Discussão sobre o excesso de jogos na temporada evidencia problemas no esporte
Por João Guilherme Provasi Xavier
As discussões sobre o cronograma de jogos do futebol brasileirão ganharam força nos bastidores dos clubes, federações e da imprensa esportiva. De um lado, há quem reclame do excesso de jogos, do outro, da escassez. A vitalidade dos atletas também entra na discussão, já que o calendário robusto prejudica o desempenho físico e técnico dos jogadores.
Apesar da evidência nos últimos anos, a extensão do calendário já esteve em debate algumas décadas atrás. Em 1970, João Saldanha, pouco tempo depois de ser demitido do comando da seleção brasileira, enviou a Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho, e responsável pelo esporte no país, uma lista de 18 tópicos para “modernizar” o futebol. Dentre esses itens, estabelecer férias de 30 dias aos atletas, um período de pré-temporada, e, no máximo, 52 partidas no ano.
As sugestões, no entanto, não foram levadas em frente, e nos anos que se seguiram, poucos foram os ajustes feitos para sanar esse problema. Em uma época na qual o formato dos campeonatos se alteravam a cada temporada, o número de jogos se tornava imprevisível. A insanidade do calendário teve seu auge nos anos 90, quando o São Paulo de Telê Santana fez 97 jogos, em 1993, sendo 17 apenas no mês de março.
Mas foi apenas em meados de 2010, que as reivindicações por um calendário mais “limpo” e adequado aos jogadores passou a ser debatido, já que os próprios atletas se tornaram mais engajados. Nesse contexto, o surgimento do Bom Senso FC, se mostrou promissor na busca por melhores condições de trabalho.
O movimento foi organizado por jogadores e profissionais de diversas divisões do futebol brasileiro, e tinha como slogan “Por um futebol melhor para todos”. O grupo chegou a elaborar uma proposta de calendário, que priorizava a pré temporada e as férias dos jogadores. Apesar do começo esperançoso, a CBF fez jogo duro e o movimento acabou.
Porém, mais do que nunca, o futebol brasileiro “borbulha” por soluções eficientes. E muito desse “ressurgimento” do debate se deve aos técnicos estrangeiros, que vieram da Europa e se surpreenderam com o cronograma de jogos, como é o caso do português Abel Ferreira, do Palmeiras.
Outro treinador que não esconde sua insatisfação é Tite, ex-técnico do Flamengo. Em coletiva de imprensa realizada após a vitória contra o Bahia, pelo Brasileirão, e publicada no site da ESPN, o “professor” se expressou contra as condições impostas aos jogadores. “Tem atletas, pessoas, seres humanos que daqui a pouco com menos de 72 horas vão estourar. Vai estourar uma lesão, um joelho, um tornozelo!”, exclamou.
Esse pronunciamento reflete o principal problema direcionado ao calendário: a exaustão física e mental que o excesso de jogos provocam aos atletas. Atualmente, um elenco competitivo pode jogar de 70 a 80 vezes na temporada, com pouco tempo destinado à recuperação muscular, o que leva os jogadores ao seu limite.
Pelo artigo 27 do Regulamento Geral das Competições da CBF/2024, o intervalo mínimo entre partidas é de 66 horas. Porém, para muitos treinadores, esse espaço de tempo ainda é insuficiente, tendo em vista que compreende outras atividades além dos treinamentos, como viagens de ida e volta.

Jogadores do Palmeiras treinando na Academia de Futebol (Foto: Cesar Greco/Palmeiras)
Para Marina Bufon, jornalista esportiva e repórter da Gazeta Esportiva, a fragilidade física provocada pelo calendário influi diretamente no desempenho técnico dos jogadores.“Há uma queda no rendimento e desempenho dos atletas. A gente vê uma quantidade de lesões muito alta relacionada à fadiga muscular”. Ela aponta ainda para uma situação mais grave envolvendo os elencos mais competitivos. “O melhor time, aquele que chega mais, aquele que é campeão, acaba sendo punido também pelo calendário”, comenta.
Já Alexandre Azank, apresentador e coordenador do Globo Esporte da EPTV, aponta para a necessidade de compreender a natureza dessas lesões, levando em conta que elas podem ser ocasionadas por outros fatores. “Teria que fazer um estudo muito aprofundado para a gente poder cravar que é o excesso de jogos, se não é a má preparação, se não é a condição física individual de cada atleta”.
