Com o sucesso da novela Vale Tudo, surge o questionamento sobre a glorificação de personagens como Odete Roitman: por que gostamos tanto daquilo que é absurdo?
Por: Sofia Menezes
O remake de Vale Tudo, sucesso de 1988, começou a ser transmitido no fim de março e, muito antes de sua estreia, já trazia discussões acerca do retorno de uma das personagens mais emblemáticas e icônicas das novelas: Odete Roitman.
De início, o debate girava em torno da caracterização perfeita de Odete, interpretada por Beatriz Segall na primeira versão, com seu jeito arrogante, manipulador e, de certa forma, único. O público se questionava se existia alguém que conseguiria se igualar à interpretação original, além de demonstrar que o diferencial da novela residia justamente na maldade de Odete.
Entretanto, a romantização e a comoção acerca do comportamento da personagem não é um caso isolado, visto que as novelas sempre trouxeram as vilãs como verdadeiras protagonistas.
Durante o show em comemoração aos 60 anos da TV Globo, a emissora transmitiu uma cena em que várias vilãs memoráveis discutiam acerca dos seus respectivos impactos na teledramaturgia brasileira. Tais acontecimentos levantam um questionamento importante: por que os telespectadores simpatizam tão facilmente com esses personagens, deixando as verdadeiras protagonistas de lado?
Sobre esse assunto, o psicólogo e professor Rafael Silva diz que, muitas vezes, a ficção pode ser utilizada como uma proteção daquilo que é portado como mal.
“Existe um estereótipo do mal na construção de personagens, onde o telespectador assiste esse roteiro, mas sabe que tem a ficção que o protege desse ensaio para o lado mais perverso da sociedade. Ninguém quer ver de perto, mas numa telinha, isso é protegido”.

Ou seja, através da ficção, o público se permite assistir aquilo que é perverso pois possui um distanciamento que o impede de ser atingido pessoalmente por aquilo que é retratado. “A gente não sabe muito bem o que pode servir de escudo protetor: o mundo é dos maus, para onde vão os bons?”, questiona o psicólogo.
Além disso, outro destaque sobre esse comportamento diz respeito à necessidade do absurdo para manter o interesse de uma audiência. “A gente está cansado de pensar na vida, porque nós não temos atributos cognitivos pra mediar com a realidade. Assim, a gente tem um ataque expositivo. É um show de cenas surrealistas e um personagem infantil”, afirmou Rafael.
Atualmente, a banalização do que é considerado bom ou mau interfere diretamente no interesse do público em relação ao conteúdo que ele escolhe consumir. Com a superexposição a cenas chocantes e frenéticas, o telespectador deixa de refletir acerca do que consome, focando apenas nas sensações geradas naquele momento.
Com isso em mente, nota-se também que há uma discrepância na caracterização de vilãs e heroínas: enquanto Odete Roitman é vista como uma mulher poderosa e inteligente, Raquel, interpretada atualmente por Thaís Araújo, é retratada de maneira ingênua e manipulável.
“Existe uma menor valência de interesse de compor um personagem rico de ideias, de falas, mas de mais ação e estética, banalizando isso como ideal de vida e desconstruindo o que antes era dito como certo. As pessoas não têm mais esse olhar qualitativo, elas não querem perder tempo”, disse o psicólogo.
Ainda que Raquel possua boas intenções e tente agir de maneira correta, o público sempre irá preferir alguém como Odete, justamente pela maneira como seu egoísmo serve para retratar o absurdo por trás de suas decisões: Odete Roitman não perde tempo, e não é a moral que irá mudar isso.
Entretanto, ao analisarmos a reação positiva do público com vilões, surge uma contradição. Atualmente, com o constante uso das redes sociais para ditar o comportamento de uma sociedade, a “cultura do cancelamento” tornou-se peça-chave nas relações sociais. Porém, esse ideal não é aplicado à ficção: quanto mais absurdo e perverso, melhor para o entretenimento.
“O grande medo do cancelamento é o isolamento, estar só no mundo. O sofrimento psicológico é do indivíduo, e nunca estivemos tão sós como hoje. Um vilão é permitido se vangloriar pelo que temos de pior e isso nos encanta. Nós temos um aspecto ruim que precisa ser posto em prática, por mais que seja de maneira simulada e passiva”, constata Rafael.
Novamente, é possível notar a utilização da ficção como válvula de escape, na qual o maligno é retratado e visto como algo distante da realidade, mas, ao mesmo tempo, necessário. “Existe um incômodo social muito grande, e ele não está conseguindo ser descontado, tanto no que diz respeito a pensar e fazer. Então, a gente precisa de uma situação ficcional para não enlouquecer, e o problema é tornar o uso do ficcional, real e banal”, conclui Rafael.
Por fim, ele destaca a necessidade de diferenciar ficção de realidade, a fim de evitar que aquilo que é transmitido nas telas passe a ser normalizado. “Na psicanálise tradicional a gente trabalha muito com o princípio do prazer e do imediatismo, que pleiteia o controle e refreamento de vontade, para que eu possa conter a necessidade do agora e para que haja o amanhã. O processo hoje é atropelado pelo sucesso imediato”.
