Ao longo das décadas, os cinemas de rua foram mais do que simples espaços de exibição; eles marcaram gerações, moldaram a cultura urbana, contribuíram para a resistência da arte e resistiram às mudanças do tempo.

Por Stephanie Cardoso

Em meio ao concreto, ao barulho das avenidas e à constante transformação da maior metrópole do país, os cinemas de rua em São Paulo resistem. Mais do que simples espaços de exibição, essas salas se tornaram refúgios culturais, onde tradição, arte e convivência se encontram. Em tempos de consumo digital e plataformas de streaming, o cinema de rua representa uma experiência que ainda conquista paulistanos de todas as idades.

Localizados em bairros centrais e tradicionais como Consolação, República e Bela Vista, esses cinemas desafiam o domínio dos multiplex e resgatam o espírito comunitário das antigas salas de exibição. Com programações que valorizam o cinema independente, nacional e alternativo, os cinemas de rua têm sido palco de debates, encontros e descobertas, fortalecendo uma rede cultural que vai além da tela.

A permanência desses espaços, no entanto, não é apenas nostálgica: ela é estratégica. Num cenário onde o setor audiovisual nacional enfrenta desafios de distribuição e visibilidade, os cinemas de rua tornam-se aliados importantes na formação de público e na circulação de filmes fora do circuito comercial. E é exatamente por isso que, mais do que resistir, eles se reinventam.

Uma História Marcada pela Cultura e Transformação

O cinema de rua paulistano começou a tomar forma nas décadas de 1920 e 1930, acompanhando o crescimento urbano e a efervescência cultural da cidade. Surgiram salas emblemáticas que ofereciam programações variadas e acessíveis, transformando-se em pontos de encontro nos bairros e marcos da vida social da cidade. O cinema, mais do que uma forma de lazer, passava a ser um espaço de formação cultural, convivência e pertencimento comunitário.

Durante os anos 1960 e 1970, em meio ao movimento do Cinema Novo e à cena marginal da Boca do Lixo, esses espaços ganharam um novo papel: o de resistência e reflexão crítica. O Cine Bijou, o Cine Belas Artes e tantos outros exibiam filmes políticos, ousados e autorais, atraindo estudantes, artistas e intelectuais. O público procurava mais do que filmes — buscava diálogo, identidade e contracultura em um Brasil sob censura e repressão.

Com o avanço dos cinemas em shoppings e do home vídeo, muitos cinemas de rua foram fechados. Um exemplo emblemático foi o fechamento temporário do Cine Belas Artes em 2011. Durante esse período, o entorno da Consolação sofreu degradação urbana. “Aquele pedaço ali da rua ficou mais perigoso. Quando o Belas Artes reabriu, outras lojas reabriram em volta”, lembra Juliana Brito, CEO do Grupo Belas Artes. Para ela, os cinemas de rua têm um papel fundamental na vitalidade do bairro: “Eles trazem vida, movimentam o comércio local, atraem padarias, lojinhas, cafés. A cidade se reorganiza ao redor desses espaços”.

Selo de Valor Cultural cedido pela prefeitura para o Cine Belas Artes em 2011. Imagem: Site Cine Belas Artes.

Essa influência urbana não diminui a importância cultural. Juliana enfatiza que o cinema de rua representa um acesso mais democrático à cultura. “A gente trabalha com uma curadoria muito diversa, e isso atrai um público também diverso. São filmes de diferentes países, temas e estilos, que muitas vezes não chegam ao circuito comercial”, afirma.

Após a pandemia, o Belas Artes se reinventou como centro cultural, ampliando sua atuação com projetos como o “Sonoriza”, que une exibição de filmes com apresentações musicais, e as tradicionais sessões do “Noitão”. “Percebemos uma necessidade muito forte das pessoas se reencontrarem. Criamos um ponto de encontro na cidade”, diz Juliana.

Apesar do papel estratégico desses cinemas, os desafios de gestão permanecem. Juliana destaca a dificuldade de manter o funcionamento diante de custos elevados e falta de incentivos: “O cinema de rua, por exemplo, não tem isenção de IPTU como os teatros. É algo que o poder público precisa rever.” Ainda assim, ela acredita no futuro desses espaços. “Enquanto houver gente apaixonada por cinema, diversidade e cultura, o cinema de rua vai continuar existindo”.

