Consagrada como um grande marco da humanidade, a Inteligência Artificial ganha destaque nas pesquisas vencedoras do Nobel de Física e de Química deste ano
Por Maria Fernanda Bertolino
“O Prêmio Nobel é sempre dado não apenas pela relevância das pesquisas, mas também principalmente pelo seu impacto”. A informação trazida pela professora e doutora da Unicamp Paula Dornhofer confirma o inegável impacto da Inteligência Artificial na sociedade. Ele cresce cada dia mais e a premiação Nobel deste ano vem para reafirmar isso.
No mês de outubro, foram laureados com os Prêmios Nobel de Física e de Química cientistas que adotaram a IA em seus projetos. Desenvolvimentos como o aprendizado de máquina (machine learning), que possibilita o funcionamento de processadores como o Chat GPT, e a sistematização de proteínas celulares provam o caráter renovador da IA.
Com seu avanço extraordinariamente rápido, ela tem capacidade de “revolucionar toda a humanidade, o mercado de trabalho e os meios de produção tal como a gente os conhece”, pontua a professora Paula, do Departamento de Engenharia de Computação e Automação (DCA).

Medalha de ouro 18 quilates do Prêmio Nobel, com gravura de seu criador Alfred Nobel. Foto: superjoseph.
O Prêmio Nobel de Física
O britânico Geoffrey Hinton, 76, e o americano de 91 anos John Hopfield foram os laureados do Prêmio Nobel de Física deste ano. A premiação se deu pelas suas invenções que possibilitaram o aprendizado com redes neurais artificiais, processadores que se assemelham às redes neurais cerebrais humanas e constituem o chamado aprendizado de máquina. “Embora os computadores não possam pensar, as máquinas agora podem imitar funções como memória e aprendizado. Os laureados do Prêmio Nobel de Física de 2024 ajudaram a tornar isso possível”, afirmou o comitê.

Desenho de John J. Hopfield (esquerda) e Geoffrey Hinton (direita). Ilustração: Niklas Elmehed.
Hinton é chamado de “padrinho da IA” por conta de sua contribuição no desenvolvimento do aprendizado de máquina. Hopfield, cujo trabalho remonta à década de 80, também teve papel importante no avanço dessa tecnologia ao criar uma rede capaz de armazenar e reconstruir informações. De acordo com o comitê do prêmio, o machine learning vem revolucionando “a ciência, a engenharia e a vida cotidiana”. Os cientistas dividiram o prêmio de 11 milhões de coroas suecas (R$5,8 milhões) igualmente entre si.
Depois de 10 anos de contribuição na empresa Google, Hinton se demitiu no ano passado. Ele diz ter tomado essa decisão com o intuito de poder falar abertamente sobre os perigos que envolvem a IA. O britânico afirma que essa tecnologia “sabe como programar, então ela descobrirá maneiras de contornar as restrições que colocamos nela. Ela descobrirá maneiras de manipular as pessoas para fazer o que ela quer”.
O cientista partilha do medo do algoritmo de aprendizado sair do controle. “Nós não temos experiência em lidar com coisas que são mais inteligentes que nós. Temos de antecipar algumas possíveis consequências ruins”, diz Hinton em entrevista após o anúncio do Nobel.
Na sua visão, a IA está avançando mais rápido do que ele e outros especialistas esperavam. Em entrevista à CNN em 2023 após sua demissão, o “padrinho da IA” confessa: “Sou apenas um cientista que de repente percebeu que essas coisas estão ficando mais inteligentes do que nós”.
O Prêmio Nobel de Química
Os vencedores do Prêmio Nobel de Química são Demis Hassabis e John Jumper, trabalhadores da IA DeepMind do Google, e David Baker, da Universidade de Washington. Os cientistas Hassabis e Jumper foram laureados no mês de outubro pelas suas importantes contribuições na criação de um sistema de previsão de estruturas proteicas: o AlphaFold. E Baker partilhou o prêmio pela sua projeção de novas proteínas por meio do sistema computacional denominado RoseTTAFold.
