Quando se trata do suicídio, a dor dos enlutados acaba sendo deixada de lado; entenda a culpa, a dúvida e a posvenção de quem sobrevive à perda com depoimentos de duas mães
Por Isabela Marquesi
A psicóloga Elis Regina Cornejo explica que posvenção é o termo que designa o conjunto de atividades de cuidado direcionados a pessoas impactadas por um suicídio, com o objetivo de minimizar os efeitos traumáticos, evitar complicações do luto e diminuir o risco de comportamento suicida.
No caso de luto pelo suicídio, destacam-se sentimentos como choque, culpa, vergonha, raiva, abandono e rejeição. “Geralmente os enlutados se veem rodeados de porquês: ‘por que ele fez isso? Por que não pediu ajuda?’”, a especialista exemplifica. “Outra questão presente é o ‘e se’: ‘e se eu tivesse feito diferente? E se eu tivesse falado ou deixado de falar algo?’”.
Elis Regina pontua que “existe uma vida antes e uma depois da perda de alguém”. No contexto da perda pelo suicídio, cita mudanças como a reformulação de vínculos afetivos, mudança de endereço ou espaço interno de uma residência – em casos em que a morte ocorreu na própria casa –, profunda revisão de valores morais e objetivos de vida, maior preocupação ou negligência com a própria saúde, medo que outra morte aconteça e alteração na percepção do tempo. Ela ressalta, contudo, a singularidade do luto: é um processo individual e intrínseco a fatores internos e externos ao indivíduo que lida com a perda.
Esse tipo de luto pode ser denominado como “luto não reconhecido”, em que a pessoa enlutada é impedida de falar abertamente sobre sua perda, uma vez que o processo não é socialmente reconhecido ou suportado.
Elis Regina explica que “o estigma e julgamento que a sociedade confere à pessoa que morre por suicídio é transmitido aos seus familiares”, sendo muito comuns narrativas que definem o suicídio como “covardia ou falta de Deus”, transformando o tópico em tabu. Ela aponta que o preconceito começa com a fala “cometer suicídio”, uma vez que o verbo “cometer” está associado à realização de um crime.
“Em geral, esse costuma ser um processo atravessado por muito isolamento e o enlutado pode ter dificuldade de encontrar pessoas e espaços para compartilhar seus sentimentos de maneira segura e acolhedora”. Ela destaca, além da busca por ajuda profissional, grupos de apoio como um recurso para lidar com os sentimentos do luto.
Em 2019, a psicóloga desenvolveu um site para mapear os serviços de posvenção ofertados no Brasil, a fim de facilitar que os enlutados encontrem serviços especializados de suporte.

Site Posvenção do Suicídio Fonte: https://posvencaodosuicidio.com.br/
No site, é possível encontrar uma lista de grupos de apoio, que oferecem grande conforto ao enlutado através da partilha de emoções e experiências: “neles é possível construir um laço social a partir da experiência de perda”, informa.
Por favor, não me esqueça
“Sobrevivente é o termo […] para se referir a todas as pessoas que perderam alguém por suicídio, porque, pelos estudos, a pessoa que perde alguém […] por suicídio passa a sobreviver”, explica Terezinha Maximo, coordenadora do grupo de apoio No M’oblidis.
O grupo No M’oblidis surgiu de um blog em que a mulher relatava suas experiências com o luto após a perda de sua filha. Com a grande visibilidade alcançada pelo blog, juntamente à carência de grupos de apoio próximos a São Bernardo do Campo, onde mora, Terezinha tomou a iniciativa de criar um grupo para que sobreviventes compartilhem suas vivências.

Site No M’oblidis Fonte: https://nomoblidis.com.br/
Com o falecimento de Marina, de 19 anos, Terezinha também perdeu o sol de sua vida: “a Marina era como se fosse, assim, o sol, sabe? Uma pessoa que chegava e iluminava”, relembra, sorrindo.
Ela conta com carinho as vezes em que Marina aparecia, abria os braços e as pernas, e pedia um abraço. Sempre engraçada, sorridente e amiga de todos, não havia silêncio quando Marina estava em casa – ela contaminava com a voz, riso alto, músicas que tocava no violão.

