Estudo revela que três em cada dez brasileiros tem dificuldade em usar informações escritas em sua vida prática
Por Helena Singillo
Após uma pausa em 2018 devido à pandemia de COVID-19, o Inaf (Indicador de Analfabetismo Funcional) foi divulgado no último dia 5 de maio. A pesquisa – que busca medir os níveis de alfabetismo funcional da população brasileira – teve resultados alarmantes, já que a taxa de analfabetismo não caiu e, na verdade, estagnou no Brasil.
O analfabetismo funcional ainda é presente na vida de milhões de brasileiros: segundo o estudo, 29% da população de 15 a 64 anos é considerada analfabeta, cerca de 40 milhões de pessoas. Sem avanço, o número é o mesmo de 2018.
O Inaf é uma iniciativa da Ação Educativa, com consultoria da Conhecimento Social, correalização da Fundação Itaú e apoio da Fundação Roberto Marinho, Instituto Unibanco, Unicef e Unesco.
O que é analfabetismo funcional?
O analfabeto funcional é aquele que, embora compreenda palavras e saiba escrever, não consegue interpretá-las e tem dificuldade de usar a linguagem escrita em suas práticas sociais. Em seu cotidiano, ele enfrenta diversos desafios associados à compreensão de textos: desde interpretar placas de trânsitos e bulas de remédio até realizar operações matemáticas simples, como calcular o troco de uma transação.
Mais que um número em uma pesquisa, os analfabetos funcionais são pessoas que enfrentam o cotidiano e, de certo modo, se adaptam às suas adversidades. Sobre isso, a
professora Vanessa Crecci, doutora em Educação pela Unicamp, que atua na Prefeitura Municipal de Campinas como docente na Educação de Jovens e Adultos (EJA), afirma que os analfabetos funcionais são pessoas dotadas de saber prático, proveniente da experiência de vida deles e que ser analfabeto não significa não ser desprovido de inteligência.

A educadora Vanessa Crecci – Foto: acervo pessoal
“Muitas dessas pessoas são financeiramente organizadas. Esses dias eu conversei com uma aluna e contei pra ela que eu publiquei um artigo dizendo que apesar das dificuldades com a leitura e com a escrita, (os analfabetos) são pessoas que têm um saber prático. Ela falou: “Sonho seu, professora, não é bem assim”. Eu falei pra ela: “Você construiu a sua casa. Tocou uma obra sozinha e ainda se acha no direito de não se achar inteligente?”. Estou falando de pessoas que, apesar de viverem tragédias, porque não sabem ler um contrato, e isso é uma tragédia social e não devemos romantizar esse tipo de história, dão o seu jeito”, reconhece.
Estagnação dos índices
Tanto em 2018 quanto em 2024, o último ano da pesquisa, a taxa de pessoas analfabetas é de 29%. A paralisação do número deve-se, segundo a educadora, a dois fatores: a pandemia de COVID-19 e a falta de adequação da Educação de Jovens e Adultos à realidade dos trabalhadores.
O período pandêmico representou um grande golpe para a educação. O ensino à distância, que era novo para a maior parte da população, teve de se adaptar para a nova conjuntura. Aulas on-line, má infraestrutura digital, demissão de professores e dificuldade de acesso ao ensino foram só alguns dos diversos desafios enfrentados.
Verifica-se então que as transformações educacionais foram interrompidas nos anos atípicos que assolaram o país. E a educação pública mostra os resultados deles agora: em relação a 2018, o número de jovens analfabetos subiu, de 14 para 16%.
Os organizadores da pesquisa atestam também que cerca de 12% dos brasileiros sabem elaborar textos complexos e têm plena capacidade de argumentação e exposição. O problema é que esse número permanece inalterado, ou com pequena oscilação, desde o início da realização da pesquisa em 2001.

