O escritor peruano, morto em 13 de abril último, deixou um extraordinário legado literário, formado por 20 obras de ficção, dez livros de ensaios e uma infinidade de artigos jornalísticos

O escritor peruano Mario Vargas Llosa Foto: Wikimedia Commons
MAURO SOUZA VENTURA, jornalista, Livre-docente em Jornalismo pela Unesp e professor orientador do Contexto.
Certa vez, o escritor peruano Mario Vargas Llosa contou que, ainda jovem, revelou a seu pai o desejo de se tornar um escritor. Contrariado, o pai decidiu enviar o menino para uma escola militar, pois acreditava que a disciplina o faria mudar de ideia. No colégio interno Leôncio Prado, em Lima, o jovem Mario passou a ser procurado por seus colegas, que lhe pediam para responder as cartas recebidas das namoradas. E foi assim, escrevendo cartas de amor para os colegas de colégio, que o peruano descobriu sua vocação de escritor.
Essa experiência no colégio militar foi a inspiração para seu primeiro romance, A cidade e os cachorros, de 1963. Quatro anos antes, em 1959, ele publicara um pequeno livro de contos, Os chefes, sua estreia na literatura.
Jorge Mario Pedro Vargas Llosa nasceu em 28 de março de 1936, em Arequipa, no sul do Peru, numa família de classe média, modesta e tradicional. A maior parte da infância foi vivida em Cochabamba, na Bolívia, com a mãe, Dora Llosa, e seus avós e longe do pai.
Morto no último dia 13 de abril, em Lima, aos 89 anos, Vargas Llosa deixou um extraordinário legado literário, formado por 20 obras de ficção, dez livros de ensaios e uma infinidade de artigos jornalísticos, onde expressava suas opiniões polêmicas, principalmente sobre política, que lhe renderam não poucas críticas. A principal delas é sua guinada à direita e a defesa do liberalismo econômico. Há poucos anos, chegou a manifestar seu apoio a candidatos da extrema direita no Brasil e no Peru.
Polêmicas à parte, o fato é que a morte de Vargas Llosa encerra não apenas uma produtiva carreira literária, mas é também o epílogo da atuação de uma geração inteira de escritores, como Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Juan Rulfo e Jorge Luiz Borges, que, nas décadas de 1960-70 fizeram a literatura latino-americana tornar-se mundialmente conhecida. O próprio Vargas Llosa podia vangloriar-se de ser um escritor com leitores no mundo todo, com livros traduzidos para mais de 30 idiomas. O Prêmio Nobel, conquistado em 2010, foi o reconhecimento desta trajetória.
A última obra
No final de 2022, Vargas Llosa terminou de escrever aquele que seria seu último romance, intitulado Dedico a você meu silêncio e publicado no Brasil em 2024 (Ed. Alfaguara). Ao final do livro, ele anunciou que esta seria sua última obra de ficção e que gostaria ainda de escrever um ensaio sobre o filósofo francês Jean-Paul Sartre, sua grande influência de juventude. Dois meses depois, ele parou de escrever seus artigos para o jornal espanhol El Pais, onde colaborava desde 1990. Não se sabe se ele teve tempo suficiente para escrever esse derradeiro texto sobre Sartre.
Dedico a você meu silêncio conta a história de um crítico de música peruano, Toño Azpilcueta, que é um apaixonado pelos ritmos nativos de seu país, como valsas, marineras, polcas e huainos. Toño leva uma vida precária e simples, sustentando-se com artigos que escreve para revistas obscuras, que ninguém lê. Até que uma noite ele assiste à apresentação de um talentoso mas desconhecido violonista. Impressionado com o virtuosismo de Lalo Molfino, ele decide escrever um livro sobre a trajetória e a música deste personagem enigmático, morto precocemente.
Mas o livro de Toño Azpilcueta será muito mais do que uma biografia deste virtuose da música criolla (nativa) do Peru. Sua tese central é a de que as mudanças na sociedade peruana não serão produzidas por revoluções ou golpes, sejam de esquerda ou de direita, mas por meio da música popular. Toño Azpilcueta acredita que a arte musical feita pelos compositores e cantores de valsas e marineras conduzirá o pais à revolução – uma revolução silenciosa.
A certa altura do romance, o narrador se dirige ao leitor para defender com utópico entusiasmo a ideia de que este livro será o “ponto de partida de uma verdadeira revolução que irá tirar nossa pátria de sua pobreza e tristeza, convertendo-a novamente em um país pujante, criativo e verdadeiramente igualitário”.
O livro dentro do livro que Toño Azpilcueta escreve procura demonstrar como a música popular do Peru, em especial a valsa peruana, pode ser um fator de união nacional, deixando para trás a desigualdade social, os preconceitos, o racismo e a violência.
Para um autor que, em sua vida, transitou da esquerda para a direita, do apoio inicial às revoluções socialistas na América Latina à conversão ao liberalismo econômico, não espanta que neste último livro ele deposite sua esperança na arte e não mais na política.
Aliás, em 1990, Vargas Llosa disputou a presidência do Peru com uma plataforma que defendia o livre mercado, a privatização e o corte nos gastos públicos. Naquela ocasião, Vargas Llosa foi derrotado para Alberto Fugimori e a breve incursão na política deixou marcas inesquecíveis. “Eu sonhava em tirar o Peru do século 19. Mas vivi três anos de horror na pior experiência da minha vida”, declarou ele em 1997 para o jornal O Estado de S. Paulo.
Adepto das grandes narrativas, do romance que se entrelaça com a história – o Peru sempre esteve presente nos romances de Vargas Llosa – a utopia de Toño Azpilcueta retratada nesse último livro demonstra uma certa amargura do autor diante da política e da mudança social. O livro é comovente e, em certos momentos, até irônico, mas revela o desencanto de um escritor que sempre pensou a realidade a partir da literatura.
Depois de uma vida inteira dedicada à ficção e ao ensaio (e ele foi igualmente brilhante em ambos), Vargas Llosa se retirou, deixando-nos o silêncio de sua voz. Um silêncio repleto de eloquência.

Capa da última obra de Mario Vargas Llosa