Cinema de Rua e o Mercado Nacional Audiovisual

Ao dar espaço para o cinema nacional, os cinemas de rua se tornam agentes importantes no fortalecimento da cadeia audiovisual brasileira. Enquanto as grandes redes priorizam blockbusters internacionais, essas salas apostam em produções autorais e independentes, muitas vezes realizadas com poucos recursos.

“Não é só sobre apoiar o cinema nacional. É sobre apoiar o cinema independente, que pode ser nacional ou de outros países. É isso que falta espaço nas grandes redes”, explica Juliana Brito. “No Belas Artes, por exemplo, a programação chega a exibir até 15 filmes diferentes simultaneamente, com um olhar curatorial que prioriza diversidade estética e narrativa”, finaliza.

Juliana Brito, CEO do Grupo Belas Artes. Foto: Grupo Belas Artes.

Ela destaca ainda a importância da parceria entre as salas independentes e os produtores nacionais. “A produção nacional vai muito além das grandes comédias. São diversos filmes produzidos por ano. Filmes que precisam encontrar seu caminho nas salas de cinema, né? Existe até uma exigência disso diante da ANCINE, que é quem faz o fomento para as produções. Então, os cinemas de rua acabam sendo os parceiros para dar vazão para esses filmes”.

Esses cinemas funcionam também como trampolins para novos cineastas. Com mostras, festivais e sessões comentadas, os espaços se tornam vitrines para talentos emergentes. A descentralização do acesso ao cinema é um fator fundamental nesse contexto: o público encontra filmes que dificilmente chegariam aos circuitos comerciais ou às plataformas de streaming.

Streaming: Desafio ou Aliado?

O avanço dos serviços de streaming impactou fortemente o modo como o público consome audiovisual. A praticidade de assistir a qualquer filme, a qualquer hora, tornou-se atrativa — e uma ameaça para salas tradicionais. Ainda assim, os cinemas de rua souberam responder ao desafio, oferecendo aquilo que o streaming não entrega: a experiência coletiva da arte. Para Juliana Brito, o verdadeiro desafio dos cinemas de rua não está no streaming, mas nas grandes redes. “A diferença está na experiência. Aqui no Belas Artes, por exemplo, temos regras claras. Depois que o filme começa, ninguém mais entra. A sala é escura, silenciosa, sem distrações. É cinema de verdade.”

Streaming “À La Carte” pertencente ao
Grupo Belas Artes. Imagem: Aplicativo “À La Carte”

Sessões com debates, apresentações ao vivo e curadorias temáticas são atrativos adicionais. O projeto “Belas Artes à La Carte”, criado durante a pandemia, levou parte dessa experiência para o ambiente digital, mas sem abrir mão da identidade da sala física.

Os cinemas de rua também oferecem filmes que não estão disponíveis nas plataformas digitais. O contato com obras raras, clássicos restaurados e estreias alternativas atrai um público fiel e engajado, que valoriza a imersão e o encontro presencial.

Programações Especiais Mantém o Encanto

O grande diferencial dos cinemas de rua são suas programações especiais. Mostras temáticas, ciclos de diretores, festivais de cinema independente e exibições de clássicos restaurados garantem uma oferta cultural diversa e educativa. “O Noitão, por exemplo, é um projeto que criamos para apresentar filmes que as pessoas nem imaginam que poderiam gostar. A ideia é abrir caminhos e formar público”, afirma Juliana.

O tema do próximo noitão feito pelo Cine Belas Artes é “Extermínio”.
Imagem: Divulgação.

Cinemas como o Marquise, na Avenida Paulista, e o Olido, no Centro, mantém calendário fixo de atividades voltadas para públicos variados, incluindo sessões gratuitas e parcerias com escolas e universidades. Essa integração com o ambiente acadêmico e social fortalece o papel educativo desses espaços.

As sessões especiais também atuam como ferramenta de preservação da história do cinema. Ao exibir obras de diferentes épocas e estilos, esses eventos permitem ao público vivenciar a trajetória da sétima arte com profundidade.

Mesmo em tempos difíceis para a cultura, os cinemas de rua mostram que é possível renovar o interesse do público com criatividade, acessibilidade e paixão pelo cinema. Mais do que resistência, eles são a prova viva de que o cinema ainda pulsa — e pulsa nas ruas de São Paulo.

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