As dívidas, o vazio emocional e a sensação de impotência diante da compulsão por comprar são sintomas de um mal moderno que atinge todas as classes sociais.

Por Gabrielle Camili Dolce

Vivemos em uma sociedade onde consumir deixou de ser apenas uma questão de necessidade. A cada rolagem de tela, um novo desejo. A cada clique, um novo produto imperdível. Mas quem realmente lucra com essa avalanche de estímulos e quem paga o preço?

A professora de Sociologia Rafaela Rabesco aprofunda a discussão ao explicar que a diferença entre consumo e consumismo está na motivação. “Enquanto o consumo atende necessidades básicas como alimentação, saúde e educação, o consumismo é um mecanismo da sociedade capitalista, nascido com a Revolução Industrial, voltado à produção e ao lucro”, afirma. Nesse modelo, os desejos são alargados, e o que antes era necessidade torna-se um padrão social, sustentado por estratégias como a propaganda e marketing.

 Segundo Rafaela, o consumismo atende aos interesses de quem detém os meios de produção, ou seja, o grande capital. São essas empresas que lucram com a constante indução ao consumo. Por outro lado, quem mais sofre são as camadas da população com menor poder aquisitivo. “As classes C, D e E são as mais afetadas. Com o avanço do crédito e a expansão das ofertas, muitas pessoas acabam entrando em dívidas impagáveis, tornando-se superendividadas”, explica.

 Essa desigualdade não é só econômica, mas também simbólica. Embora o desejo por certos produtos seja compartilhado por diferentes classes sociais, já que todos estão expostos às mesmas referências culturais, nem todos têm as mesmas possibilidades de acesso. “Hoje, uma criança rica e uma criança pobre têm os mesmos desejos de consumo. Mas só uma delas pode realizá-los. Isso gera frustração, sofrimento emocional e exclusão social”, diz Rafaela.

Com o avanço das redes sociais, essa pressão ganhou novas formas. Influenciadores e criadores de conteúdo passaram a apresentar produtos como parte de suas rotinas, diluindo a fronteira entre vida real e propaganda. “Não é mais só o comercial na TV. Agora, a publicidade se mistura ao cotidiano, muitas vezes sem que o consumidor perceba que está sendo influenciado”, observa.

Essa naturalização do consumo gera um efeito perigoso: pessoas passam a desejar um estilo de vida fabricado, com base em aparências e um padrão inalcançável. “As redes sociais constroem esse modo de vida idealizado, onde tudo é bonito, limpo, novo, e onde consumir é sinônimo de felicidade. Quem não consegue acompanhar, sente-se inferiorizado”, pontua.

 Apesar do cenário preocupante, Rafaela acredita que há caminhos para ressignificar nossa relação com o consumo. Ela aponta pensadores indígenas como Ailton Krenak como vozes que oferecem alternativas concretas. “Eles nos lembram que a vida não é apenas utilitária e que a natureza não deve ser vista como recurso, mas como parte da nossa existência. Se não repensarmos o modelo atual, talvez não tenhamos nem futuro”, alerta.

Para ela, embora a tarefa de reverter o consumismo não seja fácil, é preciso acreditar na possibilidade de mudança. “Estamos fazendo a história agora. Precisamos de políticas públicas, educação crítica e consciência coletiva para quebrar esse ciclo. Porque o problema não é só social ou financeiro, é ambiental, emocional e existencial.” conclui.

Rafaela Rabesco, mestra em Sociologia pela UFSCar. Foto: Arquivo pessoal

Um sistema que se alimenta de desejos

Para a economista Tatiana Massaroli de Melo, o consumismo no Brasil se espelha em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, mas com uma característica perversa: o consumo é direcionado ao mercado interno, não como estímulo à produção, mas como sustentação de uma lógica que favorece o lucro empresarial e afeta o bolso do consumidor. “O consumidor é cada vez mais afetado, pois compromete grande parte da renda com bens supérfluos, o que tem levado a altos níveis de endividamento”, explica.

O atual modelo econômico, segundo Tatiana, depende do consumo constante, impulsionado por estratégias sofisticadas, como o uso de inteligência artificial para personalizar anúncios e intensificar a criação de necessidades. “O uso da inteligência artificial para o estímulo do consumo e criação de necessidades de consumo tem intensificado o problema do consumo exacerbado”, completa.

A linguagem que seduz

Consumir deixou de ser apenas uma necessidade, tornou-se linguagem, identidade e pertencimento. Como explica Lucilene dos Santos Gonzales, especialista em comunicação e consumo, vivemos em um cenário em que os objetos não apenas servem para algo, mas significam algo. A publicidade moderna não vende produtos, mas sentidos, valores e estilos de vida. “Os conceitos de necessidade, utilidade e função são, na verdade, construções ideológicas que camuflam uma lógica de consumo baseada na arbitrariedade cultural”, aponta.

Nesse contexto, a sociedade é treinada para desejar continuamente. As marcas operam como narradoras de histórias que dizem quem somos ou quem poderíamos ser se comprarmos determinado item. E isso ocorre porque os bens, como destaca a professora, funcionam como “vias simbólicas” que constroem vínculos, classificam diferenças e organizam os mapas da vida cotidiana.

O sistema ensina que consumir é mais do que ter algo, é ser visto e aceito. E o que parecia um simples ato de compra, torna-se um ritual social profundamente enraizado nas lógicas da cultura contemporânea.

 Vazio que se preenche com compras

 A psicóloga Marisol Montero analisa o consumismo sob a lente emocional. Para ela, o ato de comprar muitas vezes tenta preencher carências emocionais profundas, ligadas à autoestima, sensação de pertencimento e reconhecimento. “Muitas pessoas consomem para ativar o centro de recompensa do cérebro, como forma de compensar frustrações do dia a dia”, afirma.

Para Marisol, o que leva as pessoas ao consumismo desequilibrado é a necessidade intrínseca de obter prazer e se sentir recompensado.  “Temos que enfrentar situações da realidade desafiadoras e frustrantes que não funcionam como gostaríamos e aí temos que aceitar um monte de coisas que talvez não quiséssemos então buscamos algo que nos proporcione algum prazer instantâneo, alguma recompensa instantânea”, aponta.

Na visão da psicóloga a globalização e o fácil acesso a informações são fatores impactantes em hábitos consumistas. “Quanto mais a sociedade é globalizada, quanto mais sabemos de coisas, quanto mais acesso à possibilidade de satisfação, de prazer, obviamente, iremos querer possuir algo”, completa.

O consumismo está atrelado também ao sentimento de acolhimento. Segundo a especialista, “durante o nosso desenvolvimento, muitas vezes, iremos lidar com situações de perda, ou situações em que não nos sentimos bem acolhidos, não se sentiu importante, naquele momento, para alguém. Então, se eu tiver aquela roupa, se eu tiver aquela marca, se eu tiver aquele carro, se eu tiver aquela casa, quem sabe eu vou preencher essa falta”. Porém, ela aponta que esse sentimento é momentâneo e desencadeia um ciclo vicioso de tentar preencher essa ausência.

Marisol aponta também que o consumismo está relacionado com o sentimento de pertencer a determinado grupo na sociedade. “Se eu tenho um celular de marca X e o grupo de pessoas que eu estou interessada em estar por perto tem a marca O, quem sabe eu possa sentir que eu pertenço àquele grupo se possuir a marca O também?  Então, muitas vezes eu vou priorizar uma coisa, vou consumir uma coisa, não por uma necessidade própria, mas para fazer parte de um grupo que eu gostaria de ser parte”, completa.


Desenho exposto na rua criticando o consumismo. Foto: Rede Sociais





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