a análise de caso. Uma bateria de exames é realizada para entender a quantidade de hormônio a ser aplicada, entre outros fatores. Se esses passos não são seguidos com cautela, a pessoa está sujeita a diversos problemas de saúde, como trombose, infarto e até câncer.

Jean ressalta a importância de profissionais voltados para as pautas da transgeneridade dentro da área da saúde. “Quando eu me descobri, comecei a fazer terapia com uma pessoa especializada em pessoas trans. E me ajudou muito a perceber que desde pequeno eu não me identificava com o meu corpo”. Ele acredita que existe um despreparo entre os profissionais da saúde para entender e lidar com a causa trans, principalmente dentro da rede privada.

“O Ambulatório Integral para Travestis e Transsexuais é só para isso. Você tem os hormônios de graça, pode fazer as cirurgias de graça, tudo de graça”, comenta Jean ao explicar que existe mais cuidado por parte da rede pública com as pessoas trans. “No SUS tem um atendimento, assim, de primeira. Só que particular… Eles estão completamente por fora”.

O descaso da área da saúde com a comunidade é motivo de medo e angústia entre as pessoas trans. “É um lugar que eu deveria ser acolhido e não sou. Dentro da farmácia, dentro dos hospitais que eu fui, no ginecologista, qualquer outro médico”.

Jean desabafa: “é muito ruim isso. Eu fico até com medo de chegar no lugar porque eu sei que vou ser discriminado. Isso me faz ficar mais retraído, mais dentro de casa e com menos vontade de sair”.

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