Com a volta da produção de novos filmes para a saga Jogos Vorazes, a cultura distópica reergue sua popularidade entre o público mais jovem. Entenda o que leva esse gênero ser um fenômeno para o público teen
Por Júlia Santiago

Nos anos de 2010 era impossível não se esbarrar com filmes e livros protagonizados por jovens adultos que precisavam encarar dezenas de desafios para sobreviver. Tais filmes, em geral, são caracterizados como distopias.

Distopia, em seu significado mais literal, é uma realidade ou sociedade imaginária ambientada muitas vezes em um sistema opressor. Na literatura e no cinema, essa palavra se torna um gênero encarregado de mostrar sociedades pautadas no autoritarismo e na falta de liberdade.

Porém, para o Professor de Filosofia da UNESP (Universidade Estadual Paulista), Eli Rodrigues, o conceito de distopia não é algo totalmente imaginário, sendo que autores deste tipo de gênero acabam se inspirando no mundo real.

“Por exemplo, o nazismo forneceu uma estética da distopia, da opressão do Estado sobre indivíduos, porque ele fornece um modelo de fardas e fardamento. Então, nós temos não só o estado nazista, mas todas as ditaduras recentes do século XX, que dão material para essas distopias”, afirma o professor.


Espelho da realidade

A trilogia de livros Jogos Vorazes foi uma das adaptações cinematográficas produzidas na década passada. Porém, em 2023, os fãs contaram com um novo filme ambientado no universo criado por Suzanne Collins: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes. Mesmo oito anos depois do último lançamento, o filme foi um sucesso nas bilheterias mundiais, alcançando o valor de US$320 milhões.

Em 2025 a autora lançou mais um livro para saga, intitulado Amanhecer na Colheita. Mesmo com o lançamento sendo recente, o filme sobre a obra já está em andamento, com previsão de estreia para o próximo ano.

O anúncio fez com que o gênero literário/cinematográfico voltasse a ser febre na internet. Mas por quê?

A psicóloga Cecília Salomão afirma que as produções culturais são uma forma de leitura da sociedade, que irão trazer fenômenos presentes na vida de seu público-alvo. “A literatura tem esse lugar de interpretação privilegiada de um momento histórico e, por consequência, de sujeitos envolvidos e que vivenciam esse momento”.

Cecília traça um paralelo, com base no livro, sobre a divisão social, raça e poder econômico dos personagens. A população é distribuída em 12 distritos, cada um encarregado em fornecer um material à capital, sendo que o distrito 1 é o mais próximo da mesma e o 12 mais distante: “Os distritos mais afastados da capital – que estão associados à pobreza – são distritos com pessoas cuja pele vai escurecendo. O Distrito 11, da agricultura, que é visto como um distrito pobre, é majoritariamente de pessoas pretas. O Distrito 12, que é de mineração, os personagens são descritos como tendo a pele oliva”.

Ela ainda traz tal perspectiva ao mundo real, associando a marginalização do distrito 12 com a América Latina. “Nesse cenário as pessoas que têm a pele oliva são majoritariamente, pessoas indígenas, nativos, e eles são mineradores. Então vamos pensar na associação que isso faz até com a própria América Latina, com essa segregação que se tem com o povo latino que são majoritariamente pessoas indígenas e pessoas não brancas de uma maneira geral”.


Isolamento da linguagem

Ao trazer cenários semelhantes ao contexto social presente na realidade, as produções acabam aproximando o público à obra.

Majoritariamente, o protagonismo dessas produções é atribuído a jovens, que representam a esperança de um povo corrompido pelo sistema autoritário e repressor. Para Salomão, tal fator desperta um espírito identitário e comovente aos adolescentes que consomem tal produção, uma vez que eles são vistos como a resposta para resolução dos problemas.

A adolescência, marcada por um intenso movimento de ruptura e transformação, se articula, no campo da psicanálise, com o conceito de isolamento (ou exílio) da linguagem – um momento em que as palavras perdem sua capacidade de nomear a experiência subjetiva, exigindo do sujeito um trabalho de ressignificação.

As obras distópicas, ao retratarem mundos em colapso, sistemas corrompidos e a busca por novos modos de existir, operam como espelhos desse processo. Elas oferecem aos adolescentes uma via simbólica para representar e elaborar a própria sensação de desamparo, de desencontro com os discursos sociais estabelecidos, e, ao mesmo tempo, sinalizam que, mesmo no meio do caos, é possível construir novos sentidos, vínculos e formas de habitar o mundo.

“Qualquer consumo de literatura, dessa forma, indica para um processo identificatório. E nesses livros a gente vai encontrar uma forma de guia de como lidar com as suas questões”, diz Cecília Salomão.

O uso da figura juvenil se estende para a realidade, em que muitas instituições usam de sua imagem para promover a ideia de resistência. A psicóloga acrescenta que o alto engajamento dos adolescentes nas pautas sociais é algo inerente a eles, sendo uma construção que começa desde a puberdade.

Cecília Salomão
Foto: acervo pessoal

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