Polêmicas cercam o novo meio de ingresso de alunos da rede pública estadual no Ensino Superior

Por Letícia Reis dos Santos

No dia 29 de novembro, o Provão Paulista Seriado, novo modelo de vestibular exclusivo para alunos da rede pública de ensino paulista, completará um ano de sua primeira aplicação. A, até então, breve trajetória do exame é cercada de questionamentos, como o de sua eficácia e até que ponto foi planejado para os alunos da rede estadual de ensino, que se encontra afetada pelo Novo Ensino Médio.

Foto: Secretaria da Educação/Governo de SP

O Provão Paulista Seriado é um vestibular aplicado pela Fundação Vunesp com 90 questões de múltipla escolha distribuídas entre as áreas de Linguagens, Ciências da Natureza, Matemática e Ciências Humanas e Sociais e suas tecnologias, mais a produção de um texto dissertativo-argumentativo. Dentre os 400 mil alunos que realizaram a avaliação, os com os melhores resultados concorreram a 15.369 vagas distribuídas entre diferentes cursos, sendo 1.500 na Universidade de São Paulo (USP), 934 na Universidade Estadual Paulista (Unesp), 325 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2.620 na Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e 10.000 nas Faculdades de Tecnologia (Fatecs). A escolha dos cursos é realizada previamente pelo estudante.

A prova é seriada pois consiste em um sistema no qual o discente realiza o vestibular em todos os anos do Ensino Médio. No primeiro período de aplicação, os alunos que cursaram o terceiro ano em 2023 realizaram a avaliação apenas naquela oportunidade de formação, já os que concluíram o segundo passarão pelo teste duas vezes, até que todas as turmas o façam durante as três etapas.

O Novo Ensino Médio e suas implicações

Sendo um exame realizado apenas entre estudantes de escolas públicas, está presente a ideia de que a disparidade entre o nível de ensino dos participantes é anulada, tendo em vista que a concorrência se dá apenas entre instituições da rede estadual. No entanto, na prática, o debate sobre o Novo Ensino Médio e uma possível defasagem na formação tem permeado a discussão. Os críticos da reforma argumentam que, além de elevar a diferença da qualidade da rede pública e da privada, acentuou essa disparidade das escolas estaduais com relação aos Institutos Federais (IF) e, principalmente, Escolas Técnicas (Etecs), que, atualmente, dominam o ranking de melhores escolas da rede pública paulista, de acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

Melhores escolas da rede pública paulista. Fonte: Ideb

“Não sou favorável à implementação do Novo Ensino Médio, pois vivenciei a transição entre os modelos e percebi os impactos negativos em minha formação”, declara Rafayane Oliveira Clementino, aprovada em administração na USP, pelo Provão Paulista, e ex-estudante da Escola Estadual Eudoro Villela, na qual cursava o itinerário Aprofundamento Curricular Matemática Conectada – Matemática e suas Tecnologias.

O projeto do Novo Ensino Médio (NEM) foi oficialmente implementado em 2022, mas sua história começa dez anos antes. Desde 2012, militantes educacionais passaram a lutar por uma reforma no nível secundário e, em 2016, o então presidente Michel Temer (MDB) atendeu a esse pedido, mas, de acordo com os educadores, sem um debate com a classe. Assim, em 2017, a Medida Provisória baixada pelo Executivo tornou-se lei (13.415/2017).

A norma foi responsável por modificar a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), responsável por definir a organização da educação brasileira, que não era alterada desde 1996. As mudanças partem do aumento da carga horária, que foi de 2.400 horas para 3.000 horas, ocupadas em 60% pelas quatro grandes áreas do conhecimento, e 40% por itinerários formativos – núcleos de estudos de áreas que variam de acordo com a escolha do aluno.

Entre as controvérsias desse novo modelo está o fato que a lei intitula apenas Língua Portuguesa e Matemática como obrigatórias. Inglês, Educação Física, Artes, Sociologia e Filosofia estão descritas como “estudos e práticas”, e não como “ensino”, abrindo portas para diferentes aplicações e interpretações. Dessa forma, o estudante de uma escola que optar por não executar as disciplinas dessas matérias estará em desvantagem nos vestibulares comuns.

Lei 13.415/2017

Os itinerários formativos, de acordo com a lei, podem ser lecionados por “profissionais de notório saber” e, assim, muitos docentes passaram a trabalhar de maneira interdisciplinar. “O modelo foi implementado de forma abrupta e sem a devida capacitação dos educadores, o que resultou em situações como ter um professor de Ciências Exatas ensinando Tecnologia e Inovação, mesmo sem formação na área”, relata Rafayane Oliveira.

