Com a condenação do humorista Leo Lins, as redes sociais se agitaram com a discussão: até onde vai a piada? Entenda como a liberdade de expressão e o preconceito recreativo se cruzam
Por Júlia Santiago
O último mês de junho foi marcado pela recente polêmica (mas não a primeira) do humorista Leo Lins, que se tornou réu após a repercussão de algumas de suas piadas feitas em seus shows de humor.
A internet foi bombardeada de opiniões distintas sobre o caso. Algumas figuras públicas expressaram sua opinião por meio das redes sociais: o apresentador Danilo Gentili saiu em defesa do humorista, enquanto a também comediante e atriz Tatá Werneck condenou os atos de Lins.
“Olha, no país em que o INSS é usado para fraudar velhinhos à força, a Justiça puniu um comediante por contar piadas em um ambiente criado para isso, soa uma piada de mau gosto”, diz o comediante Danilo Gentili que se solidarizou com o amigo.
Em contrapartida, internautas viralizaram um ato de Tatá em 2020, em que a apresentadora contratou Ana Flor, uma consultora travesti, para lhe aconselhar ao construir piadas. A ação foi tomada após Werneck reproduzir uma piada com teor transfóbico em seu programa Lady Night.
“Durante muito tempo, o humor foi compreendido como um lugar repleto de violências. Entender a importância de romper com essa visão é fundamental. É exatamente isso que estamos fazendo”, disse Ana Flor em suas redes no ano de 2021.
As piadas encabeçadas por Leo Lins causaram todo o alvoroço devido ao seu teor ácido e ofensivo, em particular com minorias, negros, deficientes e pessoas da comunidade LGBT, além de temas como pedofilia, abuso sexual e machismo.
O caso de Lins
Na terça-feira, 3 de junho, o comediante Leo Lins foi condenado pela Justiça Federal a 8 anos e três meses de prisão, inicialmente em regime fechado. Além disso, também foi indiciado a pagar uma multa de R$1,4 milhões e R$306,3 mil em indenização.
Toda essa comoção ocorreu devido ao conteúdo apresentado em seu show, intitulado “Perturbador”. No show gravado em Curitiba, o humorista fazia piadas com escravidão, idosos, minorias, zoofilia, abuso sexual, incidentes trágicos e deficientes. O espetáculo contou com uma audiência de 4 mil pessoas e o vídeo atingiu 3 milhões de visualizações na plataforma YouTube.
A condenação foi feita pela juíza Bárbara Issep, que alegou que atividades humorísticas não são um passe-livre para ofender e discriminar parcelas da população.
“O exercício da liberdade de expressão não é absoluto nem ilimitado, devendo se dar em um campo de tolerância e expondo-se às restrições que emergem da própria lei. No caso de confronto entre o preceito fundamental de liberdade de expressão e os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica, devem prevalecer os últimos”, afirmou a juíza na sentença.
Em um vídeo gravado para o YouTube, Lins expõe seu pronunciamento e opinião sobre o próprio caso, se defendendo da condenação: “concordar com sentenças como essa é assinar um atestado que nós somos adultos infantilóides sem a menor capacidade de discernir o que é bom ou ruim para nós”.
Esta não foi a primeira nem única polêmica envolvendo o nome de Leo Lins. Em 2023 o humorista já havia se tornado réu pelos mesmos motivos e teve vídeos de seu canal do YouTube retirados do ar, além do bloqueio de R$300 mil de suas contas. Em 2022 foi condenado a pagar R$44 mil de indenização após ofender à mãe de um jovem autista em rede social. Ainda no mesmo ano entrou em uma polêmica envolvendo piadas com uma criança cearense com hidrocefalia.
A defesa do comediante emitiu uma nota oficial sobre a recente condenação: “trata-se de um triste capítulo para a liberdade de expressão do Brasil, diante de uma condenação equiparada à censura”.
As duas faces do humor
A comédia e o humor são poderosas ferramentas sociais que carregam significados ambíguos, podendo pender para o lado de alívio cômico ou o de ataque e marginalização.
É explícito no caso de Leo Lins as duas correntes que pautam essa ferramenta: enquanto há aqueles que defendem a arte da piada sem limites, em que tudo é apenas uma forma de livre expressão, há aqueles que pontuam o poder de exclusão social e de estruturação de preconceitos, quando o suposto humor atinge grupos minoritários.
