Em meio à ausência de políticas culturais eficazes, artistas de companhias independentes do interior paulista lutam para levar o teatro à população e mostram como a arte pode transformar realidades desde a infância


Por Alice Rodrigues e Eduardo Dragoneti

Companhia artística apresenta espetáculos teatrais gratuitos na região de Bauru — Foto: Cia do Ar Livre /Divulgação

Ainda que transformadoras, experiências como assistir a uma peça de teatro aberta ao público seguem sendo exceção em um país onde o acesso à arte e à cultura ainda são um privilégio de poucos. Longe dos holofotes dos grandes centros urbanos, companhias teatrais resistem, enfrentando a escassez de financiamento, a ausência de políticas públicas duradouras e a invisibilidade que acompanha quem luta para democratizar a cultura.

Apesar da Constituição garantir o acesso à cultura como um direito de todos, dados mostram que esse ainda é um privilégio concentrado. De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 40% dos municípios brasileiros não possuem nenhum equipamento cultural, sejam teatros, centros culturais ou cinemas. A situação é ainda mais crítica fora das capitais, onde a oferta de eventos artísticos gratuitos é pouca.

Tatiane Marques, produtora geral e artística da Companhia do Ar Livre, grupo teatral de Brotas (SP), descreve como isso afeta diretamente a formação do público: “O acesso é muito limitado. Há uma camada muito pequena da população que consegue ter esse acesso, e mesmo quem quer, muitas vezes não sabe como procurar ou não se sente pertencente”. Ela destaca que o teatro de rua, que leva as apresentações para espaços públicos, é uma forma de furar essa lógica. “Quando a gente está na rua, a pessoa se depara com a cena sem precisar fazer esforço. Isso tem um impacto muito forte. A gente escuta muito ‘foi a primeira vez que assisti a uma peça de teatro’”, complementa a produtora.

Além do impasse do acesso às apresentações culturais, o Estado também não colabora. Não há incentivo suficiente por parte do Poder Público para garantir a continuidade e o alcance dessas ações. Mesmo com leis de fomento à cultura como a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91) e o Marco Regulatório do Fomento à Cultura (Lei nº 14.903/24) e editais pontuais, a maioria dos grupos sobrevive com recursos escassos, dependendo de iniciativas próprias, parcerias locais e, muitas vezes, do trabalho voluntário de seus integrantes. O grupo The Jugglers é um deles. A companhia teatral e circense de Bauru nasceu e funciona até hoje de forma 100% independente. Nenhum dos artistas tem uma renda fixa e eles dependem de projetos pontuais, editais ou apresentações esporádicas.

The Jugglers apresenta Biblioteca das Poções Perdidas no Centro Cultural de Bauru (Da esquerda para a direita: Miller Chamorro, Pedro Blanc e Robson Santos) — Foto: Guilherme Massuchini

“Incerteza” é a palavra que Pedro Blanc, Miller Chamorro e Robson Santos escolhem para descrever como é trabalhar como artista no Brasil. Pedro e Robson, fundadores do The Jugglers, foram convidados pela prefeitura da cidade de Bauru para apresentarem sua nova peça, na companhia do mágico Miller, na 22ª Feira do Livro municipal, organizada pela Secretaria de Cultura da cidade. No entanto, apesar do convite oficial, o pagamento pela participação ainda não havia sido entregue aos artistas até o momento da entrevista. “A gente aceita os convites, mas nem sabe se vai receber. É uma constante: o pagamento pode vir, pode não vir, ou pode demorar. A gente está sempre trabalhando na incerteza”, relatou Pedro.

Os dois grupos falaram sobre a importância da democratização do acesso à cultura e sobre como eles seguem na luta por essa causa. Tanto Tatiane quanto os integrantes do grupo bauruense contam que suas companhias não recebem subsídio do Estado, mas esse auxílio seria fundamental para melhorar a qualidade de seus trabalhos e garantir mais apresentações em espaços de gratuito acesso ao público.

