Muitas vezes, é mais fácil lidar com a dor física do que com a tristeza; entenda as motivações, consequências e desamparo por trás da autolesão

Por Isabela Marquesi

Arte produzida por Gabriela

Segundo Maria Cristina Marconato Vaz, especialista em psicologia clínica, a automutilação é a prática de infligir ferimentos na superfície do próprio corpo como uma forma de extravasar intensa carga emocional. De acordo com ela, acontece “quando parece ser mais fácil lidar com a dor física do que com as dores psicológicas”.

Os motivos que podem levar uma pessoa a se autolesionar são diversos – depressão, bullying, abuso sexual, maus tratos, solidão e autopunição –, assim como podem ser as formas de comportamentos autodestrutivos: abuso de substâncias psicoativas, coceira agressiva, queimaduras, prática de arrancar os próprios cabelos e de se autoinfligir socos.

A automutilação atinge pessoas de qualquer gênero, raça, religião, orientação sexual e nível socioeconômico, ocorrendo predominantemente na faixa etária entre 12 e 17 anos. A psicóloga informa que isso acontece pois “a adolescência é um período de transição, transformações, de escolha e de busca de identidade que pode gerar conflitos internos, dúvidas e inseguranças”.

Um estudante de psicologia, de 19 anos, relata que a automutilação entrou em sua vida entre os 14 e 15 anos, quando a solidão e a culpa que sentia passaram a causar nele a necessidade de se martirizar. “Eu lembro de ter uma sensação que merecia ser punido de alguma forma”, ele diz, “mas a sensação de que eu ‘precisava ser punido’ nunca passava, e depois me dava muita vergonha do que eu tinha feito”.

Para uma estudante de jornalismo, de 19 anos, a pressão da vida adulta e a ansiedade para que tudo desse certo fizeram com que ela desenvolvesse essa prática aos 17 anos. Para ela, a automutilação “era meio que transmitir para fora” a aflição, em suas palavras.

Maria Cristina associa à automutilação um “sentimento de alívio momentâneo”: quando provocada a autoagressão, o organismo libera endorfina e cortisol, havendo um reforço positivo que instiga a repetição do ato pela associação do alívio despertado.

“A automutilação é um escape. É uma forma de pôr a dor que está dentro de mim para fora”, relata Gabriel Sanches, de 21 anos. Para ele, a autoagressão é um meio de se acalmar: “normalmente, eu me automutilo quando estou em crise, e me bater, me beliscar, me machucar é uma forma de quebrar um pouco a tensão”. Gabriel conta que “a necessidade de que pare de doer, de que a crise saia, de que eu simplesmente consiga me sentir bem” é maior do que a vergonha e o medo que ele sente depois que acontece.

Para quem se automutila, se machucar muitas vezes é a única forma de obter controle sobre si mesmo: “eu sinto que quando eu não estou conseguindo controlar certos aspectos da minha vida eu tendo a tentar adquirir controle de uma maneira, que é o corte”, expõe um aluno do curso de Design, de 19 anos. Ele conta que a culpa que sente pelo seu “jeito de agir” ou “falhas no caráter” é um intenso motivador para que ele recorra a formas mais extremas de punição, buscando algo que seja compatível com seu estado.

O estudante informa que o peso da culpa provoca em si espirais de pensamento que o deixam inativo, intensificando um remorso que torna insuportável estar dentro de sua própria cabeça.

“Às vezes eu não sei mais outra coisa para fazer, sabe? Eu estou em um estresse emocional muito forte e eu não sei para onde ir. Às vezes parece que eu não tenho nenhum lugar para me segurar”

Durante certo período de sua vida, a automutilação provocava nele prazer genuíno, algo “pseudossexual”, “quase orgásmico” como efeito de um ato tão associado à carne. Atualmente, a culpa e receio são os resultados mais gritantes de um costume ritualístico e obsessivo, como ele define.

Para algumas pessoas, a autolesão é uma forma de remediar algo não necessariamente associado à ideação suicida, ainda que ela possa estar presente. “Eu quero fazer de um jeito que sane minhas necessidades, só que eu não me prejudique fazendo isso”, conta o aluno, relatando que possui uma bolsa com itens necessários para tratar os machucados, como antisséptico e esparadrapo.

Maria Cristina afirma que a automutilação não é considerada um vício ou uma doença, ainda que o graduando em Design acredite que essa prática pode ser vista como viciante, ao comentar sobre pessoas que utilizam aplicativos para acompanhar a ocorrência da autolesão.

O aplicativo mais conhecido para esse propósito é o I Am Sober, que contabiliza o tempo em que o indivíduo não cede a determinado vício, reiniciando a contagem quando é registrado um relapso.

