Após episódio de transfobia com Kely Moraes em Recife e decisão polêmica no Reino Unido, movimentos interseccionais reforçam a urgência de um feminismo plural que inclua mulheres trans, negras e periféricas.

Por Andrés Herrera

À esquerda, Dalilah de Fátima, vice-presidenta da Associação de Mulheres Trans e Travestis de Bauru (AMTT), ao lado da presidenta da AMTT, Sophia Rivera. Foto: redes sociais

No dia 26 de maio de 2025, a personal trainer e fisiculturista Kely Moraes, de 45 anos, viveu um episódio emblemático de transfobia na academia onde trabalha, no bairro de Boa Viagem, em Recife. Embora seja uma mulher cisgênero, Kely foi impedida de usar o banheiro feminino após ser confundida com uma mulher trans. O caso, amplamente divulgado nas redes sociais, reacendeu o debate sobre a escalada do feminismo transexcludente — corrente também conhecida como “feminismo branco” ou “feminismo radical” — e seus impactos nas lutas de gênero e raça no Brasil.

Poucos dias antes, o Reino Unido decidiu excluir legalmente mulheres trans da definição de “mulher”, uma medida celebrada por ativistas feministas radicais como J.K. Rowling. A decisão internacional reverberou fortemente no cenário brasileiro, onde coletivos interseccionais alertam para o avanço dessa ideologia transfóbica e seus efeitos nocivos.

Segundo Dalilah de Fátima, vice-presidenta da Associação de Mulheres Trans e Travestis de Bauru (AMTT), o feminismo transexcludente “ganha força com o aumento do poder da extrema direita e com a importação de noções essencialistas de gênero”. Ela aponta que, no Brasil, organizações como a Associação Matria têm sistematicamente atacado os direitos de pessoas trans, promovendo um discurso que, sob o pretexto de proteger mulheres, exclui e marginaliza identidades dissidentes.

Para Dalilah, esse discurso representa um risco concreto: “Ataca mais de 40 anos de prática e teoria feminista e busca dividir uma comunidade que existe graças ao esforço coletivo de pessoas trans e mulheres lésbicas”. Ela ressalta que o feminismo transexcludente transforma uma luta por igualdade em uma ferramenta de exclusão política, isolando corpos trans do espaço público e naturalizando a violência transfóbica.

No entanto, frente a esse avanço, os coletivos interseccionais se organizam para resistir. Dalilah destaca que essa resistência ocorre por meio de articulações políticas em rede, autogestão e diálogo entre diferentes identidades: “Fortalecendo-se como organização política, podemos lutar diretamente contra perspectivas transexcludentes, promovendo espaços de deliberação coletiva e garantindo a presença de identidades dissidentes”.

A vice-presidenta da AMTT também enfatiza o papel fundamental de entidades como a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), que atualmente atua não apenas politicamente, mas também juridicamente, contestando tentativas de revogação de políticas públicas afirmativas.

O caso de Kely Moraes exemplifica, segundo Dalilah, a extensão do pânico antitrans na sociedade, onde qualquer expressão de feminilidade que não se enquadre no padrão cisgênero, branco e heterossexual é imediatamente suspeita: “Nossa existência se tornou pauta moral. O pânico antitrans gera um sentimento de impunidade cisgênera que legitima ataques contra quem é considerado transexual”.

A militante chama atenção para o contexto internacional, mencionando que decisões como a do Reino Unido funcionam como “espantalhos políticos” que instrumentalizam a identidade trans como ameaça, fragilizando ainda mais as garantias de direitos: “Quantas mulheres trans estupraram outras mulheres em banheiros em 2024? E quantos homens cisgênero fizeram isso em qualquer lugar?”, provoca.

Para Dalilah, a chave para conter o avanço do feminismo transexcludente está na promoção de um feminismo interseccional, que reconheça e incorpore as vivências de mulheres trans, negras, indígenas e periféricas. “Um feminismo que não seja interseccional não se sustenta no mundo real. A ideia de ‘mulher’ não é imutável nem inata; cada cultura constrói uma ‘mulheridade’ conforme sua materialidade social”, afirma.

Ela relembra a história do feminismo, destacando a importância do discurso da ativista negra Sojourner Truth, em 1851, que já questionava a exclusividade branca do movimento feminista com a pergunta: “E eu não sou uma mulher?”. Para Dalilah, o feminismo brasileiro deve reconhecer também a ancestralidade travesti como forma legítima de resistência ao patriarcado colonial.

A mobilização interseccional, segundo Dalilah, não apenas fortalece o movimento feminista, mas amplia sua capacidade de transformar a sociedade: “Articulando gênero, raça e classe, compreendemos de forma mais ampla as desigualdades e as necessidades imediatas do feminismo”, conclui.

Enquanto casos como o de Kely Moraes expõem o quanto a transfobia estrutura relações cotidianas, coletivos interseccionais seguem organizando a resistência, com o compromisso de garantir que todas — sem exceção — possam reivindicar sua plena cidadania.

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