Marina e seu violão Foto: arquivo pessoal
Terezinha diz que a jovem, determinada e sempre demonstrando sua resiliência, disfarçava muito bem seus sentimentos negativos.
Antes de Marina buscar ajuda psicológica, ela acreditava que seu mau humor era típico da adolescência ou de intensas TPM’s. Terezinha não fazia ideia de que a depressão poderia se manifestar da forma com que se manifestou em sua filha.
Ela saía com amigos, estudava, namorava, tinha seus planos e ambições, e por isso foi surpreendente para sua mãe quando a jovem foi diagnosticada com depressão, ansiedade e fobia social.
Marina falava abertamente sobre o desejo de morte, o que fez com que a família fizesse o possível para evitar que o suicídio ocorresse. Porém, quando convenceu os pais de que se sentia melhor, tirou a própria vida quando pôde estar sozinha.
Terezinha reconhece que essa é uma forma com que pessoas com intenção de realizar o suicídio despistam a atenção dos familiares – “só que fazia parte de um plano, entendeu? Então eu me senti muito culpada por ter acreditado nela”.
A culpa é um sentimento muito marcante no luto pelo suicídio: “fica aquela ‘o que que eu fiz de errado? Por que que aconteceu na minha família? Por que que ela fez isso? Eu falei alguma coisa? Deixei de falar? Eu não amei o suficiente?’ É tanta culpa que você vai buscando que a gente… eu até falo que eu largo uma culpa e pego outra”, confessa. Ela ressalta a culpa associada à figura materna: “por que eu mudei de psiquiatra? Por que eu não deixei internada? E assim vai, você acaba se culpando até por tempo de amamentação”.
Terezinha declara que “no suicídio, a questão de as pessoas acreditarem que foi uma escolha faz com que também pese no luto. Então, se torna um luto diferenciado dos outros”. Ela esclarece que um indivíduo precisa de discernimento para escolher, e a pessoa que morre por suicídio não está com o discernimento correto, portanto não pode fazer uma escolha. “A gente não escolheu estar nesse grupo”, diz.
A sobrevivente também enfrentou o comportamento preconceituoso de outras pessoas em relação a sua perda – julgamento, comentários inconvenientes e comparação. Em uma conversa com uma mãe que perdeu sua filha por causa de câncer, a mulher disse a Terezinha que “minha filha tinha câncer. Foi Deus que quis, a sua quis morrer”.
Muitas vezes, sente-se silenciada pelas pessoas ao falar sobre sua filha: “por exemplo, no Natal, [alguém] fez um doce que minha avó gostava, aí todo mundo fala ‘o doce da vovó Irene!’, mas se eu fizer um doce que a Marina gostava e falar ‘o doce que a Marina gostava’ todo mundo não comenta nada, come calado”.
Ela lamenta o silêncio em torno do nome de sua filha, mas insiste em manter a memória de Marina, e tudo que fez durante sua vida, viva.
Em março deste ano, a morte de Marina completou oito anos. Terezinha diz que o tempo é um “amigo e um inimigo”, uma vez que a passagem do tempo é vista como o fim da dor, “mas, da mesma forma, você fica assim, ‘poxa, mas se o tempo passar, vai me distanciar? Será que eu vou esquecer a voz dela? Será que eu vou esquecer o cheiro dela?’”.
Ela conta que, em oito anos, sentiu a dor se acomodar e a tristeza, antes presente a todo momento, intensificar-se pontualmente, como quando descreveu sua filha.
Hoje, tudo que Terezinha faz pelo luto tem um pouco de Marina. O nome do seu grupo de apoio, No M’oblidis, vem de “si us plau, no m’oblidis”, frase em catalão exibida no perfil do Whatsapp de Marina e que significa “por favor, não me esqueça”.
Sorrindo, Terezinha diz que “a Marina é a primeira lembrança do dia e a última […] Ela nunca vai ser esquecida”.

Marina com seus pais, Terezinha e Joseval Foto: arquivo pessoal
A chegada é só o começo
“A chegada é só o começo” eram os dizeres escritos em um cartaz que Bruno Simmer carregava para receber sua mãe, Viviane, na linha de chegada de uma maratona. Hoje, a frase nomeia o grupo de apoio que Viviane criou e coordena após a morte de seu filho.

