Nos gramados do centro-oeste paulista, o futebol se mede em histórias que atravessam gerações e resistem ao tempo

Por Gabriel Diaz e Marco Aurélio Vieira

No alvorecer do século XX, enquanto as locomotivas a vapor cortavam os cafezais e seguiam pela malha ferroviária do estado de São Paulo, havia outro fenômeno que desembarcava nos trilhos paulistas: o futebol. O esporte foi abraçado com entusiasmo e otimismo pela população ávida de novas experiências por aquilo que surgia como modernidade e inovação cultural.

A relação entre a linha férrea e o futebol na região centro-oeste paulista não é mera coincidência, e sim um matrimônio entre progresso e identidade. A partir do contato local com o esporte, os rumos futebolísticos se dispersaram fora dos holofotes dos grandes centros, desencadeando o surgimento do futebol interiorano, sustentado por torcedores que veem no futebol muito mais que um jogo: enxergam um pedaço de sua história. Mas, por trás dessa identificação desportiva, a realidade demonstra uma visível desigualdade estrutural. Enquanto os grandes clubes da capital negociam contratos de transmissão que ultrapassam a casa dos milhões, os clubes do interior enfrentam desafios operacionais que revelam o abismo entre os dois mundos.

A história dos clubes interioranos carrega nas costas não apenas a esperança de vitórias, mas o peso de representar municípios inteiros. A cidade de Bauru foi pioneira e conduziu o terreno fértil para a prosperidade regional do esporte. O Esporte Clube Noroeste, fundado em 1910, assume o entroncamento ferroviário no seu próprio nome em homenagem à companhia ferroviária Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e conduz o desenvolvimento econômico da região dentro do futebol, sendo, atualmente, o único representante da região na primeira divisão paulista.

A Torcida Sangue Rubro, uma extensão do clube, organizada por torcedores aos arredores do estádio Alfredo de Castilho, representa um dos pilares fundamentais desse sucesso, transformando a paixão em ação concreta. “Nós fazemos questão de manter viva essa memória, ensinando aos mais novos o valor inestimável do nosso Norusca”, comenta José Roberto Pavanello, diretor de patrimônio da associação.

José Roberto Pavanello, ex-presidente e atual diretor de patrimônio do G.R.E.S.C Torcida Sangue Rubro, na sede da associação (Foto: Gabriel Diaz)

Além de mobilizarem pessoas, as torcidas organizadas desempenham um papel significativo na comunidade futebolística, abrangendo tanto contribuições sociais quanto desafios na manutenção da ordem e da legalidade. O diretor destaca o trabalho social realizado pelo seu grupo, como o fornecimento de sopa e comida para pessoas necessitadas na cidade.

Enquanto isso, no lado vizinho, a realidade se mostra num núcleo totalmente oposto. O Marília Atlético Clube, clube de Marília fundado em 1942, carrega um fardo histórico de crises e suspensões – chegando a encerrar suas atividades entre 1954 e 1969 ecoando a ausência de conquistas relevantes. Alguns fatores que repercutem os obstáculos para o sucesso mariliense são a competitividade dentro do cenário formativo de jovens talentos e a dificuldade de manter um elenco de alto nível.

Marcus Vinícius Faria, coordenador das categorias de base do Marília, relata que o panorama atual impede que jogadores criem raízes fortes o suficiente para evitar o assédio de grandes centros e explica que é natural que os grandes clubes invistam na base desses times para depois contratá-los para si. “Hoje, os atletas estão muito escassos e a concorrência está muito desleal em termos financeiros. O futebol funciona como um ecossistema de sobrevivência interligado, onde os clubes grandes e pequenos dependem uns dos outros para manter o esporte vivo”, afirma o coordenador.

Além desse empecilho, o gerenciamento financeiro é um dos maiores obstáculos a ser enfrentado para a sobrevivência de uma equipe e a insegurança monetária afeta diretamente os torcedores que ficam receosos quanto à permanência e à autossuficiência dos clubes. O Esporte Clube XV de Novembro, clube de Jaú fundado em 1924, exemplifica a questão diante dos diversos escândalos de corrupção e desvio de dinheiro durante boa parte de sua trajetória, resultando em anos de baixa para o time. 

Estádio Zezinho Magalhães, mais conhecido como Jauzão para os quinzeanos, em Jaú (Foto: Asmilcamisas)

“As gestões também eram muito corruptas e isso foi nos prejudicando muito. Até 2022, colocávamos 4 mil pessoas por jogo. Hoje, para colocar mil pessoas, é um sacrifício enorme”, diz Gabriel Alves, membro da Galunáticos, torcida organizada do clube. Na visão dele, a ineficiência da gestão é um dos principais motivos que desmotivam o torcedor a continuar engajado em seu amor pela equipe.

Essas situações geram uma mistura de sentimentos para todos os envolvidos com os times. São diversas altas e baixas de campeonatos, entradas e saídas de investimento em jogadores que criam uma insegurança para a torcida quanto aos rumos que os times menores do estado possam tomar.

Nesse cenário de paixão obstinada, são os gestos simples que incendeiam a alma esportiva e mantêm a história dos clubes viva. Estando longe de casa, João Pedro Marcato, torcedor mariliense, decidiu transformar sua saudade em ação através de publicações numa página dedicada ao clube no Instagram (@brabotigre1942). O perfil funciona como um museu digital com fotos de camisas, ingressos e súmulas de jogos antigos e organiza a memória de toda uma comunidade.

Súmula de jogo e camisa principal do Marília em 1995, peças históricas do arquivo digital da página @brabotigre1942 (Foto: Arquivo pessoal de João Pedro Marcato)

“Estamos passando por uma transição de gerações. Enquanto na minha juventude pude acompanhar o Marília na Série B, vivenciando sua melhor fase, os jovens de hoje não tiveram esse mesmo contato, o que naturalmente afeta a sua conexão com o time”, relata João. Ele sentia a necessidade de resgatar o sentimento do clube e transmiti-lo aos jovens que não viveram as épocas de ouro do Marília.

Apesar das adversidades, fica claro que o futebol no interior possui forças suficientes para se manter vivo e relevante, pois ainda existem torcedores fanáticos, jogadores habilidosos e a vontade inabalável de vencer. O futebol interiorano ultrapassa as linhas do esporte, mostrando que é a cultura que mantém o espírito de pertencimento de cada um, em cada cidade, vivo.

Registros e fotografias de momentos históricos do Noroeste estampados na parede da sede da associação G.R.E.S.C Torcida Sangue Rubro (Foto: Gabriel Diaz)

Estando em momentos de auge ou crises, as torcidas organizadas ainda se movem para representarem seu amor em cada jogo. Páginas em redes sociais são criadas para reviverem partidas históricas e pessoas se mobilizam da maneira que podem, tudo pela oportunidade de ver seus times do coração novamente nos tempos de glória que outrora tiveram.

Enquanto houver torcedores entoando seus hinos nas arquibancadas, clássicos inesquecíveis para serem contados com aquela rivalidade fervorosa que conecta o jogador com o torcedor, o futebol na região 014 demonstra sua ambição em continuar seguindo forte, de forma que esteja preparado para unir e transformar gerações futuras em parte viva dessa memória que é, e sempre será, conjunto identitário da região.

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