Na prática, escolas de menor porte e sem muitos recursos financeiros tiveram problemas para se adaptar ao novo sistema. Muitas instituições de ensino não conseguiram oferecer mais de uma opção de itinerário, sendo que uma das principais propostas do NEM era justamente a participação do aluno, que, em tese, poderia escolher o que estudaria.

A proposta foi aprovada quase simultaneamente à PEC 241/2016, que visava reduzir os gastos públicos, congelando os investimentos em áreas como educação, saúde e segurança, por 20 anos. Por isso, questiona-se: como implementar uma grande reforma no sistema educacional, que exige capacitação dos professores (ou contratação de novos) e maior infraestrutura, visto que a carga horária cresce, sem aumentar os investimentos? 

Assim, a Base Nacional Comum Curricular foi interpretada de diferentes maneiras por todo o país, de maneira que, em 2023, encontravam-se ativos 27 diferentes tipos de Ensino Médio, com estados que chegaram a alcançar a marca de 200 disciplinas eletivas aplicadas.

Logo, outro questionamento é possível: como os discentes podem concorrer nos grandes vestibulares sem a formação em disciplinas básicas? Ao ser aplicado apenas para os que estão “no mesmo barco”, o Provão Paulista veio como solução. Ou não.

“O Novo Ensino Médio não cumpriu seu propósito, pois não me preparou adequadamente nem para o mercado de trabalho, nem para o Ensino Superior. O itinerário escolhido não forneceu os conhecimentos necessários para um desempenho satisfatório nos vestibulares, o que me obrigou a estudar por conta própria disciplinas que não estavam contempladas no currículo. Além disso, a falta de uma base sólida de conhecimento impactou negativamente meu início na graduação”, narra a ex-aluna da rede estadual de ensino.

Após a aplicação do Provão Paulista, diversos comentários de estudantes nas redes sociais denunciavam que os conteúdos da avaliação não condiziam com o currículo das escolas e que a dificuldade foi ainda maior que no Enem. “É mesmo uma grande contradição. É uma prova feita para escola pública para demonstrar o quanto não está promovendo os processos de ensino e aprendizagem necessários para acessar a etapa seguinte, ou seja, a educação superior”, afirma a educadora, socióloga e docente da Unesp, Márcia Lopes.

Mariana Vieira Canuto se formou na Escola Estadual Professor Francisco Antônio Martins Júnior e foi aprovada em Medicina na USP de Bauru pela Provão Paulista e, no mesmo curso, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). De acordo com a estudante, “as questões do vestibular não tinham relação com o que estava aprendendo em sala de aula. Com a implementação do Novo Ensino Médio, muitas disciplinas básicas que seriam essenciais para a preparação foram deixadas de lado ou não abordadas”. Com relação aos outros exames que realizou, afirma que o NEM dificultou bastante sua preparação. “A ausência de matérias fundamentais, como Matemática, Química e Biologia, deixou lacunas importantes no meu aprendizado. Os itinerários formativos não atendiam às necessidades de quem pretendia prestar vestibulares concorridos, e isso me obrigou a buscar alternativas fora da escola para complementar os estudos. Em vez de ajudar, a reforma acabou atrapalhando mais do que contribuindo para a minha formação acadêmica”, pondera.

A aplicação do Provão Paulista Seriado

Outra polêmica que cercou o Provão Paulista foi o vazamento do tema da redação, que foi aplicada com um dia de antecedência em três possíveis escolas na Zona Leste de São Paulo, em São Carlos e em Campinas. “Foi prejudicial para a credibilidade do processo seletivo. Quando algo assim acontece, compromete não apenas a justiça do exame, mas também a confiança dos candidatos no sistema de avaliação”, declara Mariana. O secretário da Educação do Estado de São Paulo, Renato Feder, disse que a comissão delegada para avaliar a situação chegou à conclusão de que não houve crime ou esquema de fraude, apenas um erro de distribuição das provas, portanto, os demais alunos não foram prejudicados e a redação seguiu válida.

“[O Provão Paulista] é um processo que é resultado de uma política pública de avaliação”, frisa a docente da Unesp, que também destaca o caráter seriado da prova como uma de suas maiores qualidades: “É cumulativo porque o conhecimento é assim. E, se a gente deixa acumular muito, todos sabemos como funcionamos. Os neurocientistas estão aí para provar isso. Eu tenho, na minha memória, os meus conhecimentos ou aquilo que me é significativo, que está o tempo todo fazendo sentidos (no plural) para mim. Portanto, avaliar no primeiro, segundo e terceiro anos é muito positivo pelo seu caráter seriado”, explica.

Rafayane reconhece o Provão Paulista como uma tentativa válida de inclusão. “Sou grata pela existência do Provão Paulista, que considero um passo importante para democratizar o acesso ao Ensino Superior. Entretanto, poderia ser adaptado ao Novo Ensino Médio, pois a prova abrange disciplinas que não necessariamente constam no itinerário formativo dos estudantes. Apesar disso, reconheço o impacto positivo do exame, especialmente ao oferecer oportunidades para alunos da rede pública ingressarem nas universidades”, reconhece a estudante da USP.