Perfil do grupo A Chegada é só o Começo Fonte: @achegadaesoocomeco
Bruno era um menino inteligente, curioso e artístico, que carregava consigo grande empatia e acolhimento. Viviane conta que, em uma homenagem em sua faculdade, “várias pessoas vieram falar comigo assim ‘o Bruno me ensinou a andar de bicicleta’, ‘o Bruno me ensinou a fazer um presente exclusivo para minha namorada’”.
Ele lutava pela causa animal, resgatava animais de rua e militava pela resistência. Não se conformava com as diferenças do mundo: defendia questões de gênero, sexualidade e igualdade.

Bruno em um encontro da frente Filosofia Antifascista Foto: arquivo pessoal
O jovem fazia acompanhamento psicológico com profissionais, e parecia estar em um processo de melhora quando faleceu na véspera de seu aniversário de 23 anos, em 2018.
O sentimento de fracasso e a sensação de “o que eu poderia ter feito?” abalaram Viviane, que, antes de compreender o suicídio como um fenômeno de causa multifatorial, sentia-se totalmente responsabilizada e rodeada de questionamentos: “em vários casos, eu já venho a falar ‘o que aconteceu? Por que ele fez isso?’ […] Eu não tenho a resposta, infelizmente a resposta está com ele, foi com ele”.
A culpa presente no luto pelo suicídio se intensificou com o estigma social. Viviane denuncia que “eu falar que minha mãe sofreu um AVC é mais aceitável para todos, mas o suicídio ainda é realmente um assunto que permeia uma discussão, conversas baixas”.
Como enlutada, Viviane diz que “a gente fica num lugar que é, se você está bem, as pessoas te criticam e julgam […] e se você está mal, também”. Segundo ela, estar triste culmina em comentários como “mas como assim você ainda sente isso?”, e estar feliz resulta em “olha como ela está bem, nem parece que perdeu um filho”.
Ela comenta sobre o Dia das Mães deste ano, em que a ausência de seu filho e de sua mãe fizeram com que ela ficasse mais recolhida em seus sentimentos. “Aí algumas pessoas [dizem] ‘mas como assim você ainda sente?’ E aí eu falo ‘você já perdeu sua mãe ou seu filho? Ah, não? Então no dia que acontecer você vai me entender’”.
Muitos enlutados também são vítimas de pena, algo que aborrece Viviane: “eu não gosto que ninguém me trate com pena. Assim, eu sou uma pessoa que me sinto capaz de falar, de produzir, de trabalhar. Mas tem os meus momentos que eu preciso me recolher, eu preciso dos meus momentos de descanso”.
Para sobreviventes, uma ocasião que desperta sentimentos negativos é o mês do Setembro Amarelo, direcionado à prevenção ao suicídio. Viviane aponta que muitas campanhas abordam o tema de maneira equivocada, fortalecendo o preconceito em torno do suicídio e de seu processo de luto. A sobrevivente diz que busca a empatia: “eu nem falo para ninguém tentar se colocar no lugar da gente, porque é um lugar que eu não gostaria que ninguém estivesse”.
Após a morte de Bruno, com a visibilidade de sua rotina de volta ao esporte concomitante ao luto por seu filho, Viviane tomou a iniciativa de criar o grupo para acolher pessoas no processo de posvenção.
“A gente nem fala mais seja ‘bem-vindo’ com quem está chegando, a gente já fala ‘seja bem-acolhido’, porque ninguém queria que você viesse, a verdade é essa”, ela compartilha. “É um trabalho que eu queria não precisar fazer, mas eu me sinto honrada”. Para ela, acolher outros enlutados não apenas também a ajuda, mas honra o legado de amor deixado por seu filho.
Hoje, a lembrança de Bruno é de resistência e de grande generosidade: “eu espero que ele esteja vendo o que que está acontecendo no mundo, na sociedade, porque o que ele desejava eu tenho visto acontecer com os jovens da idade que ele tem, de poder ser quem é”.

Bruno recebe Viviane com um cartaz na linha de chegada Foto: arquivo pessoal
Segundo a psicóloga Elis Regina, o luto em si é um processo de transformação que exige compreensão e respeito. A forma correta de apoiar um sobrevivente é oferecer um espaço seguro para que o enlutado possa expressar seu sofrimento, se assim desejar, apoiar na busca por serviços especializados de posvenção, bem como em atividades cotidianas, evitar oferecer frases prontas e “clichês” e conter o comportamento curioso.
