Filme que estreou na última semana é grande sucesso e traz reflexões sobre as barbáries da Ditadura ainda presentes no Brasil
Por Rodrigo Matias
O novo longa de Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”, inspirado no livro de mesmo nome, de Marcelo Rubens Paiva, retrata a visão da família sobre o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, durante o período do regime militar. O filme está em evidência e vem sendo o principal destaque audiovisual brasileiro nos últimos meses.
Além de contar com grandes estrelas do cinema brasileiro, como Selton Mello, Fernanda Montenegro e, principalmente, Fernanda Torres, o filme teve uma excelente estreia no Festival de Veneza. No último mês, o filme foi exibido pela primeira vez no Brasil durante a 48a Mostra de São Paulo, e também pelo Festival do Rio. O lançamento do longa em todos os cinemas do Brasil aconteceu na última quinta-feira (7).
Um dos aspectos que colocam o filme como um dos principais lançamentos do ano, além da atuação de Fernanda Torres, é o contexto histórico em que o longa está inserido. A ditadura militar brasileira já foi retratada em diversas outras obras desde a redemocratização, porém, poucas vezes foi visto um olhar tão pessoal do regime quanto em “Ainda Estou Aqui”. Isso acontece graças ao livro de Marcelo Rubens Paiva que inspira a obra.
No livro, a visão de Rubens Paiva é de alguém que sentiu na pele o desaparecimento de seu pai e que vivenciou toda a dor de sua família, mas principalmente de sua mãe, Eunice Paiva, que teve como objetivo de vida a luta pela justiça de seu marido.

Selton Mello e Fernanda Torres como Rubens e Eunice Paiva – Foto: Divulgação
A história da família Paiva não é nenhum caso isolado, mas sim a realidade enfrentada por mais de 400 famílias ao longo das duas décadas de ditadura militar no país. Com a lei da anistia, em 1979, o sofrimento daqueles que perderam seus familiares e amigos se tornou um luto eterno e sem respostas claras.
A partir disso, podem ser feitas inúmeras interpretações sobre o título do longa: “Ainda Estou Aqui”. Por exemplo, como a militância travada por Rubens Paiva não foi em vão e ainda é celebrada, como ele e tantos outros desaparecidos ainda se mostram presentes na memória de tantas famílias brasileiras e, sobretudo, como crimes políticos ainda acontecem em nosso país, mesmo após 60 anos do golpe militar.
Quatro décadas depois da redemocratização do Brasil, e 20 anos de ditadura, não foram suficientes para que os crimes políticos fossem encarados com repulsa por toda a população. De 1985 para cá, muitos casos de assassinato e desaparecimento já foram relatados. O de maior repercussão, com certeza, é o assassinato da vereadora, ativista negra e feminista Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018.
A figura de Marielle se tornou um símbolo da luta contra as desigualdades, virou nome de rua, prêmios, auditórios em universidades e foi até citada em samba-enredo da Mangueira. A vereadora deixou a filha Luyara, a esposa Mônica e um grande legado para a luta de igualdade racial e de gênero.

Foto de Marielle na Câmara dos vereadores – Instituto Marielle Franco
Racismo estrutural e impunidade: fatores que perpetuam crimes políticos
Para a antropóloga e professora da Universidade de São Paulo, Francirosy Campos Barbosa, os crimes políticos e assassinatos de grande lideranças no Brasil ocorrem por fatores ligados ao racismo e outras desigualdades sociais. “Nós temos que lembrar que o Brasil é um país escravocrata, das grandes oligarquias, dos poderosos, e isso é muito forte quando a gente pensa em racismo estrutural”, aponta.
“O caso da Marielle não é à toa. A gente vive numa ‘casa-grande e senzala’, é muito difícil enfrentar os poderosos. E se você é de uma minoria, que na verdade é maioria, mas é uma minoria representativa, você acaba sendo muito afetado”, afirma.
A antropóloga também entende que um dos fatores que contribui para a perpetuação dos crimes políticos no Brasil é a impunidade que vigorou no pós ditadura. “A impunidade desses crimes políticos, assim como a demora [na apuração dos fatos] e o silenciamento, acaba perpetuando ainda mais a violência. Se as leis fossem cumpridas e se o processo fosse encaminhado corretamente, a gente teria a resolução desses casos. Mas, muitas vezes, esses crimes acontecem em governos também corruptos e violentos, que acabam não fazendo muita coisa”, explica.

Cartaz do encontro nacional das entidades de anistia, 1979/ Divulgação: Arquivo Público do Estado de São Paulo
O legado de Marielle e a violência política contemporânea
Além de Marielle, muitos outros crimes políticos foram registrados nos últimos anos. Em outubro de 2013, o jornal O Estado de S.Paulo publicou um levantamento que mapeou mais de 1100 homicídios com motivação política em mais de 14 estados do Brasil desde 1979.
A grande reportagem foca em casos menos midiáticos, mas também dá destaque para aqueles que repercutiram pelo país afora, como os dos prefeitos de Santo André e Campinas, Celso Daniel e Toninho (ambos do PT), respectivamente, assassinados no começo do século, ou o da deputada federal Ceci Cunha, assassinada em 1998 a mando de seu suplente.
Segundo Francirosy, o assassinato de figuras como Marielle e Ceci Cunha aponta para um padrão mais amplo de violência política no Brasil. “Curiosamente, Marielle Franco e Ceci Cunha, embora sejam de partidos diferentes e terem histórias políticas diferentes, são duas mulheres, então você pode considerar a misoginia como um fator em relação a esses crimes políticos”, observa a professora.
“Quando você vê uma uma deputada de Alagoas sendo assassinada a mando do suplente e uma vereadora negra, lésbica, favelada e com todos os marcadores sociais de diferença, isso mostra um extermínio. Então esses assassinatos revelam mais um componente que é a questão de gênero”, complementa.

Tropas militares na frente de um protesto contra a Ditadura – Reprodução: Arquivo Nacional/Correio da Manhã
Herança da ditadura
Na madrugada do último sábado (9), o recém-eleito vereador de Salto do Itararé (PR), João Garré, foi assassinado a tiros dentro da casa de seus pais. Isso reforça como os crimes políticos estão longe de serem sanados e são uma das principais heranças da ditadura, como indica a professora Francirosy.
“A partir do momento que você não silencia esses crimes políticos, você dá visibilidade para os crimes atuais. O silêncio sempre apaga a violência. E quando a gente fala dela [violência], quando a gente reporta sobre ela, traz essa memória, reconta, seja por um filme, um documentário, um livro, uma aula ou qualquer outro tipo de veículo. A gente tá trazendo essa memória e isso nos ajuda a dizer: isso nunca mais, ditadura nunca mais, violência nunca mais e perseguição política nunca mais”, destaca.
Desta maneira, o novo filme “sensação” de Walter Salles promete trazer bastante emoção aos espectadores com a história da família Paiva e os detalhes acrescentados pelo autor do livro. Mas, além disso, o filme leva consigo a missão de denunciar as perseguições políticas e sociais que ainda estão aqui.