A apresentação dos The Jugglers na 22ª Feira do Livro de Bauru, no dia 3 de Junho, foi assistida por alunos da educação infantil de diversas escolas do município interiorano. Os integrantes do grupo afirmam que esse contato com o teatro ainda na primeira infância é fundamental para despertar o interesse das crianças pela arte e ampliar sua sensibilidade desde cedo. Segundo eles, o impacto pode ser imediato e profundo, trabalhando a criatividade curiosa e até um possível desejo de participar de atividades artísticas. Para o grupo, proporcionar esse tipo de vivência não apenas aproxima novos públicos do fazer artístico, como também contribui para a formação de futuros artistas e espectadores mais conscientes.

Kleiton Peixe, psicólogo, reafirma a visão dos The Jugglers e complementa que o contato com a arte na infância permite que as crianças desenvolvam uma percepção mais profunda da realidade. Segundo ele, esse envolvimento estimula a habilidade de interpretar os sentimentos, ajuda a compreender o outro e faz as crianças refletirem sobre o que vivenciam. Ao crescerem cercadas por expressões artísticas, elas aprendem a lidar com emoções complexas e a questionar o mundo ao redor. Assim, a experiência se torna parte fundamental do desenvolvimento humano.

Crianças assistindo à apresentação Biblioteca das Poções Perdidas do grupo The Jugglers no Centro Cultural de Bauru — Foto: Guilherme Massuchini

Além disso, o psicólogo menciona a diferença entre indivíduos que crescem com acesso pleno à arte e cultura e indivíduos que não. “Uma pessoa que cresce cercada por expressões artísticas costuma desenvolver um olhar mais sensível às nuances da vida, tem mais recursos internos para lidar com o inesperado, mais capacidade de se expressar e de compreender sentimentos próprios e alheios. Já alguém que não teve essas oportunidades pode acabar se tornando mais rígido no pensar, com menos espaço para a dúvida, para a imaginação e para o afeto — não por escolha, mas por falta de estímulo”, afirma Kleiton.

Ainda que o impacto social e formativo das apresentações seja evidente, ele se limita na precariedade das condições de trabalho dos artistas. Sem apoio financeiro contínuo, as companhias independentes enfrentam dificuldades para se aprofundar artisticamente, ensaiar com regularidade, criar novos figurinos ou investir em cenografia e direção. O próprio espetáculo apresentado pelo The Jugglers, embora bem recebido pelo público infantil, foi montado com recursos reaproveitados de trabalhos anteriores, reflexo de um cenário onde o esforço criativo se equilibra com a falta de estrutura.

“Se a gente tivesse muito mais tempo de ensaio recebendo, eu posso ter certeza que esse espetáculo que você viu aqui [na 22ª Feira do Livro de Bauru] ia ser completamente maior”, afirmou Pedro. Ele explica que, sem subsídio, a companhia depende de soluções improvisadas. “O ideal seria que, para cada trabalho novo, o figurino e a cenografia fossem específicos e novos para aquilo”, completa. Essa limitação atinge diretamente a qualidade do que é apresentado ao público e impede que a experiência artística alcance todo seu potencial. A partir desse incentivo financeiro e a elaboração de novas ideias para os espetáculos, novos empregos também são gerados, movimentando o setor cultural.

Com o incentivo adequado e apoio do Estado, companhias teatrais poderão garantir a estrutura artística necessária para desenvolver trabalhos mais consistentes e de maior alcance, cumprindo assim o papel social que a arte deve exercer. “Quando levamos a arte para espaços acessíveis, despertamos o interesse, criamos vínculos e, muitas vezes, proporcionamos o primeiro contato de alguém com uma experiência artística. Esse tipo de vivência é transformadora e essencial para formar espectadores críticos, sensíveis e participativos”, conclui Tatiane.

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