Ele relembra, que, diferente das décadas passadas, o futebol moderno apresenta uma intensidade maior nos jogos, e que isso pode contribuir para as contusões. “Acredito que seja uma mescla. O número elevado de jogos somados à alta intensidade, porque isso sim aumentou consideravelmente se a gente for comparar a década de 80 e 90”, pontua.
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entidade máxima do esporte no Brasil, acaba sendo culpada pelo calendário. Além dos entraves políticos com as federações estaduais, a venda dos direitos de transmissão dos campeonatos também impossibilita mudanças no calendário. Até 2029, a Rede Record detém em contrato o direito de transmissão de 16 jogos do campeonato paulista.
Para Marina, a extensão do calendário é reflexo da própria “cultura esportiva” do brasileiro, que majoritariamente consome o futebol. Dessa forma, diferentemente dos Estados Unidos, que possui mais de um “esporte nacional”, o mercado nacional necessita de muitos jogos para se manter aquecido.
“Como movimentar esse mercado, se não com diversas competições, se não com diversos jogos? É muito complicado. Porque se a gente tivesse essa cultura de assistir diversos esportes, talvez o calendário futebolístico não precisasse ser tão recheado, e mesmo tendo menos jogos, supriria essa necessidade da gente assistir”, opina.

Torcedores da Seleção Brasileira (Foto: Rafael Ribeiro/CBF/Flickr)
Contudo, na opinião do jornalista esportivo e escritor, Rodrigo Viana, o problema referente ao calendário não pode ser solucionado apenas com a redução de jogos.“O brasileiro, culturalmente, quer viver futebol a todo momento. Mas, além disso, tem um mercado fora do futebol que sobrevive dele. São os transportes, a torcida, cidades pequenas no Brasil, o comerciante, enfim, que vivem dessa logística”.
Rodrigo também não resume esse problema apenas ao arranjo das partidas no calendário, mas sim a uma trama mais “complexa”, que envolve principalmente fatores econômicos e logísticos. “O Brasil é um país continental, com vários campeonatos, muitas equipes oficiais, e que tem uma cultura de ver futebol quase todos os dias. Então, não é tirando jogos que você vai arrumar a questão financeira”,ressalta.
Em meio ao imbróglio sobre os rumos do calendário do futebol nacional, possíveis soluções movimentam a imprensa esportiva e os torcedores dos mais variados cantos do país. Dentre essas soluções, a mais polêmica é relacionada aos campeonatos estaduais, que ocupam de 10 a 16 datas no início do ano, postergando o começo do campeonato brasileiro e impossibilitando um período de pré-temporada.
Perdendo importância ao longo dos anos, a redução dos estaduais é defendida por quem acredita que esse é o principal entrave do calendário. Em alguns casos, a própria extinção é debatida, pois, dessa maneira, o Brasileirão teria mais tempo para ser disputado, e os demais campeonatos, como a Copa do Brasil, a Libertadores e a Copa Sul-America seriam distribuídos de maneira mais uniforme ao longo da temporada.
A respeito disso, Alexandre se coloca contra o fim dos estaduais, pois considera esses campeonatos parte da história do futebol brasileiro e de grande importância para as equipes do interior. “Para os clubes como o Noroeste, o Velo Clube, que subiram agora, ou qualquer clube que almeja chegar na elite do futebol estadual, não só pela questão das cotas, mas sim a visibilidade. Mas essa visibilidade que esses clubes almejam se deve à presença dos grandes clubes”.
O apresentador acredita que a mescla entre jogadores da equipe principal e da base poderia favorecer os clubes das capitais durante a campanha.“Uma alternativa seria permitir que os times grandes pudessem jogar com a base ou com o sub-23 esses campeonatos, para que se pudesse preservar o elenco para disputa depois dos outros campeonatos e das fases finais”, argumenta.
Para Marina, além da reformulação no modelo dos estaduais, com os clubes maiores entrando posteriormente, os campeonatos poderiam ser jogados ao longo do ano todo. “Já acabaria, por exemplo, com aquela necessidade de iniciar em janeiro, os atletas não têm férias direito, né? Com esse estadual, ele sendo um pouco mais extenso, correndo o ano todo, antecipa-se o início do Brasileirão, para não chegar em novembro e dezembro, ficar tudo “afogado” com as finais das outras competições”.