“Demis Hassabis e John Jumper utilizaram com sucesso a inteligência artificial para prever a estrutura de quase todas as proteínas conhecidas, e David Baker aprendeu a dominar os blocos de construção da vida e a criar proteínas inteiramente novas”, explica a comissão do Nobel em seu anúncio.

David Baker, Demis Hassabis e John Jumper, nesta ordem. Ilustração: Niklas Elmehed.
A Real Academia Sueca de Ciências, que concede o prêmio, chamou a descoberta de Hassabis e Jumper de: “a realização de um sonho de 50 anos”. O prêmio em dinheiro de 11 milhões de coroas suecas ficou metade com Baker e a outra metade dividida igualmente entre Hassabis e Jumper. Além disso, no dia 10 de dezembro, os vencedores atenderão um banquete na prefeitura de Estocolmo onde receberão uma medalha do rei da Suécia.
“Estou realmente empolgado com todas as maneiras pelas quais o design de proteínas torna o mundo um lugar melhor em termos de saúde, medicina e, na verdade, tecnologia externa”, declara Baker por telefone na coletiva de imprensa do Prêmio Nobel.
O rápido avanço da IA
Com o alcance da IA aumentando dia após dia, é interessante reiterar que a tecnologia de aprendizado de máquina não é recente. Na realidade, ela vem sendo desenvolvida há anos. “A presença da IA no Nobel representa o reconhecimento de um percurso que a comunidade científica tem feito há pelo menos cinco décadas”, afirma o professor do curso de Jornalismo da Unesp Juliano Maurício de Carvalho.
O professor, que é líder do LECOTEC (Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia, Educação e Criatividade) da Unesp em Bauru, é um pesquisador de IA. Em seu trabalho, observou aspectos positivos de se ter uma inteligência artificial presente no dia a dia. “Ela cria condições de desenvolvimento de uma série de atividades para o cotidiano. Atividades repetitivas, atividades que às vezes você levaria mais tempo para desenvolver, então acho que tem um aspecto muito funcional”.
A professora Paula Dornhofer também acredita em impactos positivos no uso da IA “na área da saúde, da preservação da biodiversidade e das questões climáticas”. Já em relação a impactos negativos, é comum a divergência de opiniões entre os pesquisadores. Dornhofer acredita que o uso da IA para desenvolver um poderio militar desproporcional, para a fácil manipulação de textos, fotos e áudios, e invasão de privacidade são verdadeiros negativos da existência dessa inteligência. “Você pode desenvolver mecanismos de controle que podem ser bastante danosos à humanidade”, adverte a pesquisadora.
O professor da Unesp de Sorocaba Alexandre da Silva Simões, que já foi diretor da unidade, atua nas áreas da Engenharia Elétrica, da Inteligência Artificial e da Robótica. Em seus estudos sobre IA, ele considera o viés de informação um impacto negativo desse algoritmo. Em outras palavras, ele acredita que as pessoas têm uma tendência não saudável a acreditar em plataformas, como o Google ou o WhatsApp, sem nunca questioná-las. “As pessoas tendem a associar aquilo que a máquina lhe der como uma verdade absoluta e isso é super complicado”, evidencia o especialista.
Outra questão importante que Alexandre traz é a relação de poder desigual que envolve o controle dessas máquinas. “É muito poder concentrado na mão de poucas pessoas”, afirma Simões. “Talvez o meu maior medo hoje, e de boa parte da comunidade, seja o fato da IA estar sendo uma tecnologia propriedade de meia dúzia de Big Techs. E as empresas têm um objetivo. Claro que é lucro”, critica o professor.
Big Techs, para contextualização, são grandes empresas que têm enormes bases de dados e exercem domínio no mercado de tecnologia e inovação. Empresas como o Google, a Microsoft, a Meta e a Apple exercem influência exacerbada no mercado mundial de tecnologia e não necessariamente se preocupam com o resto da população. Por isso, o pesquisador acredita que a regulação da IA é essencial: “A gente precisa garantir que essas tecnologias vão beneficiar a todos”.