A plataforma disponibiliza um espaço para interação entre pessoas que lidam com o mesmo vício. Essa comunidade é um espaço para que os usuários possam desabafar, dividir experiências, comemorar marcos e obter conselhos e motivação.

Aplicativo I Am Sober

Entretanto, o ambiente – virtual ou não – em que a autoagressão é protagonista pode não ser saudável. Muitas vezes, a exposição imprudente da automutilação, ao invés de proporcionar visibilidade e entendimento, acaba por incentivar o desenvolvimento dessa prática.

Uma aluna da Unesp, de 25 anos, conta que começou a se automutilar por volta dos 12 ou 13 anos, quando se aproximou de pessoas que lidavam com o mesmo problema. Ela diz que “embora a intenção fosse ajudar uns aos outros […] acabou sendo pior para todo mundo”.

Gabriela, de 17 anos, concorda que é necessária maior sensibilidade por parte da mídia ao tratar dessa adversidade. Ela acredita que essa exposição não pode influenciar alguém que não seja suscetível à automutilação, porém é preciso uma abordagem apropriada em todos os casos, especialmente quando se trata de interlocutores pré-adolescentes.

Seu primeiro contato com a automutilação foi através do livro 13 Reasons Why, o que fez com que ela iniciasse a prática entre os 11 e 12 anos. “Eu não sei se eu teria começado nisso se eu não tivesse lido no livro”, conta.

Para ela, a automutilação era uma forma de tornar físico um sentimento de vazio, que poderia ser visto no corpo, explicado e, principalmente, cuidado: “eu me sentia acolhida, que alguém estava cuidando de mim”, confessa, ao relatar que o melhor momento da automutilação era logo depois que acontecia, quando podia cuidar de si mesma.

Entretanto, se a automutilação provoca grande alívio, as cicatrizes são lembranças de uma vergonha ainda maior, que pode ser carregada na pele durante toda a vida.

Arte produzida por estudante de Artes Visuais

“Pessoas que praticam automutilação geralmente cobrem as lesões dos braços, barriga, coxas, usando calças e blusas de manga comprida mesmo no calor. Normalmente sentem vergonha em se expôr”, informa Maria Cristina. Em sua experiência clínica, a psicóloga identificou que pessoas que já pararam com a prática ainda sofrem com as marcas deixadas no corpo. Uma queixa comum, por exemplo, é a insegurança ao procurar um emprego, por medo de julgamentos.

“Eu passei três anos da minha vida sem usar uma regata […] sem usar biquíni, sem me trocar na frente de ninguém com esse medo extremo de um dia alguém ver”, diz Gabriela. “Eu ia na piscina e tinha que usar camiseta, eu não podia comprar nenhum vestido de alcinha, eu não podia me trocar na frente da minha mãe”.

A garota admite que o pior de tudo é o julgamento que recai sobre ela quando alguém percebe suas cicatrizes. A insensibilidade das pessoas a abala quando tem que responder perguntas como “o que é isso no seu braço?” e enfrentar olhares de pena.

Quando se trata de autolesão, o melhor a se fazer é oferecer acolhimento sem julgamentos e crítica. Porém, muitas vezes o maior desafio para lidar com a automutilação são os próprios pais.

Gabriela conta que, quando sua mãe descobriu os machucados, recebeu acusações de ingratidão e de que seu objetivo era “chamar atenção”. Ela ouviu de sua mãe que “nem para me matar eu servia”.

Posteriormente, a preocupação excessiva de sua mãe para que ninguém percebesse suas cicatrizes fez com que a garota tomasse medidas ainda mais violentas, que resultaram em uma infecção.

“Eu peguei uma lixa de unha e raspei onde tinha me cortado até ficar em carne viva para […] transformar essas cicatrizes em outra coisa”

Atualmente, ela reconhece que “por mais que tenha doído as palavras dela, eu entendo ela, ela estava assustada, ela não sabia o que fazer”.

A mente de quem se automutila não é um lugar fácil de se viver: a automutilação é a materialização de uma tristeza tão insuportável que precisa se tornar palpável de uma forma igualmente dolorosa, e o julgamento torna pior uma situação já extremamente angustiante. A melhor forma de oferecer apoio é amparar com respeito, encorajar a pessoa a expressar seus sentimentos, ficar atento a sintomas depressivos e buscar ajuda profissional, especialmente psicoterapia.

“Nem a gente entende por que a gente está nessa situação”, Gabriela desabafa. Ela gostaria que entendessem que, se uma pessoa se automutila para chamar atenção, a atenção é um grito por ajuda. “Uma pessoa não machuca o próprio corpo porque ela quer ser o centro das atenções”, ela deixa claro. “Ela só precisa que alguém chegue nela e fale assim: ‘vai ficar tudo bem’”.

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