Comparação das taxas de alfabetismo nos anos de realização da pesquisa – Fonte: Inaf 2024
O analfabetismo no ensino superior
O indicador também revelou que a taxa de analfabetos no ensino superior triplicou em relação à 2018, de quatro para 12%. Essa estatística despertou alerta, já que a escolaridade é o principal fator de elevação do alfabetismo. Para ingressar em um curso superior, o indivíduo precisa ter formação no ensino infantil, fundamental e médio: etapas acadêmicas em que o letramento escrito e matemático é aperfeiçoado e quase completo.
“Nós tivemos maior acesso ao ensino superior nas últimas décadas, uma democratização. Eu penso que esse dado do analfabetismo funcional – esse caos social – revela toda a estrutura da educação brasileira”, diz Vanessa.
Chegar em um curso de graduação sem essa base acadêmica consolidada é enfrentar obstáculos diariamente nas aulas, com falta de compreensão de textos acadêmicos ou de cálculos avançados. Com isso, a permanência estudantil e a formação desses alunos ficam ameaçadas.
A educadora ainda relata uma experiência com os alunos de ensino superior em Campinas e observa as diferentes demandas educacionais da nova geração. “Nós estudamos a retenção da atenção desses estudantes e eles já estão com dificuldade na leitura de livros, querem estudar pelos slides. Isso (a má interpretação) não é exclusiva do analfabeto funcional. Alunos de alto nível de letramento já estão com dificuldade. Nós precisamos pensar em outras maneiras de nos relacionarmos com a nossa escolarização”.

Alfabetização por nível de escolaridade – Fonte: Inaf 2024
Vanessa também atesta a necessidade dessas faculdades de implementarem políticas de letramento e alfabetização, para ajudar os discentes na rotina universitária. Como exemplo, é possível citar o Programa de Capacitação e Treinamento em Comunicação Científica, oferecido pela Divisão Técnica de Biblioteca e Documentação da Unesp de Botucatu, que disponibiliza cursos gratuitos à distância sobre a linguagem acadêmica, incluindo conteúdos sobre normas, revisão de textos e vocabulário científico.
Analfabetismo dos mais velhos
Segundo o Inaf 2024, mais da metade da população de 50 a 64 anos é analfabeta. Os mais jovens, historicamente, possuem nível de alfabetismo maior quando comparados com os mais velhos. Isso é reflexo do maior investimento na educação de crianças e adolescentes, enquanto a formação de adultos fica em segundo plano.
A professora Vanessa, que atua diretamente com esses adultos, afirma que a aderência ao EJA (Educação de Jovens e Adultos) caiu nos últimos anos e observa o modelo desconectado com a realidade dos estudantes como causa disso:
“Nós tivemos um decréscimo de matrículas de 198 mil alunos, atingindo seu menor índice em 2024. O modelo que nós temos atualmente – presencial de segunda a sexta das 18h30 às 22h40 – já não atende o cotidiano desse trabalhador. Precisamos pensar num modelo diferente, com uma estrutura adequada, inclusive, do ponto de vista digital, com um polo para que ele estude, para que ele tenha acesso a professores, mas que não necessariamente cobre a presença dele de segunda a sexta”, relata.
Ela também constata que os materiais didáticos oferecidos a essa população são infantilizados ou, às vezes, são os mesmos oferecidos às crianças. Por isso, eles não conversam com o saber prático já adquirido por esse adulto.
Para mudar esse cenário, ela destaca que é necessário a adoção de uma política educacional que se conecte diretamente com o seu estudante – com um modelo mais flexível e que respeite os conhecimentos adquiridos por ele ao longo da vida.
Desafio para o futuro
O analfabetismo continua a bater na porta de milhões de brasileiros. E, ainda hoje, o adjetivo “analfabeto” vem carregado de estereótipos que desqualificam todo e qualquer saber que essas pessoas possuem. A professora Vanessa destaca: “essas pessoas muitas vezes não são respeitadas em sua individualidade, em seus anseios, em seus desejos”.
Muitas estratégias para a atenuação deste problema histórico são discutidas e o questionamento que fica é o de quando será possível visualizar um país totalmente letrado. Para Vanessa, o analfabetismo pode ser combatido por meio do incentivo ao estudo e por parcerias público-privadas.
“Nós precisamos conversar sobre como sermos competentes o suficiente para que essas pessoas venham até a escola. E aí é um trabalho integrado, uma parceria com as empresas, porque a educação de jovens e adultos não pode ir até o local de trabalho? É uma possibilidade para a gente pensar, é um modelo a ser discutido, certo?”, observa.