Juliano também acredita que uma regulação da IA é indispensável. De acordo com o líder do LECOTEC, as novas ferramentas em si não são o problema. “O problema é a regra que a sociedade tem sobre isso”. Uma tecnologia como essa, que “tem impacto imediato nas relações laborais, nas políticas educacionais, que afeta a formação especialmente das crianças”, precisa de regras para garantir a segurança e organização da sociedade. “A regulação é o ponto de partida e não de chegada”, adverte o pesquisador.
Mesmo sendo uma das dez maiores economias do mundo, o Brasil ainda tem um papel secundário em relação a tecnologia produzida em solo nacional, principalmente quando comparada às Big Techs. “O Brasil assume no momento uma posição de colônia digital”, alega o professor Alexandre. Isso significa que o país está atrasado, ele importa tecnologias de fora ao invés de produzir as próprias máquinas. “O Brasil precisa acelerar. É urgente que ele desenvolva mais e mais essa tecnologia”, instrui Simões.
O Plano Nacional de IA

Capa do PBIA. Foto: gov.br.
O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024-2028 foi lançado no fim do mês de julho. De acordo com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o planejamento representa um marco histórico para o desenvolvimento tecnológico do Brasil. A previsão é de um investimento de R$23 bilhões em quatro anos visando obter inovações sustentáveis, tecnológicas e a valorização do trabalho e da diversidade cultural, social e linguística na IA. No site oficial do Governo Federal é possível encontrar o PBIA completo em formato PDF.
Para pesquisadores de IA que acompanharam a chegada desse novo plano, a intenção do governo de fomentar a base de dados com informações em português merece um destaque. Juliano relata que, como pesquisador, já defende a ideia há mais de um ano. “Nós temos que ter inteligência artificial alimentada com informação nacional. Não é só pelo nosso sotaque, pela nossa cultura local, é por um amplo complexo do que significa o nosso processo identitário que tem que estar representado numa inteligência artificial”, argumenta o professor.
A IA no campo da Física
Com a pesquisa de Hinton e Hopfield se apropriando de conceitos físicos para implementar modelos de machine learning, torna-se inviável negar a relação entre o campo da Física e a IA nos dias de hoje. “A Inteligência Artificial está se apropriando dos dados do mundo físico”, afirma a professora doutora Paula Dornhofer.
Essa intersecção entre conhecimentos, assim como a própria máquina de aprendizado, pode trazer tanto aspectos positivos quanto negativos. É a famosa frase: tudo tem lado bom e ruim.
Leticia Zago trabalha em São Carlos (SP) como professora de física. Ela presencia diariamente a IA na rotina de seus estudantes. “Sinto que há alunos que não se sentem mais seguros com suas próprias ideias e precisam verificá-las, como se a IA pudesse melhorar e aprovar. Penso nas frustrações que eles possam passar por errar ou até mesmo não acreditar em seus potenciais”, relata a professora.
Na física, como em tantos outros campos, “o uso de plataformas IA não para de crescer”. O objetivo é buscar não ser dependente dela. “Da mesma forma que não poderemos fugir completamente da sua presença em sala de aula, o ideal seria mostrar caminhos mais saudáveis e interessantes do seu uso”, conclui Zago.
A IA no campo da Química
Gustavo Metzker, professor e doutor em Química que trabalha na Unesp de São José do Rio Preto, possui contato direto com a presença da IA no seu campo de estudo. “A IA tem avançado de forma muito rápida em todas as áreas da química”, conta o professor.
O algoritmo de aprendizagem tem progredido em áreas de textos acadêmicos e de análise de dados, mas sua participação ativa no meio científico levanta dúvidas sobre limites. “Se delegamos cada vez mais tarefas à IA, até que ponto isso afetará nosso desenvolvimento intelectual?”, questiona Metzker.
Não há mais volta. A influência da IA existe e aumenta a cada dia em diferentes setores da sociedade, inclusive no cotidiano dos brasileiros. “Uma vez que a ‘Caixa de Pandora’ foi aberta, é impossível fechá-la. A questão principal não é se a IA vai influenciar, mas como ela vai influenciar”, assegura o pesquisador Gustavo. “Em minha visão, o principal é determinar até que ponto devemos utilizar a IA em substituição ao intelecto humano”.