Para a professora de Sociologia Rafaela Rabesco, o humor é sempre um reflexo da cultura e da sociedade em que ele está inserido, podendo variar em diferentes culturas, grupos sociais e contextos históricos. Assim, aquilo que faz rir também revela os valores e tensões de determinado grupo. “Dessa maneira, o que é considerado engraçado em uma cultura, por exemplo, pode não ter o mesmo efeito em outra”, completa.
Na sociedade contemporânea, os limites do humor se expandiram para as redes sociais, através dos memes, figurinhas e vídeos, acabando por revolucionar o cenário político e cultural.
“Então, além de estimular o riso em si, estimula também discussões importantes da sociedade. No Brasil, especialmente, os memes acabaram iniciando essas discussões de temas sensíveis, que para algumas camadas da população era até um tanto inacessível”, afirma a socióloga.
Assim, por meio de uma linguagem simples e popular, o humor acaba permitindo que a população se torne apta para debater temas como racismo, desigualdade social e marginalização, de forma que “o cidadão comum pense, reflita e discuta temas políticos que antes faziam mais parte do universo das elites”.
Se por um lado o humor pode abrir portas para a democratização de debates, ele também pode ser usado como arma de ataque para um grupo em alvo, principalmente se usado de forma leviana.
“Se a gente for pensar no sentido social, o problema nunca é do humor em si, mas a forma como ele é empregado e o discernimento crítico das pessoas a quem esse humor é direcionado”, adverte Rafaela.
Discurso de ódio
O conceito de violência simbólica, elaborado pelo sociólogo francês Pierre Bordieu, se refere às formas de dominação e controle que se manifestam através de símbolos, linguagem e práticas culturais, muitas vezes sem o uso de força física.
“No contexto do humor, essa violência simbólica pode se manifestar quando as piadas acabam reforçando estereótipos negativos, discriminando determinados grupos sociais, normalizando atitudes abusivas, sem o uso da força física, mas de força simbólica mesmo, através das piadas”, explica a professora.
Desse modo, piadas que ridicularizam temas como etnia, orientação sexual, gênero ou classe social e inferiorizam determinados grupos acabam perpetuando preconceitos já preexistentes em nossa sociedade.
“Ao naturalizar o preconceito e a discriminação, essa violência simbólica acaba contribuindo para a manutenção das estruturas sociais injustas, inclusive para o sofrimento desses grupos marginalizados. Então, essa violência simbólica pode afetar, inclusive, a autoestima e o bem-estar psicológico de quem é vítima dessa violência simbólica”, completa Rafaela.
Uma exemplificação de como a violência simbólica também se expande para o humor é o chamado racismo recreativo. A tese elaborada por Adilson Moreira refere-se à opressão racial por meio do humor, imortalizando estereótipos e preconceitos racistas com pessoas negras e asiáticas, povos originários e comunidades tradicionais.
“Embora esse fenômeno no humor seja, muitas vezes, complexo e sutil, às vezes é até explícito, ele pode causar diversos danos significativos para essas pessoas, para esses grupos”, explica a socióloga.
O conceito de liberdade de expressão é um importante pilar para a sociedade democrática, mas não é algo ilimitado. A Constituição brasileira além de resguardar esse direito, também impõe limites quando fere direitos fundamentais, como a dignidade humana.
“O filósofo inglês John Locke considera a liberdade de expor o pensamento como uma das prerrogativas que fundamenta a sociedade”, lembra a entrevistada. No entanto, ela destaca que, no caso do humor, esse direito encontra seus limites quando a piada promove discriminação ou violência simbólica. “Uma piada deixa de ser liberdade de expressão quando não promove um riso democrático, mas sim exclusão, preconceito e incitação ao ódio”, afirma.
Ou seja, quando a piada deixa de ser algo apenas para causar divertimento e vira uma ferramenta de ódio, exclusão e banalização ela deixa de ser protegida pela liberdade de expressão.
“Mas o humor pode ser sim uma ferramenta poderosa para a prática social e para a reflexão sobre as relações humanas do nosso momento histórico, da nossa sociedade, desde que seja utilizado de forma responsável e ética, evitando então a reprodução de estereótipos e a normalização de comportamentos abusivos”, conclui Rafaela Rabelo.
Foto: acervo pessoal