Noroeste versus Velo Clube, em partida válida pela final do Paulistão A2 (Foto: Divulgação/Redes Sociais)
No entanto, enquanto alguns reclamam do excesso de jogos, outros clubes sofrem com um calendário reduzido, que geralmente se resume apenas ao certame regional. Em 2023, de acordo com a CBF, o Brasil teve 863 clubes profissionais em atividade. Desse total, apenas 124 disputaram alguma das divisões do campeonato nacional. Ou seja, cerca de 86% dos clubes cadastrados na confederação tiveram sua temporada profissional terminada em três meses
Esse impasse prejudica a continuidade das agremiações, que muitas vezes precisam desmantelar os elencos com o fim dos estaduais. Com a inatividade e a diminuição das receitas, clubes tradicionais, como a Portuguesa-SP, o Bangu e o Santa Cruz-PE, perderam seu espaço no cenário nacional, amargando uma longa crise burocrática e financeira.
Entre as propostas para expandir e democratizar o calendário dos clubes menores, está a de ampliar o número de divisões nacionais, com a criação de séries E e F, por exemplo. Entretanto, Azank não acredita que essa é uma boa alternativa, tendo em vista a dificuldade de manter esses campeonatos.“As parcerias comerciais, a visibilidade, a audiência, a partir da Série C para baixo se torna muito mais difícil”, explica.
Diante disso, o apresentador considera ser mais eficiente aumentar o número de clubes participantes das séries C e D, visando principalmente o fator financeiro. “A partir do momento que você sai do eixo Série A, Série B, a logística para os clubes, se torna muito difícil. Então, é interessante fazer regionalizações em determinados momentos do campeonato para poder, em outras etapas, fazer uma nacionalização desse campeonato”.
Viana acredita que, apesar da quantidade de partidas, as divisões nacionais ainda colaboram para o desenvolvimento dos clubes. “Em Araraquara, a Ferroviária, jogou a série D, C e agora subiu para a série B. Quando você está no calendário nacional, você ganha um “fôlego” maior de logística, de projeção, de orçamento”, afirma.
Evolução?
O grande problema que impede essa reforma no calendário são as amarras políticas e econômicas que a CBF consolidou com emissoras de televisão e federações. Detentoras de um grande poder dentro da confederação, as entidades de cada estado olham com desconfiança para a proposta de reduzir seus campeonatos. Junto a isso, as negociações para a transmissão tanto dos estaduais quanto dos campeonatos nacionais barra a iniciativa de pensar em mudanças para agora.
Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, chegou a anunciar a proposta de padronizar o estadual com 12 datas, ao invés de 16, nos estados com mais clubes. A medida, prevista para 2026, pode ser adiada, já que a Record ampliou seu contrato de transmissão até 2029. Além disso, a Cazé TV também entrou na jogada e garantiu o direito de exibir, pelo menos, 30 jogos.

Ednaldo Rodrigues, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (Foto: Rafael Ribeiro/CBF/Flickr)
Na perspectiva de mudanças, a CBF, pressionada, tem tomado algumas medidas que deixaram os amantes de futebol entusiasmados. Na última sexta-feira, 8, a CBF, em reunião com as federações estaduais, oficializou o calendário para 2025 com novidades, em decorrência da realização do Super Mundial de Clubes da Fifa nos meses de junho e julho.
Assim, os estaduais estão com as datas de início previstas já para a primeira semana de janeiro, e as finais para meados de março. Logo em seguida, o Brasileirão já deve ser iniciado e percorrer até perto do natal, em dezembro. Isso irá ocorrer porque, enquanto o Super Mundial estiver em disputa, os atletas brasileiros que não estiverem nos Estados Unidos ficarão de férias.
Apesar de não resolver o problema, a expectativa é que nas próximas temporadas o calendário do futebol brasileiro passe por transformações significativas, respeitando o limite físico e mental dos atletas e colaborando para o desenvolvimento dos clubes menores e do futebol como um todo, pois, é sempre necessário priorizar o “espetáculo”.