Para Márcia, ao avaliar como os estudantes vão entrar na universidade, os cursos terão que apresentar opções que agreguem valor à sua trajetória. “Nesse sistema capitalista que a gente vive, a educação e as suas políticas públicas de avaliação também se valem disso [valor agregado]. Então, essa prova tem também essa intencionalidade que é, além de avaliar seriadamente e cumulativamente, analisar o depois, ou seja, como os cursos dessas universidades estão desenvolvendo competências e habilidades e tudo o que se deve trabalhar na formação cidadã e profissional como pessoa humana”, observa. A educadora acrescenta que existe uma proposta de que  cursos que “não agregarem valor”, de acordo com essa avaliação, poderão ser fechados.

Sentimento de pertencimento e o Ensino Superior

“Ao ingressar na USP, enfrentei, pela primeira vez, uma experiência prática com a desigualdade social, convivendo com colegas que vieram de contextos econômicos e educacionais muito diferentes do meu. Apesar disso, consegui estabelecer boas conexões, tanto com pessoas cuja realidade se assemelha à minha quanto com aquelas que compartilham objetivos similares para o futuro”, relata Rafayane. 

A socióloga explica que a mudança de ciclo socioeconômico pode afetar os estudantes de maneira cognitiva, fazendo-os duvidar se está no ambiente social correto, interferindo no entrosamento com colegas e, consequentemente, afetando a dimensão emocional e psíquica. “A convivência apresenta uma série de caminhos, demanda um repertório para poder conversar com tudo o que você não tem. Ao mesmo tempo em que você não se sente pertencendo, não vai poder emergir. Ninguém emerge naquilo que não sente segurança”, completa. 

Assim como Rafayane, Mariana tem se adaptado bem ao novo ambiente, mas nem todos os que ingressaram na universidade pelo novo modelo de vestibular compartilham dessa vivência. Ao buscar contatar universitários provenientes do Provão Paulista, respostas como “nunca contei aos meus colegas e prefiro não expor isto” foram comuns.

Mariana ressalta a magnitude da iniciativa. “Políticas públicas voltadas para o acesso à Educação Superior, como o Provão Paulista, são fundamentais para alunos da rede pública, pois abrem portas para oportunidades antes inacessíveis. A desigualdade educacional no Brasil é uma realidade, e muitos alunos da rede pública enfrentam desafios como falta de recursos (que piorou com o Novo Ensino Médio), infraestrutura precária, turmas superlotadas e escassez de materiais didáticos. Isso, por si só, já limita as oportunidades que esses estudantes têm de se preparar adequadamente para vestibulares e outros processos seletivos. Essas políticas públicas ampliam as chances desses alunos de ingressarem na universidade”, analisa a estudante da UFPR.

Para Márcia, esse é um processo responsável por forçar um diálogo das universidades públicas paulistas com a Educação Básica e uma maneira interessante de dar sequência à vida acadêmica, ao concluir um ano de estudo e em sequência realizar uma prova. “Fazer, mais ou menos, como é o ideal: terminar o Ensino Médio numa escola pública e estar, naturalmente, habilitado para poder acessar a universidade”, diz a educadora ao referir-se à bruta interrupção da evolução pedagógica pela inserção de uma avaliação para a passagem para a próxima etapa educacional, o vestibular.

Apesar de diversas problemáticas, a docente acrescenta que a prova é uma esperança de atrair mais jovens para as universidades estaduais, uma vez que muitos desconhecem o caráter público e gratuito do Ensino Superior. “É uma prova bem-vinda, mesmo com todos esses problemas. Estamos todos atentos, bem-vinda nesse sentido. Sabemos de onde o exame está partindo, quais são os processos envolvidos e aonde quer chegar. E tudo isso vai significar uma mudança, tanto no próprio Ensino Médio, como já está acontecendo, quanto no processo das próprias Universidades com seus cursos superiores”, conclui Márcia.

Mariana finaliza trazendo a dualidade do vestibular. “O Provão Paulista foi uma tentativa de inclusão, mas acabou sendo mal executada. Embora tenha o objetivo de proporcionar mais acesso à universidade para alunos da rede pública, a execução do processo seletivo deixou a desejar. O número limitado de vagas e a falta de uma preparação adequada para o exame dificultaram o acesso de muitos estudantes. Muitos alunos não estavam suficientemente preparados para realizar a prova, pois o conteúdo exigido não correspondia ao que era trabalhado em sala de aula. Além disso, houve problemas como o despreparo dos fiscais durante a aplicação da prova, relatos de colas e até vazamento da redação”, alega a universitária.

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